segunda-feira, 31 de outubro de 2011


Machine Gun Preacher




O interessante trailer do novo filme do profílico Marc Forster, de A Última Ceia e O Caçador de Pipas, investe numa montagem ágil ao dar espaço aos dois espectros da trama: o da ação e do drama. A trilha sonora de “filme de superação” obviamente está presente, mas é a mão artística de Forster, apostando numa desenvolvida técnica visual, que torna a prévia tão atraente. Gerard Butler também está ótimo, com a competência habitual, aqui testando um ambiente mais dramático que seus papéis como herói de ação. O único porém do filme fica á cargo de um semelhante: Diamante de Sangue. Seria Machine Gun Preacher uma versão mais dramática (e descompassada) do filme de Ed Zwick ou os dois temas tão distintos vão acabar combinando no final das contas?



domingo, 30 de outubro de 2011

Stake Land - Anoitecer Violento
(Stake Land, 2010)
Terror/Suspense - 98 min.

Direção: Jim Mickle
Roteiro: Nick Damici e Jim Mickle

Com: Nick Damici, Connor Paolo e Kelly McGillis

Zumbis estão na moda. Desde o revival iniciado pelo famigerado Zack Snyder em seu remake do clássico de George Romero Madrugada dos Mortos, o mundo vem concebendo os mais variados trabalhos relacionados aos mortos vivos, desde livros, HQs, filmes e até séries de TV.

Stake Land - dirigido por Jim Mickle e escrito pelo próprio Mickle e pela estrela do filme Nick Damici - coloca os sugadores de sangue, tão vilipendiados com histórias adolescentes românticas e brilharecos em florestas e luas de mel na praia, em um ambiente pós-apocaliptico típico dos filmes de zumbi, ou mesmo de recentes sucessos de crítica como o excelente A Estrada. Estão presentes todos os elementos importantes e tradicionais das histórias ambientadas nesse mundo: extremismos vindos dos inimigos, a dificuldade para lidar com o ambiente inóspito, gente regredindo ao primitivismo, intimidade intensa em virtude da falta de gente, a sensação de solidão e de que o fim está sempre espreitando na próxima esquina.

Soma-se a isso o acréscimo das figuras vampirescas, mais agressivas, ágeis e inteligentes que os mortos vivos e você têm um suspense tenso e poderoso que funciona por quase toda a projeção.


Stake Land, ou Terra da Estaca, fala da relação entre o jovem Martin, solitário depois da morte dos pais (que é apresentada na primeira cena e que dá o tom do filme, cru, naturalista até os limites possíveis, ágil e bem montado) e o misterioso Mister, um andarilho especializado em caçar e eliminar os sugadores de sangue que se espalham pelos Estados Unidos tomados pela praga vampiresca.

A relação dos dois é similar a dos personagens de Woody Harrelson e Jason Eisenberg em Zumbilândia, obviamente mais adulta e séria, já que o tom de Stake Land não é - definitivamente - leve e satírico como a comédia dos zumbis.

Outra característica interessante de Stake Land reside no fato, de além de falar dos vampiros, o filme ainda toca na questão do fanatismo religioso, aqui apresentado por uma seita doentia que usa dos vampiros para eliminar aqueles que contestam sua suposta conexão direta com Deus. Nada diferente do que vemos hoje em dia, nas mais variadas religiões que clamam ser a "única verdade". Jim Mickle parece dizer que quando o apocalipse chegar (literal ou metaforicamente) essa questão ficará ainda mais pungente, já que apenas os mais fortes e - segundo a lógica do filme - ignorantes, sobreviverão ao massacre, o que dará início a uma era de extremismos e violência desmedida.


O elenco é basicamente composto de desconhecidos, o que auxilia a credibilidade do filme e amplia a sensação de urgência daqueles personagens. Embora Martin e Mister sejam os personagens principais, por diversas vezes nos questionamos se aqueles dois conseguirão chegar até o final do filme ilesos (e não, não contarei se chegam).

Nick Damici, faz de Mister um sujeito calado e que como macho alfa da situação, não tem tempo, nem paciência para conversa fiada e momentos de depressão pensando nos amigos e família caídos. Um típico valentão de coração mole, Mister é aquilo que se espera de um personagem como esse, largado em um ambiente como o do filme. Poucas palavras, muita ação e a constatação de que esse tipo de personagem parece cada vez mais esquecido no cinema. Já Connor Paolo (que interpretou os jovens Sean Penn e Colin Farrell em Sobre Meninos e Lobos e Alexandre respectivamente) é o típico garoto assustado que precisa encontrar uma forma de lidar com uma situação de extremo desamparo.

Como a estrutura do filme é um road movie que como em 11 de 10 filmes apocalípticos se apóia na busca de um oásis protegido da praga/monstros da vez, diversos coadjuvantes vão se juntando no caminho dos dois personagens. A mais significativa é a Freira (intitulada apenas assim) que tenta incutir um pouco de humanidade na cabeça dos personagens. Kelly McGillis (ela mesma de Top Gun, Acusados, A Testemunha entre outros) surge muito diferente da imagem que o público talvez mantenha dela. Parecendo muito envelhecida - também ajudada pelo papel que a coloca como uma mulher sem nenhuma vaidade e ainda num ambiente de trevas - Kelly em poucos momentos de tela, mostra que apesar do visual "chocante", continua eficiente.


A vilania religiosa citada é representada por Jebedia Leven (Michael Cerveris da série Fringe), um psicopata que mantém o poder através da fé cega de um grupo de ignorantes tementes a Deus que também servem como seu exercito particular.

Apesar de apostar no Road movie, os muitos cenários e personagens que cruzam o caminho dos personagens (que também incluem uma jovem grávida que serve de interesse amoroso de Martin, um caminhoneiro e até uma jovem boa de tiro e uma cidade perdida no meio da guerra religiosa) o filme não perde ritmo, embora em seu terceiro ato, apresente alguns pequenos problemas em concluir a história, que vinha sendo conduzida de forma intensa e com acontecimentos inesperados. Mickle prefere ser mais contido e encerrar sua história de forma mais óbvia e que todos os filmes do gênero costumam terminar.

Stake Land não pretende ser o filme definitivo sobre o tema, mais é uma lufada de ar fresco na filmografia vampírica, que anda sendo transformada em pastiche na ultima década. Por seu visual cru, interpretações corretas e respeito aos conceitos do mundo que abraça, a produção merecia uma sorte melhor do que ser mais um simples lançamento direto para vídeo. E pensar que Dylan Dog teve sua chance no cinema...


sexta-feira, 28 de outubro de 2011


O Filmes para ver antes de Morrer nunca tentou - e nem vai tentar - criticar ou analisar uma obra que por motivos óbvios está no panteão das maiores (na opinião da equipe) já produzidas pela sétima arte, por isso o espaço aqui é para relembrarmos, homenagearmos e apresentarmos a quem não viu, grandes filmes da história do cinema.


O Anjo Exterminador
(El Angél Exterminador, 1962)


Cineasta surrealista, Luis Buñuel é adepto de obras mais complexas e que explicam muito pouco de sua estrutura narrativa, preferindo rechear suas entrelinhas de mensagens interpretativas. E até mesmo essas mensagens não fazem um sentido completo. Como o próprio cineasta disse, "A melhor explicação para esse filme é que, do ponto de vista puramente racional, não tem explicação alguma". Por isso, seria inútil discutir todos os mínimos detalhes de O Anjo Exterminador. Desde Um Cão Andaluz, primeiro filme do diretor (no qual teve como parceiro ninguém menos que Salvador Dalí), o delírio surrealista, desconexo até, tomou conta do centro de suas produções. E os subtextos com que trabalha, quase sempre envolvendo as classes mais altas e as instituições religiosas, são refinados de uma forma espetacular na obra-prima que é O Anjo Exterminador. E Buñuel conduz a projeção com uma acidez tão peculiar que não é difícil se divertir com a desmistificação dos etiquetados senhores e senhoras presentes naquela sala.


Carros elegantes e caros chegam numa mansão igualmente imponente. Não é complexo imaginar os torsos grã-finos saindo, com todo o cuidado e refino, dos carros. Os empregados organizam a festa com movimentos robóticos (não tão exagerados quanto os de Metropolis), diferenciando-se desde já dos leves movimentos da classe rica que está preenchendo a mansão. Obviamente, a anfitriã entra na cozinha para pressionar seus empregados, como boa burguesa escrava das etiquetas. Porém, os empregados começam a sair, com motivos que não ficam claros ao certo. Mesmo com o protesto da glamorosa senhora, os empregados vão embora. Mas tudo bem, o que importa é que nada pode dar errado nessa noite. E se for pra dar errado, que dê com algum dos empregados que ficaram. Não tem problema se o reles mordomo cair com a comida no chão. Podemos até rir dele, se quisermos. O que não pode acontecer, de maneira alguma, é algo errado com os convidados.


Até que o diretor, não por acaso também roteirista do filme, parece ouvir os pensamentos dos anfitriões. E aí, algo tranca, com uma parede invisível e intransponível, a sala. Quem fez isso? Não importa. Por que os convidados simplesmente não vão embora se nada os impede? Essa é a questão.


Construindo a atmosfera de forma impecável, Buñuel não tem pressa ao introduzir a estranha situação que conduz a trama do filme. Os excelentes diálogos, bem íntimos (não estranhe caso não entenda algum deles; é conversa pessoal), vão levando a película até o evento principal se revelar. O jogo que Buñuel faz com a percepção do espectador também é notável. Certo ponto no começo do filme, um dos anfitriões fala para o mordomo arrumar os quartos para que possa acomodar todos os presentes dormindo no recinto. Porém, com o passar do tempo, vemos que os convidados começam a se acomodar na própria sala, tirando seus blazers sem a menor cerimônia, o que gera um protesto de uma senhora: "Eles não tem modos não?". Sutilmente, Buñuel estabelece a condição de presos dos convidados.


E é interessante perceber que os personagens vão apenas ficando na sala, sem se tocar de que nada os impede de sair. Mas é só chegarem perto do fim da sala que eles não conseguem dar o passo para fora. O gatilho é justamente a conversa de três dos distintos homens de fraque, que observam três senhoras que, antes com o objetivo de ir até o banheiro, acabam parando no meio do caminho. Com isso, se dá início à jornada de desespero dos refinados convidados. E os conflitos se intensificam pois Buñuel recheia sua narrativa com conflitos pessoais, como um relacionamento de dois personagens. O belo desenvolvimento de personagens se dá a partir da tensão que se instala com meia hora de filme. As características reais dos burgueses vão aparecendo pouco a pouco. Em certo ponto, o doutor é abordado para tentar resolver um caso; o bom humor do roteiro aparece fácil, ao mostrar um personagem chamando o doutor de Sherlock Holmes. Mas não só como síntese do humor um tanto sádico de Buñuel, essa cena serve bem para dar os primeiros sinais do desentendimento constante entre os hóspedes.


Esse choque entre as diferenças de personalidade dos presentes é fundamental para a acidez da crítica escancarada que o espanhol faz. Aquelas belíssimas regras de etiqueta, o bom comportamento, galante e superficial, se torna visceral a ponto de gerar sérios confrontos verbais. E essas cenas apresentam o melhor de O Anjo Exterminador. Buñuel não esconde o apreço pela desgraça dos distintos senhores, e analisar a desconstrução da instituição de aparências da Alta Roda é a alma do humor satírico do filme. O desespero por água, a hilária tentativa de manter as aparências em meio ao caos ("Primeiro as damas!" ou o alisamento de cabelo da senhora), a dupla dos irmãos entediados e ácidos; tudo faz parte dessa graça que Buñuel provoca no espectador, que é a contraparte perfeita para o flerte surrealista que o filme realiza.


Nesse flerte, em algumas sequências, o diretor impõe o seu estilo com tendências ao onírico, ao fora do comum, que ditaram sua carreira desde o revolucionário Um Cão Andaluz. As cenas de delírio dos personagens são totalmente descontroladas e têm um visual chamativo como poucos. Por isso, é até ótimo que Buñuel não apele para explicações descritivas e plausíveis: a beleza está no desconhecido. A bizarra presença de uma mão ambulante sem corpo é fantástica e estabelece bem o verdadeiro exercício de estilo de Buñuel. A trama experimental, a chuva de referências, transição constante de gêneros, críticas a vários segmentos da sociedade: Tudo tende a essa pura e simples demonstração de repertório de um Mestre. Mesmo que muitas vezes gratuito (como nas críticas ao Catolicismo), esse estilo só define bem o que O Anjo Exterminador representa na filmografia de Buñuel: A síntese de seus pensamentos. A Obra-Prima.


A direção firme, imponente, esbanja elegância e tem takes de puro brilhantismo, como os de aproximação rápida nos personagens e os quadros belos em que o diretor abre o campo de visão ao chegar a câmera para trás. Isso mostra o pleno domínio do diretor em sua arte. O interessante é notar que, provavelmente, Scorsese se inspirou ferrenhamente em Buñuel para construir seus travellings acelerados, dado que o espanhol demonstra autoridade e arrojo imensos nesses planos. Inspirar mestres não é para muitos.


A noção de Buñuel sobre a mise-en-scène é espantosa. Em filmes como esse, de pouco espaço, muita filosofia e debate constante, a valorização dos atores e a imposição de um bom ritmo são essenciais. Anjo Exterminador, então, seria um predecessor de filmes como Ensaio sobre a Cegueira, que utilizam das más condições do ser humano para estudá-lo da maneira mais crua. Não por acaso, ambos os filmes dividem o ensemble cast, em que o todo é mais importante que o individual. E como um diretor conseguiria arrancar atuações homogeneamente soberbas de um elenco que, dentro do contexto, não importa individualmente? Compondo as cenas com segurança, o diretor organiza os atores com destreza ao passear a câmera de seu filme, brilhantemente fotografado por Gabriel Figueroa, pelo salão. Ao registrar o trivial e rir da desmistificação alheia, Buñuel dita esse bom ritmo de maneira impecável a ponto de 86 minutos parecerem 30.


Após se divertir bastante, tanto na técnica quanto no roteiro, Buñuel ainda finaliza a sua narrativa dentro da mansão de maneira anticlimática, guardando a carta na manga em seu desfecho, esplêndida como poucos. Ao utilizar um dos referenciais burgueses (que, "curiosamente", é ligado á religião católica), o diretor esquematiza o palco para seu apoteótico final. Dando ainda em seu último take o seu sermão à Igreja, Buñuel o faz de maneira divertidíssima, ainda que propositalmente forçada. Esse brilhantismo sádico é o que torturou os "heróis" desde o princípio e não os poupa em momento algum.


Talvez a maior diversão dessa obra-prima, é analisar a fusão dos dois critérios a serem criticados e a maneira que o diretor faz para rirmos deles. Quando o pobre cordeiro de Deus entra no salão, o destino não poderia ser outro. Aqueles cidadãos são jogados aos leões sem a menor compaixão, mas não há como não se esbaldar de rir com a fina camada da sociedade que, julgando-se civilizada, acaba se ofendendo gratuitamente apenas para se sentir melhor.


Ainda querendo saber por que aqueles homens e mulheres estão ali presos? Não é necessário buscar essa resposta já que, como o manso e adorável Urso da mansão, esse é um mistério que encanta justamente por sua falta de resposta coerente. Mas se insiste em saber, tudo bem. O homem que os prendeu se chama Luis Buñuel. Mas não o culpe.


A culpa é dos hóspedes. Ser católico e burguês dá nisso.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O Palhaço
(O Palhaço, 2011)
Drama/Comédia - 90 min.

Direção: Selton Mello
Roteiro: Selton Mello e Marcello Vindicato

Com: Selton Mello, Paulo José, Álamo Facó, Thogun, Teuda Bara, Larissa Manoela, Giselle Motta, Hossen Minussi, Fabiana Karla, Jorge Loredo, Tonico Pereira, Ferrugem e Moacyr Franco

Selton Mello é um ator consagrado e muito versátil. Por isso, não é com grande surpresa que acompanhamos as profundas mudanças entre Feliz Natal (sua estréia na direção) e O Palhaço. Se Feliz Natal era um drama urbano sombrio, desesperançoso, cru, granulado e com muita câmera na mão, O Palhaço é uma ode a alegria, a comédia, as cores do circo, da vida simples de um grupo de pessoas que amam o que fazem e que superam dificuldades com um sorriso no rosto e uma piada na ponta da língua.

Acompanhamos a história do palhaço Benjamin/Pangaré (Selton Mello) que cruza o interior do país com seu pai Valdemar/Puro Sangue (Paulo José), enfrentando toda uma variedade de dificuldades e encontros divertidos, sem na verdade, saber o que quer da vida. No fundo, Selton usa do Palhaço (essa figura sempre sorridente) para falar de um homem em busca de seu lugar na vida. Em busca de auto-afirmação, de conseguir sair de baixo da asa do pai e principalmente descobrir uma forma de se sentir feliz fazendo os outros rirem também.

Montado de maneira simples, dando muito espaço para os atores, O Palhaço consegue apresentar o circo de forma cinematográfica não caindo no teatro filmado, sabendo como e onde posicionar a câmera para amplificar cada situação criada pelos atores. A apresentação final que inclui uma ótima sequencia de humor da dupla (muito entrosada) Mello-José é o ponto alto do filme, uma verdadeira catarse para os olhos e ouvidos.


O cenário escolhido - interior de Minas Gerais - também ajuda muito o filme. Quase todo filmado durante a chamada "hora mágica" nas cenas diurnas, é impossível não encarar o sol e o céu claro como elementos importantes na cena. Mesmo nas cenas noturnas ou internas, a iluminação e a fotografia mantêm o clima leve da produção. A única variação em relação a esse trabalho, acontece quando a cidade de Passos (curiosamente o lugar onde Selton nasceu, mas que, segundo o mesmo não tem relação alguma com o que vemos na tela) é mostrada. Um ambiente mais escuro, com poucas cores, mais saturado e com maior acidez, é o reflexo da mudança de foco do longa, quando passa a acompanhar a jornada de um determinado personagem pela cidade mineira.

O elenco - e esse é um filme de elenco basicamente - é todo ele excelente. Álamo Facó e Hossem Minussi são João e Chico Lorota a dupla responsável pelo som no circo e os criadores de caso, sempre tentando levar vantagem. Thogun interpreta Gordini, o homem forte, aquele que levanta os halteres nas apresentações circenses, mas que contrapõe essa imagem de forte sendo o mais sensível do grupo, encanado até mesmo com seu cheiro. A excelente Teuda Bara consegue ir do cômico ao emocional com muita facilidade e vive a outra palhaça, Dona Zaira, sempre a procura de um sutiã novo.


Os protagonistas, Paulo José e Selton Mello estão em grande momento. Selton faz de Benjamin um sujeito de fala mansa, que esconde muito do que é e de suas reais intenções. Passa pela vida atuando entre o palhaço engraçado do picadeiro e o homem em busca de seu lugar. Uma interpretação sutil, muito segura, cheia de maneirismos e de tiques que funcionam para fazer de Benjamin um sujeito realmente "estranho".

Já o grande Paulo José, faz de Valdemar um homem cansado pela vida, mas que tem disposição para seguir em frente. Seguro de quem é, e do quer para sua vida, ve as duvidas do filho com ternura, mas com certa rigidez. Interpretando muito com o olhar, Paulo, apesar das limitações da idade parece um garoto em cena, destacando-se a química com Selton em todos os números do circo.


O filme conta também com uma série de participações especiais, que, além darem espaço (assim como Selton fez em Feliz Natal) para o resgate de grandes nomes da tv e do cinema nacional, enriquecem muito o filme. 

São os casos de Fabiana Karla (conhecida humorista), Tonico Pereira (como irmãos gêmeos e mecânicos), Jorge Loredo (o eterno Zé Bonitinho), Ferrugem (que nunca envelhece) e Moacyr Franco (estreando no cinema em uma pequena, mais hilariante participação que rendeu o prêmio de melhor ator coadjuvante no Festival de Paulínia ano passado). Selton é notável também por dar espaço à jovem Larissa Manoela que interpreta a jovem Guilhermina, numa sensível e delicada interpretação, funcionando muitas vezes como o olhar do público deslumbrado com aquele mundo.


Tecnicamente o filme é belíssimo. A direção de arte é das melhores do ano, sabendo usar do bizarro (como a casa do prefeito de uma cidade pequena recheada de quadros exóticos), do simplório (quando o circo é enfocado e suas habitações simples, feitas de remendos e com um ar kitsch), do opressivo (os detalhes da cidade grande, o quarto de hotel que determinado personagem fica) e o mágico (o ambiente circense, onde também se destacam os ótimos figurinos do filme).

O Palhaço é um desbunde visual, de sentimentos nobres com muito bom humor (e que garantem sim algumas risadas) mas profundamente emotivo e que aponta Selton Mello como um realizador de alta qualidade, tendo apenas dois filmes no currículo. Sinal de que seu talento é latente e merece ser acompanhado.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Garoto de Bicicleta
(Le Gamin du Velo, 2011)
Drama - 87 min.

Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Roteiro: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne

Com: Cécile de France e Thomas Doret

Os irmãos Dardenne são os "queridinhos" de uma parte considerável da crítica internacional, sempre produzindo e dirigindo filmes que tem como principal objetivo, apresentar de maneira crua e mais realista possível conflitos humanos, os quais o espectador facilmente consegue se identificar. Isso aconteceu em A Criança, Rosetta e em Segredo de Lorna, seus filmes mais conhecidos do grande público, e provavelmente O Garoto de Bicicleta terá o mesmo destino.

A identificação do público acontece pois conhecemos diversas histórias sobre outros garotos como Cyril (Thomas Doret) que, abandonado pelo pai, vive em um internato com a promessa de que seria "resgatado". O pai no entanto some e num arroubo de desespero e saudade, o garoto foge e vai até o apartamento do pai, onde descobre o sumiço. Lá, acaba encontrando a bela Samantha (Cecile de France), uma cabeleireira que se afeiçoa ao garoto e que lhe dá o objeto com que supostamente fez Cyril ir atrás do pai, uma bicicleta.

O filme passa então a tratar da relação entre o jovem quase órfão e a jovem e bondosa mulher, com todos os clichês e obviedades desse tipo de relação. Os Dardenne incluem algumas artificialidades para que possamos chamar o filme de narrativa. Dificuldade de adaptação, problemas com os ditos "maus elementos" e a constatação da falta de oportunidade para os jovens de baixa renda e excluídos.



O problema é que o tom de fábula, apesar do realismo na construção das imagens como é típico dos diretores, atrapalha um pouco. A ideia de finais "felizes" também é de certa forma, condescendente com a situação. Em vez de manter-se "real", a ideia aqui é dar algum alento a situação.

O Garoto da Bicicleta é um filme cansativo, mesmo tendo uma metragem de menos de 90 minutos. A forma lenta e arrastada de alguns momentos do filme e a sensação de que é "muito barulho por nada", de que a narrativa não se sustenta, causa um incômodo constante, que prejudicam as boas intenções dos diretores.

O garoto Thomas Doret é natural, e consegue transmitir suas intenções e emoções com um olhar sempre enraivecido ou tristonho. Mesmo nos momentos de alegria, notamos que sua expressão se mantém sempre fechada, como se temesse perder aquela pouca alegria de seu dia. Já Cecile, além de iluminar o recinto com sua presença tem grandes momentos no filme, embora se mantenha refém de um texto que tem um começo e um fim, mas que emperra quando precisa desenvolver seus personagens. As sequencias com o "mau elemento" apesar de funcionarem para estabelecer um conflito, perdem pelas interpretações pobres e descompassadas.



Seria cinismo de minha parte, dizer que o filme é ruim. Pelo contrário, o filme é interessante, tem ótimos momentos e uma dupla de protagonistas em grande momento, mas, sofre pela forma com que a historia é contada e pela sensação de que mesmo com tempo curto, o filme é longo demais. A ideia de realismo, de se manter fiel aos acontecimentos que o espectador consegue se identificar de imediato causa esse obvio revés.

Na vida, as coisas - em geral - não acontecem como uma espiral de momentos felizes ou tragédias. Elas acontecem calma e tranquilamente, com períodos de completo marasmo. Garoto é exatamente assim, picos emocionais margeados por um imenso tédio. Na vida isso é compreensível e - ainda bem - comum, mas no cinema, quando existe a necessidade de aglutinar informações e eventos, esse tipo de opção às vezes não funciona direito.

Os Dardenne pagam o preço por sua escolha. Longe de ser ruim, mas exageradamente incensado, O Garoto de Bicicleta é um curta com metragem de longa, portanto irregular e profundamente sonolento.

terça-feira, 25 de outubro de 2011


Festival do Rio - O Diário de um Crítico em Formação

A primeira vez que saí sozinho eu tinha 12 anos. Eu já havia viajado com meu avô para alguns lugares, mas nunca tinha ido a um outro lugar sem a presença de meus pais ou familiares. Essa primeira vez deu uma bela sensação, de liberdade até, ainda que fosse limitada.

Pois agora, quatro anos depois, a cobertura do Festival do Rio germinou na minha mente de maneira fulminante e concretizou essa sensação. Era algo que eu queria já no ano passado, embora eu ainda não pudesse. Esse ano, porém, o meu cronograma se realizou e pude então exercer da melhor maneira possível essa profissão que tanto prezo. Ver diversos filmes, de diversas nacionalidades, foi uma experiência única. Tanto como profissional, já que pude conferir grandes produções (em qualidade e quantidade), como pessoal. Ter as primeiras experiências como crítico profissional foram interessantes e o que foi aprendido é pra se levar para uma vida toda.

A cobertura se iniciou no dia 7 de Outubro, primeiro dia das sessões abertas para o público, após a abertura no dia 6 com A Pele que Habito, filmaço de Pedro Almodóvar. Nesse dia, fui até Botafogo, onde estava localizada a Central de Ingressos do Festival, um local onde tive que voltar de forma recorrente devido ás trocas de horário e, principalmente, para comprar os ingressos que faltavam, já que a liberação das cópias no país foram burocráticas (o que fez com que Drive, por exemplo, fosse liberado apenas um dia antes da sessão). Nesse dia, peguei a primeira sessão do Festival, o correto Pior dos Pecados, numa sessão que atrasou devido a "problemas de áudio", segundo a produção. Porém, acredito que o problema tenha sido devido á legendagem complexa e corrida, o que também foi uma constante no Festival.



Central dos Ingressos, em Botafogo
As legendas, em uma pequena parte da tela, eram á parte da projeção. Isso já dava, de cara, um tom de "correria" ás exibições, já que a perda de sincronia em algumas partes dos filmes acabava denunciando a pressa com que as cópias chegaram ao Rio. Fora isso, alguns problemas eram notados na grade de programação, o que já aconteceu nesse primeiro dia: Sleeping Beauty, o bom filme de Julia Leigh, teve sua sessão de 16:00 cancelada e apenas pude ir na de 22:00, lotada, em que consegui o último ingresso, num inacreditável ato de sorte. Com a vaga aberta no horário das 16 horas, pude então conferir O Moinho e a Cruz, o que se mostrou bem proveitoso já que a obra de Lech Majewski foi um dos melhores filmes do Festival. Antes de Sleeping, fui ver Dublê do Diabo com expectativas boas, já que o belo trailer impressionava pela estética apurada. Porém, deixei a sessão de Ipanema (onde fiquei baseado) com um gosto um tanto estranho sobre o filme, já que a queda de ritmo no mesmo foi explícita.

Chegando em casa, pensei sobre os mesmos e enquanto Moinho só cresceu no conceito, e Sleeping e Pior dos Pecados se mantiveram, Dublê só piorou, o que o caracteriza como a primeira decepção do evento.

No segundo dia, encarei a primeira sessão no Leblon, no bom shopping de lá, que conta com o soberbo sistema de som THX em suas salas. A "estreia" lá não poderia ser melhor: o drama psicológico Take Shelter, excelente filme de Jeff Nichols (e a maior surpresa do Festival junto com Moinho). Após, aproveitei a brecha na minha programação e conferi Entre Segredos e Mentiras, filme com Ryan Gosling que a Imagem Filmes adia há cerca de um ano no Brasil. O fraco filme de estreia na ficção do documentarista Andrew Jarecki, do elogiadíssimo Na Captura dos Friedmans, peca justamente pela indecisão do roteirista sobre qual modo queria fazer o filme. É curioso ver Gosling vestido de mulher, mas um roteiro indeciso entre ficção ou documentário tornou o filme o segundo pior do Festival. Recuperando o dia para fechar com chave de ouro, fui até a premiére lotadíssima de Um Método Perigoso, o brilhante filme de David Cronenberg. Por lá, encontrei diversos críticos dos quais sempre fui fã, o que não deixou de ser um belo encerramento para o dia 8. O fato de Um Método ter rendido uma das críticas que mais gostei de escrever também foi excepcional.



Kinoplex - Leblon
O dia 9 começou com uma leve decepção, já que perdi a sessão de The Guard, que estava lotada. Comecei então, na Gávea (e seu labiríntico shopping) com A Outra Terra, contemplativa sci-fi indie americana. A trilha experimental foi o que mais me chamou a atenção nos aspectos técnicos, além de servir de fundo musical para a jornada emocionante da protagonista, que ficou na minha cabeça até o final do dia. Ainda na Gávea, fui ver o mediano Michael, que chama a atenção pela técnica impressionante de seu diretor e sua coragem e que erra apenas em não saber o que fazer com a limitada narrativa. A primeira sessão verdadeiramente polêmica, já que fiquei intrigado com o fato do vazio filme ter sido tão elogiado. De lá, voltei ao Leblon para ver o melhor filme do Festival, o genial Contágio (que conferi pela segunda vez, no dia 13) e terminei no tradicional Roxy com a sessão lotada do mediano One Day, que amedontra a mente dos céticos por pelo menos uns dois dias (sem trocadilhos).

No quarto dia, iria apenas começar a jornada na sessão de 17:00, com A Pele que Habito. Porém, fui antes até a Central e conferi Bora Bora, um musical (?) adolescente (!) dinamarquês (?!). Dizer que o filme é um desastre, uma bomba, uma ofensa, uma aberração e um soco na cara do bom senso é pouco, mas pelo menos a raiva incomensurável na projeção infinita de 75 minutos que senti foi recompensado com o espetacular filme do diretor espanhol. Dali, fui ao Odeon ver Terraferma, filme de Emmanuele Crialese. A presença do diretor, que foi gentil e respondeu perguntas antes e depois da projeção, foi o maior atrativo da sessão, já que o aceitável filme italiano é maniqueísta até a raíz. O dia se encerrou com o remake-reboot-prequel A Coisa, que em breve terá crítica no Fotograma, na época do lançamento.

Foi então com um sorriso no rosto e um abraço na alma que conferi As Quatro Voltas como primeira sessão do outro dia. O contemplativo, sensível e lindíssimo filme italiano foi revigorante para cabeça, já que me animou consideravelmente, mais ainda, para o resto da bela semana que eu tinha pela frente. No Roxy, conferi Margin Call, que em preve terá critica, junto ao lançamento. O bom suspense, que cria uma tensão humana como poucas e que desenvolve com destreza seus personagens, apenas peca pela falta de ousadia. Mais detalhes na análise, obviamente. Terminei o dia no Odeon, com o esplêndido Eu Receberia as Piores Notícias de seus Lindos Lábios, novo filme de Beto Brant. A sessão cheia, apesar da distribuição de ingressos que aconteceu previamente, estava cheia de profissionais do ramo, como Rodrigo Santoro e Milhem Cortaz. Eu ainda tive o prazer de cumprimentar, ainda que por segundos, o diretor Brant, do qual sou admirador.



Roxy
Após a revigorante noite anterior, a corrida semana continuou com a sessão de Tiranossauro em Ipanema. Um filme que eu tinha uma boa expectativa que foi saciada devido ás atuações brilhantes de Peter Mullan e Olivia Colman, que tomam o belo filme dramático, de assalto. Após, fui ao Odeon onde fiquei numa imensa fila para o documentário de Anderson Silva, Como Água. A presença do diretor e dos produtores empolgou, claro, mas a presença estelar do astro do UFC (e o assédio em volta) foi, ainda que rápida, empolgante. A sessão foi legal também, pois a vibração visceral que os espectadores tiveram foi incrível e contagiante, o que tomou o Odeon inteiro. O que em outro filme seria uma falta de respeito, acabou se encaixando perfeitamente na proposta do filme. Então, saí da curta sessão e fui para a também imensa fila para Abismo Prateado, novo filme de Karim Aïnouz. A presença dos diversos profissionais do filme, como a deslumbrante Alessandra Negrini, chamou bastante a atenção, mas não é qualquer dia que um gênio como Willem Dafoe senta 5 poltronas atrás de você...

O dia 13, o último dia efetivo do Festival, começou com o recente espetáculo estilístico de Nicolas Winding Refn, Drive. A trilha de Cliff Martinez deixou-me anestesiado para a segunda sessão de Contágio, o que formou uma bela sessão-dupla das trilhas do ótimo compositor. Após, fui para Ipanema acompanhar a sonolenta sessão do fraco Win Win. A irregularidade do filme, somada com meu cansaço após uma semana de almoço de Twix, apenas me fez ter poucas esperanças para a sessão final do dia, The Hunter. O temperamental filme australiano, porém, supriu minhas expectativas e cumpriu bem seu limitado papel.

As sessões derradeiras se dividiram nos calmos dias 14 e 15, aonde acompanhei Casa dos Sonhos, o recente e péssimo filme de Jim Sheridan e o divertidíssimo shake de cultura pop, Attack the Block. Terminei então com Restless, o irregular (ainda que bonitinho) filme de Gus Van Sant, que me surpreendeu nos dois espectros de qualidade recentemente, ao realizar esse bom ensaio sobre a morte que se torna um boy meets girl e o visceral Elefante, seu retrato emocional sobre o massacre de Columbine.



Odeon
Minhas experiências não podiam ser melhores. Tive uma semana bem cansativa, onde dormia ás 6 da manhã escrevendo para acordar meio dia e correr pra primeira sessão, mas tudo foi muito bem recompensado com o prazer que tive ao conceber as críticas e em poder, finalmente, saber como é ser um crítico profissional. E ser, sobretudo, uma pessoa mais independente.

Após relembrar dos fatos, não consigo imaginar em não repetir essa experiência. Ano que vem, com certeza, esse tal de Festival do Rio me espera. E eu, o espero ansiosamente.



segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Moinho e a Cruz
(The Mill and the Cross, 2011)
Drama - 92 min.

Direção: Lech Majewski
Roteiro: Lech Majewski e Michael Francis Gibson

Com: Rutger Hauer, Michael York e Charlotte Rampling

O início estático faz sentido. Ali no quadro, as cores estão bem vivas, ainda que carreguem certa opressão típica de uma tela do século XVI. Porém, as pessoas ali pintadas começam a se movimentar pelo cenário, ainda que o mesmo esteja congelado. O pintor as observa como se fossem sua criação. Mas quem seria o criador das pessoas? O que importa, no momento, é que essa atividade exige cuidado. Nada pode dar errado, tem que se esboçar o máximo para, só depois, concluir a obra. E não se preocupe muito com todo esse difícil processo de criação.

No final, o quadro será seu.

O primeiro filme de projeção internacional do diretor polonês Lech Majewski, este O Moinho e a Cruz, segue a tendência de filmes como o premiado Vocês, os Vivos! e a recente obra-prima As Quatro Voltas, ao adotar uma abordagem especialmente visual para uma trama que é tão forte em seu subtexto que não precisa de uma estrutura aparente para sobreviver.




Quando acompanhamos a delicada rotina de um grupo de pessoas no que aparenta ser a Idade Média, logo um paralelo se estabelece com o excelente épico de Nicolas Winding Refn, Valhalla Rising. Os dois filmes dividem as paisagens vastas, com campos abertos e verdes, aliados a uma fotografia esfumaçada que dá um toque contemplativo (ainda que rígido) ao projeto. Dividem-se, porém, em sua abordagem completamente distinta dos personagens. Se ambos contêm essa narrativa visual, Valhalla prefere desenvolver seus personagens pelas suas ações, já que o que está acontecendo é algo muito maior que eles mesmos. Já Moinho vai na contramão, ao passo que o objetivo do filme, justamente, é mostrar os costumes das pessoas que testemunham um grande evento, mas que não têm noção da magnitude do mesmo. Ninguém é capaz de contemplar as sutilezas.

Algumas pessoas estão dentro de um aparente casebre. O tom amarelado, envelhecido da direção de arte, sugere uma época antiga. Os sapatos de ferro também dão a noção certa da época que estamos. Todos ali dentro parecem trabalhar para que a estrutura de engrenagens seja bem-sucedida em sua tarefa. O Moinho deve funcionar. Mas o que é esse Moinho?

Várias pessoas caminham dispersas pelos campos gigantes do local. Elas parecem sem rumo algum, mas têm tarefas a serem feitas. A mulher ocupada, que mesmo assim dança com o pintor e o neto, tem que entregar algo, na cesta, para alguém. As crianças brincam na casa, fazendo bagunça com qualquer coisa. Seja na cama desarrumada ou na simples mesa de refeições. O mais enérgico de todos, o que acordou todas para brincar, ainda é o bisbilhoteiro.




Um homem, fugindo para algum lugar, cometeu um crime. Quando é pego, ele conhece a fúria da justiça implacável e é encaminhado para sua prisão, a roda que se apóia no tronco. Alguém chora por ele. Com o tempo, o urubu devora todas suas lembranças e esperanças, vislumbres de um futuro que poderia ter sido diferente. Uma mãe chora, ao olhar para o horizonte. Um choro tímido, sutil, imaculado. Amorosa, a doce senhora vivida pela impecável Charlotte Rampling parece se perguntar em diversos momentos, sozinha, sobre várias coisas. Se sua vida foi calma, cheia de emoções religiosas, por que ela está sendo retribuída assim? Por que aquele Deus, que tanto prometeu para ela, não parece ouvir as preces agora? Mas principalmente, ela se pergunta, mentalmente.

Por que meu filho está junto daqueles ladrões naquelas três cruzes?

O Moinho e a Cruz é a representação máxima de como um evento de grandes proporções é só uma mera folha no mar de árvores da população de um lugar. O Calvário do quadro de Bruegel só é importante com o passar dos anos. Assim como o artista, que pouco elogiado e que vive maltrapilho. A contemplação daquele mero esboço só poderá ser feito muito depois, em um moderno museu. Bruegel sabe que não tem capacidade de contemplar, assim como as outras pessoas. Por isso, usa de sua alma de artista o máximo que pode. Se não se nota uma coisa, congele o tempo. Quem sabe, acharemos algo que perdemos. E congelando, o Moinho se torna a Cruz. Observa como um verdadeiro deus solitário, que só tem a companhia de quem o pergunta sobre a obra. Admira cada belo detalhe, seja o belo corpo nu feminino ou os três homens, que parecem magos, numa alquimia melancólica. E quando aquele homem está no chão, sendo perseguido no final, a população mal percebe, nem liga. Não há como não perguntar: seria ele, outro escolhido de Deus?




Na opressiva ausência de Deus, Bruegel tem o Moinho. Maria pergunta, mas não tem respostas. Pelo menos, tem a quem olhar. Ironicamente, sua janela dá diretamente para o Moinho. Em todas as casas, mesmo na das crianças bagunceiras, temos o Moinho, mesmo que lá no fundo. Mesmo que Deus não nos veja, o Moinho vê. E quando o homem está na Cruz, não poderia ser mais preciso. Ele está longe, não consegue ver quem queria. Onde está seu Moinho agora?

O filme é o processo de criação de um artista. Como uma aranha, que tece sua teia e deixa-a para o resto do mundo. A melhor das artistas, a que vive de sua paixão e a fornece para o belíssimo mundo em que vive. E isso sem cobrar nada. Porque como dito anteriormente, a Vida é uma arte. E naquela cidadela, aprendemos mais sobre cada uma das singelas pessoas ali presentes. Existe algo, afinal, sob a camada de óleo e verniz.

Porque Deus é o Moinho, Jesus é qualquer um, e o Moinho é a Cruz. Já o quadro, esse é seu.




sábado, 22 de outubro de 2011

A Dangerous Method
(A Dangerous Method, 2011)
Drama/Thriller - 99 min.

Direção: David Cronenberg
Roteiro: Christopher Hampton

Com: Michael Fassbender, Viggo Mortensen e Keira Knightley

Quem vê a carruagem do início, sem ter contato com a filmografia de David Cronenberg, pensa que o que virá a seguir é um drama histórico, preocupado mais em estabelecer os fatos ocorridos que estudar as figuras históricas ali presentes. O pomposo início, com a trilha atmosférica dos violinos de Howard Shore, dá um tom interessante para quem acompanharia o filme em uma cômoda superfície, já que é fácil constatar que este é um filme diferente na filmografia do diretor.

Sempre um mestre em adentrar a psique do ser humano de forma visceral, o canadense retratou por anos a mente do homem de forma criativa, ao nunca dar um senso total de realidade ao espectador. Assumindo o ponto de vista da vítima, o desconforto causado era enorme. Assim, Cronenberg encontrou uma forma de liberar o gore que tanto gosta de forma orgânica à narrativa. No início de Um Método Perigoso, quando Sabina Spielrein é levada até o psiquiatra Carl Jung, um breve flerte com o cinema físico do diretor é visto. A histriônica Knightley, atriz limitada que consegue demonstrar segurança quando bem dirigida (o que é o caso aqui), curva seu maxilar pra frente, grita desesperada, como se algo estivesse dentro dela, subindo a espinha. É como acompanhar Existenz ou Scanners, só que sem algo sair do corpo.

Esse traço da antiga personalidade do diretor se apaga ali mesmo. Sabina continua com seus problemas psicológicos, mas a eloquência da retórica de Jung do cada vez melhor Michael Fassbender acaba suprimindo a quase caricata Knightley. Ali, começa a se ensaiar uma análise ao modelo de Senhores do Crime, o que nos leva a pensar que a expectativa da observação visceral do comportamento dos personagens seria realizada.




Porém, a expectativa se mostra infundada com o passar do tempo, já que o rico subtexto, as ações dos personagens e a análise deles mesmos tomam conta da projeção. Cronenberg demonstra coragem ao dirigir seus personagens de um modo que os próprios vejam suas ações. Demonstrando maturidade ao não entrar como personagem-diretor (o que é uma constante em sua filmografia cheia de identidade), Cronenberg acredita que seus personagens, mesmo com suas perfeições e imperfeições, são instruídos o suficiente para realizar a análise sozinho. Resta ao diretor, então, registrar o debate apenas com o poder astuto de sua observação.

O que nos leva a brilhante lógica visual adotada pelo diretor. Utilizando uma lente angular que aproxima ao máximo o primeiro plano e deixa o segundo plano como uma "sombra", Cronenberg consolida sua iniciativa de deixar os próprios personagens se analisarem. Sabina fica em primeiro plano, com suas facetas desequilibradas, enquanto o corajoso Jung fica ao fundo, apenas elaborando as perguntas certas. O suíço, na realização do teste, se posiciona próximo a câmera, pois o que o diretor quer ver é a reação dele perante as respostas da mulher, o que não deixa de ser uma bela exceção a regra imposta. E se estabelecer e exceder a regra não são suficiente, Cronenberg ainda faz questão de subvertê-la, da maneira mais orgânica possível. Jung é um aprendiz e admirador convicto de Freud. Não por acaso, na primeira conversa dos dois, sobre o sonho de Jung, quem fica em segundo plano é Freud, o analista supremo. Para ficar na termologia do austríaco, o diretor atravessa o Id e o ego para atingir o superego, a subversão da própria regra, a demonstração de pleno domínio sobre a mesma.




Logo, se visualmente a análise já se esquematiza de forma interessante, se inicia a forma de aprofundá-la, com o belo roteiro escrito por Christopher Hampton. Os pais da psicanálise começam a se conhecer melhor - e as diferenças, obviamente, começam a aparecer. Freud, vivido com leveza e enorme competência por Viggo Mortensen, é pragmático em sua teoria. Já que a sua ciência, a mais subjetiva delas, é tão difícil de ser aceita pela sociedade, por que ir além do estudo das neuroses sexuais? Jung, por sua vez, se demonstra ousado como qualquer aprendiz. Não satisfeito em apenas estudar mais a fundo a mente humana, ainda sugere certa sobrenaturalidade da mesma (como prova a passagem da madeira).

Particularmente, as diferenças ficam mais explícitas. O que move Freud com sua teoria, afinal, é a sorte. Ao analisar o caso de Sabina, a russa que geme de prazer com a agressão de uma bengala em um sobretudo, o analista primordial se demonstra certo, ainda que seja um golpe do acaso. Otto, o personagem de Vincent Cassel, serve na narrativa para introduz Jung no conflito teoria X prática, que permeia o filme desde a gênese do conflito dos dois protagonistas. A Liberdade entra em embate com o Reprimido, o Sagrado bate com o Instinto. Ao se deixar envolver com Sabina, Jung cria a luta da Ternura contra o Carnal. Com a esposa, há o amor. Mas com Sabina, a paixão é pela carne - e pelo próprio ato de investigar a mente do ser humano. Após isso, é fácil ver que Jung é, após Otto, um psiquiatra claramente prático, enquanto Freud se limita á teoria.

Mas indo para o cruzeiro nos Estados Unidos, é fácil finalizar a discussão. Quando a Estátua da Liberdade entra na tela, ela se posiciona entre Freud e Jung. No final das contas, a resposta só chegará com o equilíbrio dos dois. Os dois estão certos - porque ambos estão errados. A liberdade da mente, fractal ao filme, só será alcançada com a união dos pensamentos de ambos. O resultado se vê hoje em dia.




Como filme histórico, obviamente, Um Método Perigoso carregaria na narrativa um evento marcante como consequência. Porém, o evento se torna algo muito maior, já que o Holocausto é mais estrutural e psicológico que físico aqui. Não é um maneirismo gratuito, afinal o filme perigava nem existir sem ele. O ariano Jung, enriquecido por seu casamento com a rica Emma, é invejado pelo judeu Freud, já que detém inúmeras posses. A judia Sabina, debate com Jung sobre a admiração por Wagner, um dos idealizadores da base do Nazismo. "Os anjos falam alemão", diz Jung. Não é difícil ver ali, naquele alívio cômico aparentemente superficial, uma tendência arrogante de se proclamar raça superior. Freud, por sua vez, diz para Sabina que "os judeus tem que ficar unidos", o que também não deixa de ser arrogante da mesma forma. Nesse conflito interessante das raças, deixando as ações erradas de ambos falarem por si só, o filme ultrapassa a difícil barreira de período histórico ao encaixar o conflito perfeitamente na narrativa, passada ás portas da Primeira Guerra Mundial.

Obviamente, Cronenberg ainda não tem a habilidade que tinha nos suspenses mentais-físicos e psicológicos nessa nova iniciativa, mas continua um mestre na narrativa. As elipses espaçadas, que permeiam perigosamente o gênero do filme histórico, aqui são quase perfeitas. O diretor trata com naturalidade a ida de Jung para o serviço militar, o que rende uma elipse que mal se nota (e não há elogio maior para uma passagem brusca de tempo). O esquema prossegue, nas tensas cartas trocadas em dias por Jung e Freud, mas se perde um pouco na elipse final, que sacramenta a rivalidade dos dois e dá o destino final aos personagens. Um erro menor, porém.

E o que finaliza com perfeição as três vertentes psicológicas do filme é perceber quem foi melhor aceito. Não por méritos, já que todos são brilhantes. Mas por mera circunstância. A antes problemática Sabina torna-se digna de analisar o antes racional Jung. O idealismo consumiu o suíço.




Por isso Um Método Perigoso é tão importante na filmografia de Cronenberg. Antes o diretor analisava de dentro da vítima, pois não sabia observar como um analista. Após ganhar certa experiência, o diretor começava a observar como contador de histórias, já que havia aprendido algo para construir seus personagens. Agora, Cronenberg ganha experiência suficiente para deixar seus personagens, construídos ao longo de uma filmografia, se analisarem sozinhos, por si só. Não por acaso, são três psiquiatras. O primeiro passo do diretor em sua terceira etapa.

Videodrome, Marcas da Violência e Um Método Perigoso. ID, Ego e Superego.