terça-feira, 27 de novembro de 2012

Operação Invasão



Operação Invasão
(The Raid, 2011)
Ação/Thriller - 101 min.

Direção: Gareth Evans
Roteiro: Gareth Evans

com: Iko Uwais, Joe Taslim, Donny Alamsyah, Yayan Ruhian

De modo geral, os filmes de ação pouco sofisticados que integram um grupo maior conhecido como o dos “filmes B”, possuem características típicas, recorrentes em maior ou menor frequência nos títulos que surgem ao longo dos anos. Grande parte das produções de ação B vem direto ao mercado de home vídeo – principalmente aqueles projetos estrelados por velhos atores que já não chutam ou atiram como antigamente, mas ainda precisam pagar a conta da hipoteca – e não se envergonha de ser um amálgama muito mal elaborado entre homens musculosos, armas de grosso calibre, combates corporais e péssimas direções de fotografia. Tais projetos se assumem como são: rasos, baratos e descerebrados. Têm o seu público, e uma vez ou outra, vemos filmes de pancadaria chegar aos cinemas. 

Um grande exemplo atual de filmes desse tipo que conseguem chegar aos cinemas é o de The Expendables. O projeto de Stallone reúne todas as características clássicas de um filme B oitentista, mas falta algo mais que o destaque da franca mediocridade. Falta algum clamor cinematográfico, uma força que atraque o espectador à poltrona e o faça sair da sessão energizado pelo espetáculo exibido. Esse clamor, essa energia fundamental se encontra em The Raid, filme indonésio de ação aclamado pela crítica estrangeira. 

The Raid chegou ao Brasil direto em vídeo justamente por se tratar, na sua sinopse, de um filme oriental simples de pancadaria, mutilações e violência. Um Ong-Bak genérico para as mentes dos distribuidores. Ledo engano, e um tremendo mau negócio para quem tutela os direitos de exibição do filme no Brasil, pois o longa do galês Gareth Evans produz uma catarse que arrebataria as bilheterias brasileiras. Certamente The Raid não impressiona pela sua trama, (que remete a outro filme de invasão recente, Dredd) que é rasa e narra à aventura semi-suicida de um grupo de 20 policiais que invade um prédio gigantesco em cujo interior aloja-se uma grande organização criminosa. Determinados a prender os criminosos e capturar os chefes da gangue, os oficiais da lei partem rumo à morte certa, sob um plano que não estava tão bem explicado assim...



Seu enredo assumidamente destituído de muitas complicações ou entraves narrativos proporciona a adrenalina que jorra aos litros ao longo da película. A antecipação pelo embate mortal entre a polícia e os criminosos só se equipara pela emoção que agitava os gamers de Counter-Strike antes do início de um jogo. Desse modo, a simplicidade de entendimento do confronto, mas também a grande importância e periculosidade inferidas a ele na cena inicial antes da invasão são estratégias inteligentes ao despertar no espectador o famoso frio na barriga. A expectativa ansiosa pelo que vêm a seguir. 

O que difere The Raid dos filmes médios do subgênero é que a expectativa criada tem resposta no decorrer da exibição. São muitas cenas de tiroteio realista, além de combates físicos estupendos. O design de som dessas partes só é superado em competência pelas coreografias de luta, que são as melhores que eu já vi nos últimos dez anos, e umas das melhores que já cheguei a assistir na vida. Diferente de toda a gama de longas do gênero que optam por cortar seguidamente as cenas de embate físico aqui se opta por takes únicos que permitem a apreciação do duelo.

É também grande mérito do diretor conseguir registrar as sequências de golpes com a vivacidade necessária. Os planos-sequência ganham movimentos minuciosos que ajudam a configurar a energia e potencia dos socos e chutes, como se a câmera do diretor de fotografia Matt Flannery bailasse junto aos atores. A fotografia extremamente granulada também auxilia na composição da atmosfera do local, enriquecendo o ambiente no que diz respeito à sujeira, enquanto a grande dessaturação representa a desolação que paira naquele local de violência aguda. Um trabalho técnico inquestionável também no que tange à trilha sonora. Se o design de som é um primor, as composições criadas com o auxílio de Mike Shinoda são coerentes com os momentos do filme, se revelando incrivelmente competentes no resultado final. 



Competência, aliás, é a palavra que melhor define The Raid. Tendo este elemento em abundância, o filme de Gareth Evans consegue subverter um gênero que tem por característica principal a falta de substância. A partir deste conceito, os realizadores tornam a própria sanguinolência e brutalidade do projeto na substância faltante. Não só pelo fascínio estético que causará em quem assiste, mas no efeito emocional que elas geram ao ameaçar seus vívidos personagens. A cena chave: o momento onde o protagonista, Rama, e outro policial se escondem numa parede falsa. A machete perseguidora cruza o anteparo e corta o herói no seio da face. Ele não grita, nem tampouco se choca. Preocupa-se, no entanto, em limpar o sangue da lâmina afiada que acabara de lhe cortar a carne.  A elevação da violência em The Raid ocorre num patamar onde ela é trazida a condição de atração principal, sem esquecer de levar em consideração seus efeitos futuros, passados e presentes na aura de cada personagem, e também no espectador. 

Dentro de suas limitações, The Raid é uma obra que destoa do geral por conseguir conferir certa vida a uma entidade inanimada – a violência. Consegue, através da excelência técnica, dar estofo e força a um item que é sub-aproveitado e mal executado em diversos filmes que, além de não possuírem substância, também não acertam a mão na ação. Um belo exemplar de que, às vezes, de coreografia e violência, também se faz cinema.

domingo, 25 de novembro de 2012

Roubo nas Alturas


Roubo nas Alturas
(Tower Hesit, 2011)
Comédia - 104 min.

Direção: Brett Ratner
Roteiro: Ted Griffin e Jeff Nathanson

com: Ben Stiller, Eddie Murphy, Casey Affleck, Alan Alda, Matthew Broderick, Stephen Henderson, Judd Hirsch, Tea Leoni, Michael Peña, Gabourey Sidibe


Na indústria cinematográfica, é corriqueiro o comentário sobre a época em que uma obra se passa. Em tempos de crise financeira afetando o país, surgem as mais diversas visões sobre o assunto. Oliver Stone fez em seu mediano Selvagens uma maneira de contornar a economia, assim como Soderbergh e seu Magic Mike. Em Roubo nas Alturas, até Brett Ratner, conhecido por suas direções sem alguma identidade, resolve conceber uma visão sobre o tópico. Em filmes blockbusters, nunca algo fora do comum, mas um leve parecer sobre a atualidade (até Transformers, por um lado, representa bem uma época). O novo de Ratner parte justamente de um problema de finanças para tecer sua narrativa, o que não deixa de ter sua relevância no atual cenário.

Estruturado como um filme de assalto a lá Onze Homens e um Segredo, o filme começa de forma simples apresentando a rotina do protagonista Josh Kovaks em seu emprego de chefe de segurança no prédio do título original (Towe Heist). Logo que ele chega em seu trabalho, a forma articulada com que faz suas ações demonstra a familiaridade com sua função, mas é a intimidade no tratamento com os funcionários ao seu redor que é o que caracteriza a bondade e honestidade do personagem de Ben Stiller. Também válida é a decisão do roteiro em incluir o obrigatório novato no ambiente, como o personagem de Michael Peña, que, ao ter seu primeiro dia no trabalho, serve como motivo para Josh mostrar ao espectador todo o ambiente. Mas ainda que tenha esse novato com função bem definida, o filme surpreendentemente escapa do didatismo ao transformar todos os empregados do roubo em iniciantes totalmente leigos.

A graça do bem-humorado projeto, portanto, é acompanhar a forma com que esses losers contornam as situações. Logo nesse início, quando Josh chega ao prédio, vemos rapidamente cada um que irá nos acompanhar na projeção, em situações que definem, de forma bem sutil até, suas personalidades. E a apresentação do vilão do filme é interessante justamente pela maneira nada ameaçadora com que ele é retratado (é um leão de Wall Street, afinal). Dotados de uma vulnerabilidade, que tanto os aproxima do espectador como dá certa urgência ao roubo (nunca se sabe ao certo se aquilo dará certo mesmo), os personagens de Roubo nas Alturas possuem inesperado carisma em suas simples composições, ainda que a tendência óbvia seja a de Eddie Murphy roubar a cena na sua volta a papeis como os que realizava nos anos 80 (e, de fato, o ator está muito bem).


Nisso, o roteiro de Ted Griffin e Jeff Nathanson se revela cheio de fórmulas prontas como a maioria dos filmes de roubo (Griffin roteirizou Onze Homens e um Segredo). Porém, o subgênero é um dos mais bem sucedidos em Hollywood, apesar de nunca se entregar a uma grande evolução. Competentes longas, que vão de Atração Perigosa e Uma Saída de Mestre a Velozes e Furiosos 5, utilizam da consagrada divisão de três atos do manual do Heist Film e, talvez até por isso, continuam empolgantes. Se Roubo nas Alturas surpreende, portanto, é por conseguir construir um primeiro ato consistente, baseado apenas nas pessoas ali retratadas. Após este ato, o roteiro se desenrola apenas no planejamento e execução do roubo – e o que eventualmente dará errado.

O diretor Ratner, bastante contido e construindo uma boa atmosfera urbana com o excelente fotógrafo Dante Spinotti, consegue então estabelecer um cenário de opressão financeira aos trabalhadores da Tower sem muito esforço. E isso se reflete na excelente escolha de elenco: por mais que sejam competentes, todos do elenco têm algum elemento de B-list das estrelas hollywoodianas, com a exceção clara de Ben Stiller, que não só é o protagonista como compensa essa tendência com sua já conhecida postura retraída em seus “filmes-família”. Já Matthew Broderick e Eddie Murphy, astros de muito sucesso no passado e agora entregues a projetos que mal aproveitam seus talentos, são exemplificações perfeitas; Casey Affleck e Michael Peña, por mais competentes que sejam ainda não são totalmente estabelecidos no cenário hollywoodiano; Alan Alda, vivendo o vilão, é um nome forte na TV que nunca se estabeleceu em produções grandes; e, claro, a presença da mais expressiva das atrizes de comédias bobas, Tea Leoni, no papel da agente do FBI. E nesse entretenimento bem executado que é Roubo, as atuações são bastante orgânicas.

Parte dali, então, o comentário sobre a recessão. Os funcionários promovidos a ladrões são movidos por um sentimento de justiça que não poderia ser mais relacionado à crise: se um homem, vivendo na cobertura com sua piscina com estampa de uma nota de cem dólares, pode estar tão bem de vida após roubar nosso suado dinheiro, por que ele teria que sair impune?  A motivação no rosto dos empregados é forte, apesar de se detectar com tanta facilidade o discurso pronto do filme. Bastante inocente, o filme de Ratner acredita na solução imediata financeira. E, principalmente, acredita que pode arrumar formas de punir os ricaços da Bolsa de Valores que foram responsáveis pelo desastre do excesso especulativo. Mas já que a produção é cercada de personagens que acreditam nessa ideia, não é tão absurdo aceitar o filme. Ainda que possua esse leve comentário, Roubo nas Alturas ainda é um esquemático blockbuster que diverte justamente pela previsibilidade. Nada ali, no final das contas, deve ser levado muito a sério, mas é divertido pensar que mesmo um bobo heist movie bem-humorado de 85 milhões ainda possua seu parecer sobre os tempos difíceis de agora.


E pela previsibilidade, obviamente, enfileiram-se as situações que mantém o roteiro dentro de uma estrutura conhecida. Para conseguir um “olheiro” dentro da Tower, acaba existindo um conflito no grupo, ainda que este não tenha sido planejado e surja apenas conveniente; na falta de uma forma plausível de abrir o cofre, transformar a faxineira em uma expert de fechaduras termina sendo a saída; o protagonista Josh deve ter um interesse romântico, por mais perigoso que ele seja; a verossimilhança é jogada fora assim que for conveniente; e, claro, que no clímax algo dará bastante errado no roubo e tudo terá que ser reorganizado. Mas nada disso atrapalha a montagem segura de Mark Helfrich e o bom olho de Ratner para suspenses cômicos, embalados, aliás, por uma trilha de Christopher Beck que, finalmente, funciona. O ritmo da projeção é bem-sucedido e, ainda que tenha uma inocência um pouco acima do normal, o discurso do filme é facilmente absorvido.

Quando não se tem um fundo intelectual muito grande a ser abordado e explorado, há a saída de investir na emoção. E Brett Ratner, inexpressivo em sua alcunha de um dos maiores diretores de aluguel da indústria, até consegue realizar um pensamento mais consistente, sem que perca a diversão garantida que todos seus filmes devem ter. E a estrutura de filme de assalto melhor empregada (Griffin e Nathanson são profissionais competentes em um filme mais descompromissado, afinal) do que no seu anterior Ladrão de Diamantes transforma Roubo nas Alturas em algo levemente melhor que este, a aceitável trilogia Hora do Rush ou até mesmo o terceiro X-Men.

Raro blockbuster onde tudo o que é pra dar certo, dá, considerando até mesmo o que se erra. Para um filme sem muita ambição, os erros são tão corriqueiros que são facilmente perdoáveis. Não tem força para ser chamado de evolução na filmografia de Ratner, mas sem dúvida é um passo competente e que diverte sem muito esforço.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Argo


Argo
(Argo, 2012)
Drama/Thriller - 120 min.

Direção: Ben Affleck
Roteiro: Chris Terrio

com: Ben Affleck, John Goodman, Alan Arkin, Bryan Cranston, Victor Garber


Ben Affleck se redescobriu na função de diretor. Ainda que consagrado comercialmente como ator (após seus sucessos em blockbusters como Armageddon, Pearl Harbor e Demolidor), fora em 2007 que sua volta aos holofotes da crítica ocorreu. Retornando ao posto de roteirista que o colocou no mapa de Hollywood no premiado Gênio Indomável (escrito em parceria com seu amigo Matt Damon), Affleck recebeu vastos elogios por sua estreia na direção em Medo da Verdade. Em 2010, se estabeleceu como promissor realizador de policiais expressivos ao dirigir o aclamado (e seguro) Atração Perigosa. Mas se parecia que o reinventado Affleck, ávido por uma segunda chance da indústria, rumava para uma carreira semelhante à de Michael Mann, acabou se mostrando estreito. Em sua nova obra, Argo, o californiano expande suas ambições e cria uma politizada visão sobre uma época e ainda se afirma um interessante criador de tensão.

Ambientado no final dos anos 70, o filme conta a história da Crise dos Reféns em Teerã, quando houve a tentativa de resgate pela CIA através da falsa equipe de filmagens de um longa que seria ambientado no Oriente Médio. Para uma trama com características tão singulares em sua mescla de absurdo com uma crescente tensão, o roteiro de Chris Terrio constrói uma estrutura muito hábil e que se prova satisfatória em conjunto com a forte montagem. Na busca por uma unidade na distinta narrativa, Terrio consegue um mote para cada elemento da narrativa: enquanto o nervosismo toma conta da tela no tratamento dado ao sequestro dos diplomatas, o absurdo na consistência da missão planejada pela CIA se mostra coerente na sátira realizada a toda Hollywood. Entre esses dois espectros, o protagonista Tony Mendez tenta organizar sua missão.

Mas primeiro, o absurdo da sátira. Sátira essa que é representada brilhantemente pelo executivo Lester, vivido por Alan Arkin, e pelo maquiador John Chambers, interpretado por John Goodman. Logo que entra em contato com os dois representantes da indústria, Mendez é recebido com ácidos comentários dos velhos jogadores da Terra da Mentira. Enfileram-se as marcantes passagens, tanto sobre as excentricidades do local quanto sobre os simplismos dos que o povoam. Quando o protagonista fala do perigo que o Aiatolá representa, Lester compara o segundo ao Sindicato dos Roteiristas; ao falar de cavalos, alguém compara o filme fajuto a um faroeste porque “se tem cavalos, só pode ser faroeste”. Não cabe me estender ao revelá-las, já que uma das surpresas de Argo é justamente esse comentário cínico que a Warner faz a si mesma, algo sem a visão quase surrealista de Trovão Tropical e que possui um conteúdo tão forte e engraçado quanto.


Se a primeira vista a ideia de mesclar o ridículo da missão (“É nossa melhor pior ideia”, diz o agente vivido por Bryan Cranston) com uma crise violenta é arriscada por talvez tirar a gravidade da situação, Affleck e Terrio (junto com William Goldenberg, montador do também ritmado Medo da Verdade) surpreendem ao saberem criar um ritmo que freie a sátira quando o filme parece que vai ficar muito descompromissado – e que sabe ser engraçado quando a situação fica insustentável de tão grave. Para as imagens de impacto, Affleck é bastante feliz ao conceber tensão através de pequenas ações. Repare como a impressão das passagens é bem desconfortável, sem que isso se torne muito forçado ou inverossímil. Tanto as imagens de arquivo, como as dos protestos no Irã, quanto às recriadas pelo diretor (a montagem com a cena da tortura é espetacular) são fantásticas na função dramática. E apesar da cena com os fiscais, no clímax, ter alguns empecilhos em horas convenientes demais, a tensão é tão bem construída por Affleck que a cena se torna totalmente satisfatória, compensando esse pequeno erro.

Indo além da narrativa, Argo ainda se demonstra poderoso retrato da época. Visualmente, o diretor cria com o fotógrafo colombiano Rodrigo Prieto uma excepcional atmosfera setentista divididas nas duas camadas do filme. Em Hollywood, há certa tendência solar ao clima, sempre otimista e dotado de leve glamourização (o que reforça o amor cinéfilo de Argo, que falarei a seguir). Já no Irã, na desesperadora situação da guerra, a granulação domina quase todas as cenas e a calculadamente nervosa câmera registra cenas chocantes (como as citadas cenas do galpão da tortura e da à multidão com raiva). Até mesmo no mercado de especiarias, a tensão domina com a granulação, mesmo que a câmera fique um pouco mais estática. Somando isso aos precisos figurinos e maquiagem (Affleck parece oriundo dos 70 por completo) e ao excelente uso de músicas da época, com as breves utilizações de When the Levee Breaks e Sultans of Swing, e temos uma atmosfera muito bem definida e instalada para abrigar uma história com temas complexos como esta.

Temas complexos, esses, que conseguem até mesmo criar uma (ótima) cena toda baseada em ideologias. Os problemas contra estrangeiros são mostrados na já citada cena do mercado. Quando Affleck passa com sua equipe no meio de tantos orientais, uma briga começa do nada. Então, a intolerância xenofóbica é demonstrada verbalmente e quase fisicamente, dando um mal-estar marcante à situação. Além disso, ao final, discute-se muito sobre o papel que os Estados Unidos pode fazer no mundo em termos de intervenção militar (“por que não fazemos ações como essa?”, diz alguém, injustamente, no final), mas de uma maneira que é otimista sem soar ufanista. Nesses temas, Affleck se aproxima bastante do cinema de George Clooney (não por acaso, produtor do longa), que realiza crônicas fortes baseadas em tópicos políticos, mas não soa propagandista. Como registro narrativo, porém, o californiano Affleck é mais feliz que Clooney, já que é o que melhor concilia sua história com seus temas de subtexto sem que isso intervenha tão ativamente na trama.


Mas se a ficcionalização de alguns fatos é inevitável, esta serve mais ainda para falar do amor cinéfilo do filme. A câmera de Affleck e Prieto anda pelos cantos de Hollywood com um misto de nostalgia e admiração por aquele cinismo todo. O letreiro da cidade é mostrado em seu estado incerto da época, enquanto a coletiva de imprensa falsa passa aos olhos do espectador com várias luzes e em uma câmera lenta que parece eternizar os fatos; action-figures são vistas nos créditos finais, uma leve representação da própria Hollywood; e mesmo quando conversas banais ocorrem na cidade, algo interessante parece estar ocorrendo. Quando Lester e John conversam sobre Tony, perto do final, eles acabam passando por uma gravação. A prova definitiva desse amor soberano, porém, vem naquele que é o melhor diálogo do filme; ao citarem uma passagem de Marx para Lester, o personagem de Arkin rapidamente questiona: “Groucho disse isso?”

Surpreendendo ainda como ator, Affleck supera novamente o desafio de protagonizar o próprio trabalho. E repare como as expressões do ator, sempre levemente sisudas, parecem calculadamente entre a bondade e a observação, o que nos assegura tanto da competência quanto da honestidade de Mendez. Além do mais, o americano prepara o elenco secundário com destreza, já que os diplomatas sempre convencem em suas funções (e seus rostos pouco conhecidos do público dão mais gravidade à situação). E John Goodman e Alan Arkin formam uma das mais divertidas presenças cômicas no ano, com uma afinação incrível e comentários tão esclarecedores quanto ácidos e divertidos. Digno de prêmios coadjuvantes, até.

Embasado político sem perder a maturidade (sempre se reconhece que a missão, por mais benéfica, fora baseada em diversas farsas), mesmo sem esconder sua devoção pela cinefilia, Argo tem tudo para acumular estatuetas. E o melhor: com todos os merecidos aplausos possíveis. E um especial a Ben Affleck, se revelando um diretor muito interessante (repare o imponente zoom na comemoração do final) e que dá um passo a frente em sua carreira ao discutir com relevância ímpar sobre temas relevantes e contemporâneos, além de se revelar um excepcional narrador.



sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Marcados para Morrer


Marcados para Morrer
(End of Watch, 2012)
Thriller/Drama - 109 min.

Direção: David Ayer
Roteiro: David Ayer

com: Jake Gyllenhaal, Michael Peña, Anna Kendrick

Às vezes, todas as boas intenções acabam não sendo suficientes quando aqueles responsáveis por realizar uma obra cinematográfica decidem sabotar o esforço de produtores, atores e roteiristas (quando estes não estão envolvidos no ato "terrorista", o que então caracterizaria a produção como auto-sabotagem) destruindo uma historia funcional em detrimento de um estilo, ou linguagem.

Marcados para Morrer (título genérico de filme de ação B que vai direto pra vídeo) conta a historia de dois policiais que trabalham na zona de confronto mais complicada e perigosa de Los Angeles. São eles, Brian (Jake Gyllenhaal) e Mike (Michael Peña), parceiros e amigos muito próximos que dividem histórias, amizade e o risco diário de acabarem mortos em uma zona de guerra não oficializada.

O mais interessante na produção é a química inegável conseguida entre Gyllenhaal e Peña, que parece autêntica. As muitas cenas que acompanham os dois atores dentro de um carro de polícia conversando sobre a vida, o universo e tudo mais, são de longe as mais funcionais do filme. O que não chega a ser um elogio já que a produção recheia sua historia com diversas sequências de ação.


Embora o esforço dos protagonistas seja notório, e que o roteiro seja bastante claro com a historia que pretende contar, o diretor (que curiosamente também o roteirista) David Ayer destrói completamente seu próprio filme quando sofre uma crise aguda de falta de bom senso, inserindo uma intenção fajuta de ser "realista", apostando no risível found fottage. Pior, ao invés de apresentar seu filme inteiramente com essa "linguagem", que apesar de destruir qualquer trabalho estético na concepção das cenas, tem lá seu impacto emocional, mistura sem nenhuma explicação linguagens diferentes apenas prejudicando a compreensão daquilo tudo.

Explico: o filme começa com Gyllenhaal dizendo que está gravando tudo para um projeto em sua faculdade de cinema (oi?), já que como ele gostaria de fazer direito, mas precisaria de créditos a mais para conseguir seu intento, optou por outra qualquer (faz algum sentido para vocês?). Pois bem, mesmo com essa explicação trágica, vamos comprar a ideia de acompanharmos Gyllenhaal e sua câmera de mão, somadas as duas micro-câmeras colocadas nas fardas dele e de seu parceiro e das câmeras, essas sim reais, que ficam dentro do carro da polícia (três para ser exato: uma no console do carro, uma que filma a parte de trás da viatura e outra na frente - aquela que é comumente usada em vídeos policiais). O problema acontece quando ao film da primeira sequência que envolve essa linguagem, Ayer insere uma panorâmica pela cidade de Los Angeles que é seguida por uma longa conversa entre os bandidos da vez. Quando a malandragem termina de conversar, um deles olha diretamente para a câmera e pede que a mesma seja desligada. Ou seja, como é possível que o found fottage, que claramente indica que aquela filmagem foi encontrada e/ou editada por alguém ter sido captada com os bandidos? Será que eles cederam suas imagens? Esse tipo de problema de linguagem atrapalha consideravelmente a credibilidade da obra, já que o filme nos engana ao afirmar que veremos o filme por um ponto de vista único, para depois subverter, sem nenhum resultado prático essa intenção.

Outro problema desse tipo de linguagem é a dificuldade de compreender o que acontece em uma sequência mais tensa ou de ação, como a que envolve um incêndio que os dois policiais acabam se envolvendo. Dificilmente o espectador vai conseguir compreender o que está vendo.


O roteiro como disse não é ruim e apesar de se basear em um conceito absolutamente frágil (policiais enfrentam a vida dura das ruas) ainda acrescenta uma historia de amadurecimento, sacrifício e amizade, nada brilhante, mas que funciona tranquilamente.

Se a direção de David Ayer não fosse tão transloucada querendo mostrar oitenta mil linguagens cinematográficas em um mesmo filme, Marcados para Morrer seria até uma diversão competente, uma reunião de dois policiais "casca grossa", mas honestos (coisa rara de se ver no cinema) enfrentando os vilões genéricos e realmente malvados (os traficantes "chicanos" são de uma canastrice impagável). Esse é um caso de estudo: teria Ayer muita raiva de seu próprio trabalho a ponto de tentar sabotá-lo?



sábado, 3 de novembro de 2012

Magic Mike


Magic Mike
(Magic Mike, 2012)
Comédia/Drama - 110 min.

Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: Reid Carolin

com: Channing Tatum, Alex Pettyfer, Matthew McConaughey, Olivia Munn

Dono de um estilo visual expressivo, Steven Soderbergh tem uma facilidade ímpar em transitar por gêneros. Responsável por projetos tão competentes quanto distintos, como Traffic e Onze Homens e um Segredo, o diretor também possui o dom de realizar filmes tanto com centenas de milhões quanto com menos de 1 milhão. Após começar no cinema independente, construir sólida carreira e anunciar sua aposentadoria daqui a dois anos, Soderbergh se consolidou como profissional de sucesso, mas segue assumindo projetos arriscados – o que acaba gerando os inevitáveis erros. Após o lançamento de Solaris, o nível prolifico do diretor se intensificou e acabou tornando a jornada, que já tinha tendência a não manter um padrão, mais irregular do que o previsto. Se há nessa fase recente um avanço em sua filmografia (Che é seu estupendo épico, O Desinformante é uma comédia interessante, Contágio é seu alarmante terror panorâmico), muitos esforços servem apenas para exercício estilístico, como o recente Haywire, a primeira continuação da trilogia dos Homens e o independente Girlfriend Experience.

E Magic Mike, seu novo filme, tenta conciliar os dois Soderbergh. É sim, um retrato da vida de um stripper em um lugar paradisíaco e da eterna adolescência que um modo de viver causa (com um leve toque de conto sobre a crise financeira), mas também é uma comédia divertida sobre homens depilados dançando e enlouquecendo sua clientela. Parte Ou Tudo ou Nada, parte Project X, Magic Mike vai na corda bamba entre o comercial e o autoral de uma maneira um tanto correta, mas acaba por se limitar pelo próprio material de origem.

Já que glamour é o que interessa no mundo dos dançarinos, Soderbergh investe em uma fotografia bem opaca no início. Mike encontra Kid em um bico como pedreiro, com um clima inexpressivo – o que só potencializa a glamourização nos shows da casa liderada pelo stripper quarentão Dallas. Soderbergh então lança mão de sua estilização característica, ora trabalhando para a narrativa (a utilização dos ícones americanos, as referências cinematográficas) ora resgatando elementos corriqueiros em seus trabalhos (o letreiro é egresso de Treze Homens e um Novo Segredo, as sombras que mitificam Dallas são as mesmas que aumentavam Mallory em Haywire). Tudo na casa é feito justamente para causar no espectador (ou nas mulheres presentes ali) um entendimento do ritmo frenético da profissão dos homens. Dallas diz que seus empregados são os maridos que essas mulheres nunca tiveram. Os problemas começam para os personagens, não por acaso, quando o modo de vida deles é confundido com o que fazem para viver.


Não é um questionamento absurdo. Magic Mike tem passagens totalmente focadas na diversão dos seus personagens com uma inconsequência característica de projetos sobre jovens em fase de transição para a vida adulta. Logo, é previsível que Mike tenha problemas relacionados aos mais velhos, após ser alertado sobre seu jeito juvenil demais de levar as situações. E o que tinha sua parcela de descompromisso com as amarras da sociedade, acaba por se revelar um conto com traços moralistas. O foco na mudança financeira de Mike, um tanto velado ao longo da introdução, acaba sendo claro ao se tornar um dos principais motivos para Mike revelar-se um “adulto de verdade”. Soderbergh então demonstra uma fidelidade ao padrão de comportamento que só mostra a frágil estrutura adotada pelo roteirista Reid Carolin.

Através da figura de Kid, sempre supervisionado pelo olhar de Mike, a trama vai se revelando e evoluindo. O que começa prometendo um divertido conto sobre um modo alternativo e curioso de ganhar dinheiro acaba se revelando apenas um novo exemplar sobre o uso do corpo para o trabalho – fato que não diferencia muito Magic Mike e filmes inexpressivos como Bruna Surfistinha. O stripper vivido por Alex Pettyfer tem todas as características do arquétipo do moleque perdido: é solitário, despreocupado, sem perspectiva – e, claro, tem uma irmã gostosa que é bem mais madura que ele. Até mesmo sua entrada para a equipe é clichê, já que um dançarino oficial “passa mal” do nada. Kid se encanta com o mundo mostrado por Mike, que promete mulheres, diversão e dinheiro bom (o que se revela verdade). Além disso, demonstrações explícitas de bromance (como a na festa no meio do filme) só reforçam que essa vida também traz amizades. Mas ao mesmo tempo em que Kid tenta entrar no mundo, Mike vai tentando sair. Ao tornar claro o coming-of-age do protagonista, o filme mescla as consagradas viradas do subgênero em seus dois núcleos. Kid, já que trabalha com seu corpo, tem que ter um problema físico para se tocar de sua inconsequência (e, claro, tem que ter como causa o seu modo de vida deturpado). Mike, que não é levado muito a sério nem quando coloca um terno, só é julgado como maduro quando largar a casa de shows. Ser stripper é tão maléfico assim?

O que só piora quando temos a surpreendente constatação que tanto roteirista quanto diretor não saibam diferenciar direito amadurecer e se enquadrar na sociedade. Ao eleger a profissão como fator ruim da vida do protagonista (e não a promiscuidade ou as drogas em excesso), o filme se equivoca e só interessa mesmo por ser tão bem conduzido em ritmo por Soderbergh – e é curioso o fato de Magic Mike ser maior que Contágio, filme do mesmo diretor e que contém diversos outros núcleos. A sensibilidade e bom olho para desenvolvimento, ainda que sabotada pela previsibilidade do roteiro, faz com que os 110 minutos passem de forma bastante fluida. As sequências de dança são cheias de vitalidade e auxiliam o ritmo do filme quando o mesmo parece que vai se prender demais aos conflitos internos dos eternos desmedidos, que procuram a todo o momento dilatar sua adolescência. Ainda que a incorreção de um Project X ou de Anjos da Lei (onde Tatum está tão bem ou até melhor) não se faça presente, a cafonice dos personagens imitando símbolos de virilidade vale a visita.


Mas fora a diversão, pouco sobra. Os americanos sarados fazem seu churrasco na praia, cheio de energia positiva. Para um conto sobre a crise financeira, até que Magic Mike é bem fiel ao ideal capitalista. Afinal, o trabalho representa o homem para os realizadores. Perto do final, Mike diz a irmã de Kid que ser stripper não é seu modo de vida, é só sua profissão. Alguém deveria falar isso para Carolin e Soderbergh.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Elefante Branco


Elefante Branco
(Elefante Blanco, 2012)
Drama - 110 min.

Direção: Pablo Trapero
Roteiro: Pablo Trapero, Alejandro Fadel, Martín Mauregui, Santiago Mitre

com: Ricardo Darín, Jeremie Renier, Martina Gusman

Pablo Trapero é um poeta da "desgraça humana", e parece muito interessado em mostrar situações em que o ser humano surge debilitado e em localidades em que o olhar do público médio não gosta, nem costuma entrar. Se em seu filme anterior, o ótimo e amargurado Abutres ele deu voz aos homens e mulheres que vivem em função do resultado da violência, em Elefante Branco ele nos coloca na linha de frente, acompanhando o dia a dia de uma comunidade marcada pelo medo e pela violência.

Por estarmos em um país - infelizmente - acostumado a esse tipo de história, nossa relação com a pobreza é muito intrínseca e direta e facilmente criamos laços com aqueles personagens, sejam com os moradores ou padres vívidos pelo excelente Ricardo Darin e o igualmente ótimo Jeremy Renier (oriundo dos filmes dos irmãos Dardenne).

O padre Julián (Darin) é o líder de uma pequena revolução social que pretende acabar com a pobreza da região, ao colocar em prática o que os governantes prometeram e não cumpriram. Fazer do "Elefante Branco", um gigantesco prédio abandonado, um hospital que sirva a população carente. Além disso, pretende criar moradias para os habitantes daquela favela portenha. Julián sofre, pois sabe que sua busca pela paz dificilmente será alcançada em vida e por isso prepara um sucessor, na figura de Nicolás (Renier), um padre belga missionário que quando o filme começa está em meio a uma pregação em uma região isolada da Amazônia. Se junta aos dois protagonistas a assistente social vivida por Marina Gusman, outra abnegada que vive pela causa e também em processo "sacerdotal", já que sua dedicação aquela representa tudo o que tem em sua vida.


O que Trapero faz é discutir sem concessões todos os aspectos que criam esse cenário de pobreza em que estas pessoas vivem. Atira para todos os lados e de forma segura com uma densidade de discussões que fazem dos personagens principais absolutamente humanos, expondo sem dó todas as suas dúvidas e medos diante da dificuldade da tarefa que executam.

Da política da igreja que tira o corpo fora diante da dificuldade de levantar fundos para o término das obras, passando pela truculência policial na base do atire antes e pergunte depois, a ignorância de parte dos moradores que tem enorme dificuldade para compreender a lentidão dos processos em que estão metidos e por fim a violência estúpida e indiscriminada do tráfico, retratada de forma realmente assustadora.

Tecnicamente Trapero é um diretor profundamente competente, conseguindo apresentar um cenário absolutamente crível, auxiliado por uma construção de cenário úmida, que parece exalar mofo dos fotogramas, tamanha dificuldade de compreendermos como alguém conseguiria sobreviver ali. Nada diferente do que vemos no nosso dia a dia e exatamente por isso, funciona com tamanha precisão. Outro destaque é a construção de cenas, desde as que são voyeuristicas e apenas observam as confissões dos personagens, passando pelos tensos planos sequências que apresentam cenas de ação ou de descobrimento daquele habitat estranho, geralmente protagonizadas pelo personagem de Renier, como a que o padre vai atrás do corpo de um rapaz morto pelo tráfico em um ponto extremo da favela e tem de passar por uma série de corredores e salas realmente assustadoras.


Como disse, a jornada do trio de protagonistas é brilhantemente ilustrada e os três tem caminhos tridimensionais. Com Darin questionando sua jornada e proferindo frases muito inteligentes, enfrentando os elefantes brancos pelo caminho em uma caminhada de sacrifício pessoal, onde viver é muito mais difícil do que simplesmente desistir, Renier e suas dúvidas sobre sua fé, suas escolhas e sua vida enquanto Martina busca encontrar algum conforto em meio à tamanha violência.

Dono de um ato final cruel, Trapero não tem medo de nos chocar, nos despedaçar emocionalmente, fazendo com que talvez a esperança de lugar ao amargor da realidade. Trapero não tem medo de apontar sua câmera para o que enxerga de errado e levantar sua bandeira revolucionária social, apontando os problemas e de forma muito humilde nos dizendo que estes são tão enormes e difíceis de serem resolvidos que nem ele encontra uma solução.