sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Kick-Ass 2



Kick-Ass 2
(Kick-Ass 2, 2013)
Ação/Comédia - 103 min.

Direção: Jeff Wadlow
Roteiro: Jeff Wadlow

com: Aaron Taylor-Johnson, Chloe Grace Moretz, Jim Carrey, Christopher Mintz-Plasse

O primeiro Kick-Ass era um caso raro em que a adaptação era infinitamente superior ao material original. Enquanto Mark Millar não gostava (e parece continuar não gostando) de seus personagens humilhando-os constantemente e aguardando que o público conseguisse sentir alguma coisa além de dó de seu protagonista, o filme de Matthew Vaughn era descolado, divertido e não se levava a sério, ao mesmo tempo em que era levemente critico. Mas basicamente existia um carinho pelos personagens que na obra original inexistia.

Apesar de não se tornar um sucesso estrondoso de bilheteria, o filme conseguiu muitos fãs entre os que leram e os que não leram os quadrinhos originais, fazendo do filme um cult. Com essa aura sobre o original, uma continuação era mais do que prevista. Mais dai começaram os problemas. Diferente do original onde havia uma obra pregressa que - mesmo sendo ruim - dava bases e criava os personagens para essa adaptação, nesse a produção teria de sair do zero. Mark Millar pensando na "arte" topou escrever uma sequência, que honestamente não faria muito sentido, já que o tom e o final da mesma é completamente diferente do filme. Para piorar, Matthew Vaughn abdicou de dirigir a sequência atuando apenas como produtor, deixando o cargo para o inexperiente Jeff Wadlow. Some-se a tudo isso, um coadjuvante que as vésperas do filme ser lançado decide não participar da divulgação do mesmo por considerá-lo "violento demais".

Cheirava mal, não? E de fato, se não é uma porcaria é sim uma tremenda decepção. Mais preocupado em - sério - dar estofo emocional aos personagens e pensar em traumas a serem reproduzidos, do que em divertir o público com sequências de ação non-sense, personagens carismáticos e bom humor que tinha muito de besteirol, o filme fracassa por não ter condições de ser aquilo que imagina ser.


Kick-Ass (o personagem) não é tão cool como o Homem-Aranha. Hit-Girl por mais que seu pai tenha morrido de forma brutal no filme anterior, não é o Batman e principalmente, Red Mist (que muda de identidade e é chamado de Motherfucker) não é um grande vilão, portanto querer produzir um filme com base em curva de amadurecimento desses personagens é perder o foco do porque o primeiro filme funcionou tão bem.

Em substituição aos nerdismos, piadas e non-sense entra uma dose cavalar de humor grosseiro e violência que não diverte, apenas nos leva a bocejos eventuais. A trama em que Kick-Ass se reúne a uma espécie de "Liga da Justiça" genérica não só não funciona como deixa de valorizar os próprios personagens. São uma dezena de novos heróis que - segundo o roteiro - foram inspirados por Kick-Ass e Hit-Girl. Enquanto isso, Mindy/Hit Girl chega à adolescência e passa por um "coming of age" dos mais desnecessários, tendo de ser manter fiel a uma promessa feita ao pai e deixar de usar a roupa de Hit Girl. Os constantes sermões do pai adotivo da garota de que "ele não quer essa vida para ela" e "que ela não é a Hit Girl" são tão reciclados de tantas outras produções que não causam a menor comoção no espectador. Mesmo porque, percebemos que a competência policial nesse filme é das mais baixas registradas recentemente o que reforça a ideia de que aquela garota podia perceber que ela deveria abdicar de uma promessa absolutamente idiota e sem sentido (afinal, a garota foi treinada como uma assassina mortal, mas não pode deixar de obedecer ao tal policial, o que a transforma numa espécie de animal feroz enjaulado).

Jim Carrey tem até certa razão em reclamar da violência de Kick-Ass 2. Não porque ela seja tão mais exagerada do que a do primeiro filme, mas porque ela é tão gratuita e mal colocada que não consegue transformar o conceito escapista em "sério" e sabota a diversão vista no filme original. Diferente do primeiro Kick-Ass esse não é de fato, um filme "divertido". É sisudo, mal encarado e com personagens que apelam para a violência simplesmente por apelar. Se no primeiro filme ela era cartunesca (afinal voar de jet pack ao som de "Aleluia" e atirar no vilão com uma bazuca são de fato bem próximos da realidade), aqui ela é suja e não combina com o cerne daqueles personagens. É como imaginar o Coyote do Papa-Léguas usando um AK-47 para perseguir sua presa.


Carrey no entanto, apesar de criticar o filme, faz do Coronel Stars and Stripes um personagem divertido, o mesmo valendo para a coleção de figuras excêntricas que fazem parte da Liga. Já Mintz-Plasse se era ingênuo e divertido no primeiro filme, aqui é simplesmente chato. Motherfocker não tem carisma algum e quando tenta parecer um daqueles vilões engraçados e que sempre se dão mal no final erra no tom e parece aborrecido. O mesmo vale para seus comparsas que entram e saem do filme sem nem lembrarmos o que fazem à exceção de Mother Russia, uma halterofilista violenta e cruel que parece a hipotética filha anabolizada (mais) de Ivan Drago e Sagat do Street Fighter. Visualmente impactante, mas narrativamente apenas um adorno estranho.

Hit-Girl segue sendo a alma e coração do filme e Chloe Moretz provando o quanto vai melhorando a cada ano. Madura e conseguindo alguma resma de profundidade em um roteiro exagerado é a que melhor se sai, enquanto Aaron Johnson parece perdido como seu personagem, sem saber se abraça o Kick-Ass "malvado" desse segundo filme ou se ainda guarda algum resquício de Dave Lizewski, da primeira produção.

As sequências de ação são praticamente esquecíveis e algumas até mal realizadas, como a que envolve Hit Girl no alto de vans. A batalha final recheada de gente parece mal fotografada, nunca conseguindo dar o escopo que o filme gostaria de emular. Decepcionante e provavelmente sepultando chances de uma terceira produção, Kick-Ass 2 é um rascunho mal feito da diversão escapista e non-sense do filme original, com muito mais barulho, violência gratuita e personagens enfadonhos e que parecem ter se esquecido do que eram.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os Suspeitos

Os Suspeitos
(Prisoners, 2013)
Thriller/Drama - 153 min.

Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Aaron Guzikowski

com: Hugh Jackman, Jake Gylenhaal, Viola Davis, Maria Bello, Terrence Howard, Melissa Leo, Paul Dano

Denis Villeneuve me impressionou positivamente com "Incêndios", um dos filmes mais intensos que vi em 2012. Antes disso ele também foi muito elogiado por "Politécnica", produção que vergonhosamente ainda não consegui ver. Portanto, havia uma expectativa para sua estreia no mercado americano e com dois filmes de uma vez: o suspense Enemy e o filme analisado aqui, Os Suspeitos.

Confesso que vendo a divulgação do filme, especialmente o trailer apresentado, e a sinopse da produção me questionei se o canadense não estaria estreando com um projeto "sem assinatura", onde seria controlado pelo estúdio em busca de um veículo para Hugh Jackman e Jake Gyllenhaal. Porém, além da presença dos dois atores, o elenco ainda apresentava Maria Bello, Terrence Howard, Viola Davis, Paul Dano e Melissa Leo. Todos os atores com indicações ao Oscar e com talento. Passou-se algum tempo e o filme estreou em diversos festivais e foi muito bem recebido. Opa, talvez existisse alguma coisa ali, talvez eu tivesse sido tomado pelo ranço do trailer expositivo e óbvio. Ou, talvez existisse uma predisposição dos colegas em gostar do filme pelo pedigree de seu condutor. Dúvidas que só poderiam ser respondidas quando assistisse a produção.

Durante "Os Suspeitos" fui percebendo que não conseguia piscar. Não era - felizmente - um problema físico, mas a excelência da trama mostrada por Villeneuve. Utilizou-se dos clichês do suspense a seu favor e criou uma trama em formato de quebra-cabeça (ou de labirinto, elemento fundamental na trama) em que cada peça da trama nos é apresentada, mas sem a incomoda sensação de que os realizadores do filme consideram os espectadores incapazes de compreender a trama. Em resumo: Suspeitos é um thriller de trama intrincada com detalhes que precisam ganhar a atenção do espectador, sem, no entanto, apelar para recordatórios, discursos explicativos e outros recursos "for dummies" comuns no cinemão americano.


A história começa quando a família Dover visita seus vizinhos (os Birch) para celebrar o dia de Ação de Graças. Keller e Grace tem dois filhos, o garoto Ralph e garotinha Anna, assim como seus amigos Franklin e Nancy, que também tem dois filhos, as meninas Eliza e Joy, praticamente da mesma idade dos filhos de seus amigos. Em teoria são famílias espelhadas apenas com a diferença de raça para diferenciá-los. Depois dos comes e bebes, as duas garotinhas decidem irem até a casa dos Dover para encontrar o apito perdido da loirinha Anna. E daí somem. A partir daí a trama se divide na perseguição de Keller ao principal suspeito que a investigação do detetive Loki não consegue manter preso por falta de provas, e o detetive tentando solucionar o caso.

Denis Villeneuve usa uma situação - infelizmente - bastante comum para criar seu quebra-cabeça muito tenso que não busca apenas a solução do thriller, mas também tem a intenção de falar sobre a vingança e os limites de onde o sujeito pode ir para conseguir seu objetivo. Cada peça do quebra-cabeça é importante e merece uma atenção especial do espectador e vai se revelando um novo elemento de uma trama cada vez maior.

A fotografia lúgubre do filme só ajuda a reforçar um ambiente que vai se entristecendo, se corrompendo  e tornando-se claustrofóbico em frente aos nossos olhos. A atmosfera calorosa - apesar do frio - da casa dos Birch no começo do filme é radicalmente diferente do que o filme nos vai mostrando com o decorrer do tempo. As sombras se apossam dos personagens e da vida daquela família. O roteiro da produção é igualmente inteligente nos conduzindo por alguns caminhos que parecem tão precisos e que vão se revelando não tão certeiros assim, ao mesmo tempo em que são corretos dentro da intenção do filme. A religiosidade, tema fundamental na trama, é outro elemento muito bem utilizado e desde - literalmente - o primeiro plano, colocando a fé e a ausência da mesma como mola propulsoras da trama.


O elenco está todo muito bem. Keller e o detetive Loki são os protagonistas, cada um num espectro da investigação. Hugh Jackman e Jake Gylenhaal que vivem os dois citados respectivamente estão muito bem na produção. Esse talvez seja o personagem mais intenso e assustador do ator em sua carreira (certamente o é dentre seus personagens nos Estados Unidos). Keller é um pai de personalidade forte e que não mede as consequências de seus atos, embora não encontre prazer em momento algum com o que tem de fazer, destituindo-o na alcunha de sádico e afins. Loki beira o comportamento passivo-agressivo, tendo de manter o controle da situação em meio a muita pressão dos pais das garotas sumidas, da própria investigação, os problemas da policia e traumas pessoais. Seu trabalho contido, revela um sujeito metódico, inteligente e que em sua racionalidade consegue resolver as arestas da intrincada produção.

Ao lado dos dois lados dessa moeda, os coadjuvantes também tem seu momento de brilhar, cada um com um "solo", um momento em que podem demonstrar o talento que tem. Franklin (Terrence Howard) vai se fragilizando a cada nova situação enfrentada e vive em conflito sobre suas ações até desabar em uma cena emocionante. Grace (Maria Bello) entra em estado de negação e se mantém entorpecida diante de suas suspeitas de que o pior acontecera com sua filha e a amiguinha. Nancy (Viola Davis) guarda para si suas impressões e dor, mas as deixa florescer em uma cena maravilhosa e intensa, onde é impossível não se deixar emocionar pela composição da atriz e nos chocar com suas conclusões sobre as ações de seu marido. Paul Dano e Melissa Leo são outros que conseguem entregar interpretações tão intensas quanto à dos dois casais protagonistas. Dano faz de Alex um garoto de fala mansa e fragilidade perturbadora, que nos faz caminhar entre a compaixão e medo. E Melissa parece desde a primeira aparição uma mulher machucada pela vida e a interpretação da atriz nos indica esse caminho.

Os Suspeitos é uma belíssima estreia em território ianque do canadense Villeneuve. Angustiante, tenso, desagradável de ser acompanhado consegue nos inserir naquele ambiente sombrio e cheio de relações com a vida real. Extremamente competente como thriller e intrigante na proposta de não apoiar a posição do "olho por olho, dente por dente" é dos casos raros de entretenimento para adultos. Maduro, inteligente e sem muitas concessões.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Serra Pelada


Serra Pelada
(Serra Pelada, 2013)
Drama - 100 min.

Direção: Heitor Dhalia
Roteiro: Heitor Dhalia, Vera Egito

com: Júlio Andrade, Juliano Cazarré, Wagner Moura, Matheus Natchtergaele, Sophie Charlotte

O garimpo de Serra Pelada, localizado no estado do Pará, é um dos símbolos mais pulsantes da ganância humana e do desespero do brasileiro em busca de uma melhor condição de vida. Durante o auge da "corrida do ouro" brasileira, mais de 80 mil pessoas moravam ou no garimpo, ou próximo a ele. Literalmente transformaram o que antes era uma região coberta de vegetação em um imenso buraco que atingiu absurdos 200 metros de profundidade em meados de 1984. As autoridades creditam a extração de 30 toneladas de ouro, o que o torna o maior garimpo a céu aberto do mundo.

O potencial para histórias nesse cenário é praticamente inesgotável. Poderíamos acompanhar uma trama de viés político, sobre como o governo (primeiramente militar e depois civil) tomou para si o ouro encontrado no garimpo, ou mesmo sobre o primeiro sujeito que encontrou ouro ali, entre tantas outras histórias que poderiam surgir. Heitor Dhalia optou por aproveitar um tema universal - a ganância - e criar uma história original e ficcional a partir desse elemento misturando-o as coisas que se sabe que aconteciam no garimpo paraense.

Acompanhamos então os amigos Juliano e Joaquim, que saem de São Paulo rumo ao Pará em busca de fortuna. Júlio Andrade, é Joaquim, um professor de classe média baixa com uma mulher grávida e que se vê cansado de lutar todo dia e não conseguir dar nada de mais substancial para sua família. Juliano Cazarré é Joaquim, um sujeito que vivia de lutas de boxe clandestino na cidade e que sem nenhum nó que o ate, parte rumo ao desconhecido.


Serra Pelada é mais um conto sobre como o poder e a ganância corrompem o homem. Uma vez no garimpo, os amigos logo encontram ouro e decidem fazer aquele dinheiro render ainda mais. A narração em off de Júlio Andrade, apresenta-nos aquele mundo e nos diz que uma vez com condições financeiras, o próximo passo é comprar um lote e administrá-lo. Porém, a ganância faz com que a dupla comece a entrar em conflito e o que antes era harmônico passa a ser uma disputa por poder, com Juliano tentando voltar pra casa o quanto antes e Joaquim sem nada a fazer em São Paulo, tentando conseguir ficar cada vez mais rico.

O filme tem boa reconstrução de época e nos coloca em uma típica cidade de fronteira - cenário normalmente visto em um faroeste - que ao lado do ambiente inóspito do garimpo é recheado de violência. Como Juliano diz a seu amigo durante o filme, um ambiente que faz florescer o pior de cada um. As privações aliadas às diversas tentações obtidas com o dinheiro, são um cocktail de problemas em potencial.

O grande problema de Serra Pelada, e que faz o filme patinar é seu roteiro truncado. As diversas passagens no tempo em determinado momento parecem incompreensíveis (saltam-se meses entre algumas cenas) e o excesso de didatismo e a falta de ousadia na retratação daquele ambiente deixam o filme cansativo. Que pese, termos uma atriz global utilizando uma boa quantidade de termos chulos - chocando apenas aqueles que não estão acostumados a palavrões - já que a personagem em si é mais um caso de "mulher de malandro" que passa de mão em mão sem conseguir achar um rumo.


Os atores no entanto estão bem, mesmo a citada global (Sophie Charlotte que se esforça genuinamente para dar algum estofo a uma personagem rasa). Se Júlio Andrade é o mais próximo do público leigo e serve - por esse motivo - como condutor da trama com seu off é Juliano Cazarré que faz muito bem seu papel. Sendo muito natural, faz de Joaquim um sujeito que vai deixando seu carisma ser tomado por uma aura de podridão que o arrasta para uma existência triste e solitária. Enquanto Matheus Nachtergaele está correto mas sem brilho, Wagner Moura apresenta uma de suas melhores interpretações em anos. Seu Lindo Rico, levemente fora de forma, careca e de fala mansa é cruel, inteligente, sagaz e verdadeiramente assustador. Se existe um grande destaque em Serra Pelada esse é o ator baiano, que está em estado de graça roubando todas as cenas em que está presente. Outro destaque do grupo de atores é a escolha inteligente para a criação de antagonistas dos dois amigos. Utilizar-se de travestis vingativos e "sangue ruim" é ousado por dar uma botinada no "certinho" e por fugir do clichê do homossexual fragilizado.

Heitor Dhalia, diretor que pessoalmente gosto, não está em um bom momento. Se inicia seu filme numa (na minha interpretação) referência a Scarface de Brian DePalma e insere uma "vendetta" típica da trilogia Poderoso Chefão filma as sequências de ação de uma forma a quase causar epilepsia nos espectadores. A maldita mania de "tremer tudo" para transformar aquilo em "verdade" aqui está muito bem representada com sequências praticamente incompreensíveis e que fariam Michael Bay e McG se orgulharem. Além disso, o uso excessivo de imagens de arquivo deixa a produção cansativa e diminui a escala construída para o filme por sua produção.

Esquecendo-se de elementos importantes da historia do lugar e focando-se apenas na história dos amigos, Dhalia e equipe tentaram aproximar a situação do público. Em partes conseguem, já que os atores fazem o seu trabalho com competência. Uma pena, no entanto, que a produção não consiga entregar palavras tão fortes e inspiradas quanto os melhores momentos de seus interpretes.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Festival do Rio: Fruitvale Station

Fruitvale Station
(Fruitvale Station, 2013)
Drama - 85 min.

Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler

com: Michael B. Jordan, Octavia Spencer, Melonie Diaz, Ahna O'Reilly, Kevin Durand

É véspera de Ano Novo. Na Califórnia, Oscar Grant e os amigos vão ao metrô, tomar a condução até a festa que haverá no Centro. Assim que eles entram em um dos vagões, a câmera para de se mover e os acompanha ir embora. O plano dura mais alguns segundos, como se houvesse algo de diferente naquela estação comum. Parece que algo assustador acontecerá.

Construindo um duro conto de realidade, Ryan Coogler estreia na direção em Fruitvale Station. O novato é preciso ao estruturar o roteiro sem privilegiar uma divisão de atos, definindo as situações com o olhar de quem observa majoritariamente o protagonista, desenvolvendo-o através de pequenas cenas; um estudo de personagem, em suma.

Nessa busca por definir o drama de Oscar através da tentativa de se redimir do passado – e a tentação de voltar a ele –, Coogler aposta nos conflitos morais dos quais o personagem passa. Os antigos contatos com o tráfico se mostram ainda presentes, mas o senso de proteção de Oscar com seus familiares é mais forte. Além disso, cenas como a do protagonista na prisão – excelente do início ao fim – realizam uma relação de causa e efeito que tornam Oscar mais reticente na hora de se entregar à saída mais fácil. A trilha e o design de som são executados à perfeição na hora de traduzir os sentimentos do personagem, e isso só aumenta no catártico clímax, que parece concretizar um movimento de elegia.


Elegia essa concebida com um cuidado notável por parte de Coogler, uma visão madura sobre a perda. De maneira sutil, o diretor chama atenção para detalhes aparentemente banais, mas que terão tremenda importância emocional no clímax: a corrida com a filha é eternizada, em câmera lenta; o encontro com a filha na casa da tia é filmado em close; a já citada estação é filmada com mais cuidado que o normal; um plano no metrô, passando rápido, revela temíveis faces de pessoas, numa dissonância eficiente. É difícil alcançar esse nível melancólico do luto sendo discreto, ainda mais quando se estrutura uma narrativa inteira em volta dele, mas o diretor entrega a responsabilidade ao excelente Michael B. Jordan – digno de premiações – e consegue remeter até ao Elefante de Gus van Sant.

Os cortes abruptos (a cena de mãe e filha no banho é notável), impactantes, ajudam a causar o desconforto que a história provoca, junto do trabalho de câmera naturalista, com belíssima fotografia em 16mm para se manter o mais documental possível. As intenções do diretor se revelam satisfatórias principalmente no clímax, que não deixa de causar tensão por um segundo sequer.

Não é um trabalho perfeito, porém. Já que Oscar é uma vítima das consequências, Coogler não se contenta apenas em fornecer a visão em volta do jovem, manipulando o ambiente para deixar sua maldade mais clara; pesa a mão demais no drama e acaba o atenuando. O cachorro atropelado do início até consegue dar uma visão desesperançosa ao ambiente, mas de nada serve para a jornada do personagem além de vitimizá-lo nesse mundo frio e cruel. A festa no metrô também é de uma inocência sem vez naquele pano de fundo; não é normal ver pessoas apertadas no metrô dançando do nada. Só soa dissonante em tom, como o plano dos parentes reunidos com fotos na geladeira: procura expor o forte conceito de família do filme, mas não deixa de ser um didatismo previsível.


Ryan Coogler e Michael B. Jordan constroem um personagem multifacetado. Oscar soa vivo nas telas, lidando com questões éticas até haver uma intervenção. Coogler pode ainda ser desmedido em suas metáforas, mas consegue, através dos cortes secos e da presença marcante de B. Jordan, criar uma digna jornada a um personagem dolorosamente real.


E é na hora de traduzir essa dor em réquiem que Fruitvale Station mostra seu poder.

domingo, 13 de outubro de 2013

É o Fim

É o Fim
(This is the End, 2013)
Comédia - 107 min.

Direção: Seth Rogen, Evan Goldberg
Roteiro: Seth Rogen e Evan Goldberg

com: Seth Rogen, Jay Baruchel, James Franco, Jonah Hill, Craig Robinson, Danny McBride, Emma Watson, Michael Cera

Pegue um grupo de atores famoso por comédias despudoradas e cheias de palavrões, referências sexuais e consumo de drogas (lícitas ou ilícitas), junte um monte de piadas internas, referências ao cinema catástrofe e de horror e você tem a receita utilizada por Evan Goldberg e Seth Rogen para criar essa bobagem razoavelmente divertida chamada É o Fim.

Interpretando "eles mesmos", o elenco tem o próprio Rogen ao lado de Jay Baruchel, James Franco, Jonah Hill, Danny McBride, Craig Robinson além de participações de Emma Watson, Michael Cera, Jason Segel, Christopher Mintz-Plasse, Rihanna entre outros. A trama por sua vez é simplória e direta: Jay Baruchel chega a Los Angeles para passar uns dias com seu amigo Seth Rogen, numa overdose de games e maconha. Só que Seth foi convidado para a festa de inauguração da nova casa de James Franco e decide ir até lá. Uma vez lá, encontram todos os outros citados e a diversão, piadas internas e bobagens mil rolam soltas até... o mundo começar a acabar.

A partir dai o filme toma o rumo da comédia de humor negro que beira o trash. Uma quantidade generosa de ofensas, palavrões, tiradas ácidas e satíricas fazem parte do menu que infelizmente não acerta sempre. Entre um futebol com uma cabeça decepada e uma Emma Watson e um Michael Cera como você nunca viu, existem diversos exageros como os cometidos por Danny McBride cada vez mais sem graça toda vez que está em quadro ou por Seth Rogen que mesmo sendo generoso ao fazer piada dele mesmo não consegue segurar a barra de dirigir e manter a piada divertida por tempo suficiente.



Lá pela metade do filme as piadas começam a se repetir e só melhoram com uma impagável "homenagem" a um dos maiores filmes de terror de todos os tempos, que geram gargalhadas generosas e uma versão "suecada" de uma eventual sequência de Pinneaple Express, um dos trabalhos mais divertidos que essa turma participou.

Existe algo de muito saudável em não se levar a sério e só pelo fato desses atores se prestarem a usarem seus nomes e "teoricamente" suas próprias personalidades para dar vida aos personagens já é algo de se respeitar. Exagerar elementos que o próprio público questiona como a sexualidade de James Franco ou o fato de Seth Rogen "interpretar sempre o mesmo papel", ou brincar com a indicação de Jonah Hill ao Oscar ou ao retumbante fracasso de "Your Highness" (comédia das piores com Franco e McBride) dão mais força ao filme e divertem o público. Especialmente quando essas personas não são exemplos de muita coisa. Se Craig Robinson bebe sua própria urina e Danny McBride tem problemas em "controlar seu desejo", James Franco parece apaixonado por Seth Rogen que por sua vez tem um trauma sexual bastante bizarro. Jay Baruchel talvez seja o único "menos estragado" da brincadeira embora sua personagem tenha um segredo referente a seu grande amigo Seth. E Jonah Hill impagável e cheio de cacoetes afetados é o que melhor se sai, ao lado das já citadas aparições de Michael Cera e Emma Watson.

Tudo em É o Fim é propositalmente "mal feito", incluindo ai oi uso de computação gráfica, a canastrice de muitos atores do filme e as dezenas de momentos simplesmente idiotas. Mas essa era a intenção dos caras. Pegaram uma câmera, tiveram essa ideia absurda e juntaram um monte de amigos para se filmar e fazer piada em frente da câmera. Nada mais do que isso. No meio dessa bagunça existe um filme, mas que por vezes simplesmente não tem graça.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Rota de Fuga

Rota de Fuga
(Escape Plan, 2013)
Ação/Thriller - 116 min.

Direção: Mikael Hafstrom
Roteiro: Miles Chapman e Jason Keller

com: Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger, Jim Caviezel, 50 Cent, Vincent D'Onofrio, Vinnie Jones, Sam Neill, Amy Ryan

Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger. Para qualquer um que tenha mais de vinte e poucos anos a menção de uma nova produção com esses dois (mais que atores) personagens de uma geração já é capaz de levar muito gente ao cinema. Quando o carisma é empregado em uma produção divertida e que sabe usar os exageros a seu favor, o resultado é o melhor possível.

Longe de ser um tremendo filme, mas diante da safra fraca de filmes de ação lançados esse ano, Rota de Fuga é - dos que vi - o melhor até aqui. A trama fala sobre Breslin (Stallone) um sujeito que ganha a vida fugindo de prisões de forma profissional. Contratado pelo governo americano, ele se enfia nas cadeias e tenta fugir das mesmas para provar as deficiências de segurança dos lugares. Quando o filme começa, acompanhamos logo de cara uma dessas fugas espetaculares em uma prisão.

Stallone usa todo seu carisma para construir seu personagem como esse cara que só vive quando está preso. Logo em uma das primeiras sequências, o cara é confundido na própria empresa por uma recepcionista. Ao perguntar há quanto tempo ela trabalha lá, escuta que a moça está na recepção a longos cinco meses. É dessa forma simples que o diretor Mikael Hafstrom, diz-nos que aquele sujeito não consegue ficar "preso" em um escritório, preferindo uma temporada (longa) na cadeia mais próxima.



A trama ganha intensidade quando sua empresa é contratada por uma misteriosa organização particular para verificar a segurança de sua cadeia, um local onde apenas "gente que precisa sumir" é enviada. Ignorando os conselhos de sua equipe de campo (a bela Amy Ryan e o rapper 50 Cent em modo nerd hacker) e aceitando a sugestão de seu sócio/administrador Lester (Vincent D'Onofrio), muito mais interessado em dinheiro, decide aceitar o caso. A partir dai Stallone se vê na cadeia mais estranha e bem organizada que já estivera preso. Gigantesca, com guardas mascarados, um diretor muito frio e companheiros de cadeia cruéis. Entre eles, Rottmayer (Schwarzenegger) capanga de um hacker terrorista que é constantemente interrogado para entregar o paradeiro do sujeito.

A história é a mais óbvia possível. Sly e Schwarzenegger se unem para fugir e a graça é ver o "plano infalível" sendo desenhado na nossa frente, sem esquecer da diversão. Apesar de estarmos vendo um filme de fuga de cadeia, o tom nunca deixa de ser divertido e não esquece de fazer graça com o encontro dos dois ícones brucutus.

Jim Caviezel é o diretor frio, com mania de limpeza e cheio de tiques (ele alisa a gravata e fica compulsivamente limpando o terno) e que não tem escrúpulos. Ao lado dele como o exemplo da força bruta em seu presídio, está Vinnie Jones que nunca foi grande coisa como ator, mas tem sempre uma presença ameaçadora que combina com seu personagem no filme. Sam Neill também faz uma ponta como um médico da instituição que ganha importância no ato final da produção.



Schwarzenegger talvez tenha um de seus personagens mais divertidos pra brincar com os estereótipos e faz de Rottmayer um brutamontes cheio de tiradas engraçadas e que chega até a falar alemão (não me recordo do ator falar alemão em filme algum anteriormente). Enquanto acompanhar Stallone como um gênio da física/quimica e ainda sendo bom de briga é o tipo de coisa que faz o filme ganhar pontos no quesito "não estou me levando a sério".

Essa talvez seja a grande qualidade do filme de Mikael Hafstrom. Ao não forçar no tempero do rocambole, a historia flui tranquila, sem cair no enfadonho e como sequências de cenas pontuais e que - felizmente - não apelam para o "pisou perdeu", deixando o espectador conseguir enxergar o que está acontecendo na tela. Outro acerto é na escala da prisão, que é obscenamente grande e absurdamente "mentirosa" em sua localização, o que dá mais charme a história. A produção sabe usar os possíveis equívocos e problemas de lógica comuns em produções do subgênero "fuga de cadeia" como elementos de força, nos mantendo entretidos com os planos mirabolantes criados por Stallone. Rota de Fuga não vai entrar pra lista dos melhores filmes de Stallone ou Schwarzenegger, mas - diferente de Mercenários - marca uma parceria verdadeira entre os dois símbolos de uma geração e garante pouco mais de uma hora e meia de diversão de qualidade. É o que se espera de uma produção desse tipo.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Gravidade

Gravidade
(Gravity, 2013)
Drama/Ficção Científica - 91 min.

Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón e Jona Cuarón

com: Sandra Bullock, George Clooney

Correndo o risco de me repetir de maneira patética (já que acho que já comecei uma crítica dessa mesma forma) é preciso dizer que é sempre um desafio enorme conseguir expressar em palavras a força de determinados filmes. Seja quando tais produções nos emocionam ou nos deixam estupefatos com suas qualidades técnicas. Mas, raramente conseguimos encontrar a combinação desses dois elementos em uma mesma produção. São casos raros (cada vez mais) e que merecem nossa atenção.

Não digo que Gravidade seja o melhor filme da história (longe disso) ou mesmo que seja o melhor do ano (mas está certamente entre os cinco melhores sem dúvidas), mas é o filme que melhor consegue combinar uma história que não tem pudores em apelar para nossas emoções primordiais, ancorada em uma precisão técnica e uma qualidade de realização absolutamente impecável.

A trama de Gravidade é na superfície bastante simples: enquanto estão instalando um novo equipamento no telescópio Hubble, a engenheira-médica Ryan Stone (Sandra Bullock) e o astronauta Matt Kowalsi (George Clooney) são atingidos por restos de satélites destruídos por uma chuva de meteoros e ficam a deriva no espaço. À partir dai precisam encontrar um jeito de sobreviver. Na verdade a luta por sobrevivência no espaço é um subterfúgio para falar sobre o renascimento espiritual da protagonista que luta para manter-se viva depois de um trauma terrível. Ryan é uma mulher endurecida por seus problemas e que vaga cumprindo seus objetivos sem nenhuma meta ou objetivo de vida. Quando precisa sobreviver ela tem de tomar as rédeas da situação, enfrentar seus demônios e expurgá-los.


 Alfonso Cuarón usa da vastidão do espaço para emular seu isolamento abissal ao mesmo tempo em que consegue deixar que a percepção da personagem dentro de seu traje de astronauta seja absolutamente claustrofóbica. Ele ainda usa do ritmo da respiração de Bullock para ditar o ritmo do filme, tanto às raras oportunidades de tranquilidade quanto os constantes momentos de desespero. Cuarón substitui os clichês da ficção no espaço apostando no "realismo cientifico", deixando o ambiente sem som (já que não existe ar e portanto o som não se propaga) a exceção da trilha sonora que amplifica as sensações de terror e tensão. Apesar de emular um realismo, não é a intenção de o filme ser um tratado científico sobre a vida no espaço, mas um tremendo thriller.

Uma vez que se filma "no espaço", sem nenhum eixo para ser respeitado ou mesmo um chão que serve de limite para onde a câmera pode se movimentar, a fotografia pode mostrar o que está na cabeça do diretor e de seu fotógrafo. Ainda bem que Cuarón e Emmanuel Lubezki (o fotógrafo) são brutalmente criativos e excelentes no que fazem. Cuarón é especialmente sádico ao apostar em planos bem longos quase todos apresentando uma situação de perigo iminente. Em termos narrativos enfatiza a angústia da protagonista e nos insere em meio a seu drama. Em termos cinematográficos é um exercício de virtuose a serviço da história, coisa rara e dificilmente exibida com tanto sucesso.

Porém, nada disso funcionaria se aqueles atores encarregados de contar a história não desempenhassem suas funções com esmero. George Clooney , faz do Tenente Kowalsi, um sujeito absolutamente seguro e que mesmo quando encontra problemas sem muita possibilidade de resolução, se mantém sereno e tentando transmitir sapiência. Além disso, é adepto da teoria de que rir é o melhor remédio e povoa sua participação com anedotas e "causos" o que angaria nossa imediata simpatia. Mas, esse é o show de Sandra Bullock.


Quem lê o blog há algum tempo sabe que não tenho muito apreço pelas qualidades de Sandra Bullock como atriz. Admito que ela seja belíssima, simpática, parece ser uma mulher inteligente e definitivamente esforçada, mas nunca havia me convencido. Até Gravidade. Os longos seis meses de preparação física e as muitas horas de filmagem em ambientes escuros tendo apenas a voz de George Clooney em seu ouvido, deram frutos e dos mais saborosos. Essa é a melhor performance da carreira da atriz e de longe uma das mais interessantes do ano, até aqui. Sua personagem está longe dos delírios histéricos, gritaria constante ou qualquer outro clichê que seja possível imaginar em uma situação de total desespero. É claro que existem momentos em que a personagem se assusta, hiperventila, se estressa e até perde a razão, mas sua jornada em busca de um despertar emocional (podemos até "viajar" um pouco e encarar dessa forma, porque não?) é apresentada com sutilezas e credibilidade nas suas ações. Ao falar de seu passado, ela não surta, mas parece resignada e somente uma situação extrema a faz sair de seu estado emocionalmente vegetativo.

Gravidade é um dos grandes filmes sobre o espaço já realizados. É o melhor filme de Alfonso Cuarón (embora continue adorando Filhos da Esperança), a melhor atuação da carreira de Sandra Bullock, reúne os efeitos visuais mais realistas em muito tempo, virtuose técnica que pode sim, servir de patamar para comparações futuras de quem tentar se aventurar a reproduzir as qualidades dessa produção e por reunir tantos "melhores" em um só filme é de longe um dos melhores filmes lançados em 2013.


Obs: o 3D é excelente e se não é o melhor já produzido, entra na seleta lista de produções que sabem utilizar-se da profundidade de campo que a tecnologia é capaz de prover.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Festival do Rio: Sapi


Sapi
(Sapi, 2013)
Terror - 102 min.

Direção: Brillante Mendoza
Roteiro: Henry Burgos

com: Dennis Trillo, Meryll Soriano, Baron Geisler

Brillante Mendoza foi premiado por diversos festivais. Já ganhou Palma de Ouro, inclusive. Com a credibilidade de diretor das Filipinas mais conhecido internacionalmente (junto à Lav Diaz), Mendoza se aventurou pela primeira vez em um filme de horror. A direção focada em câmera na mão, com muito naturalismo e tentativa de emular o documental, já é conhecida em sua carreira. Porém, aqui o trabalho de câmera gradativamente se revela primário - e a boa (ou má) notícia é que, pelo menos, o roteiro é igualmente abominável.

Sapi começa envolvente. A atmosfera sombria, capturada por um digital feio e sem cores vivas, concede um teor documental forte para onde o filme se passa o que casa com o duelo jornalístico que moverá a trama. Mendoza se esforça para encaixar os primeiros traços fora do comum naquele ambiente, como a cobra no estúdio ou a violenta chuva constante, o que agrada na introdução. O filme mostra Manila como uma cidade caótica, suja e super populosa, casando bem com a proposta.

E quando o roteiro de Henry Burgos começa a revelar sua estrutura, e Sapi se transforma num intragável filme de horror, que soa esdrúxulo a cada virada de trama. A estética, antes moderadamente condizente com a proposta, vai se afetando cada vez mais. O filipino parece ter contratado um diretor de fotografia amador, que mal consegue enquadrar atores direito, beirando a sátira em diversas passagens. As cenas de possessão são criadas com tamanha falta de criatividade que qualquer um que tenha assistido um terror barato na vida já consegue prever os rumos da cena. Não adianta nada Mendoza tratar o sobrenatural como algo comum no noticiário se, durante o ato em si, vai florear seu trabalho de câmera até torná-lo incompreensível.




Quando a desgraça toma conta, e a realidade é plenamente afetada pelo Mal, Burgos abandona qualquer coerência estrutural. O roteiro já parecia desfocado demais (Sapi fala sobre possessões ou os "perigos do jornalismo"?) no início, mas seu segundo ato generaliza a bagunça. Basicamente, o roteiro se propõe apenas a mostrar seus personagens, por uns quarenta minutos, sofrendo diversos sustos pregados por quem-se-importa. Mendoza resolve apostar na tensão filmada que mesmo Atividade Paranormal já usava como clichê: portas se abrem barulhos estranhos pela casa, virada dramática do protagonista para a câmera; é o mesmo fantasma estúpido da cinessérie, que parece muito concentrado na tarefa de bater as portas dos cômodos.

Estourando o som sempre que pode, exagerando na pavorosa trilha sonora, Mendoza ainda faz parecer que Sapi é algum especial de TV tosco, com seus inúmeros (infinitos) establishment shots na emissora e noção nula de mise-en-scene (a mesa se consertou sozinha? Flores estava na cena da demissão?).

Um apanhado de cenas desconexas, procurando choque em humor involuntário (cobra entre as pernas), usando até mesmo o som de maneira preguiçosa. Grosseiro e inexplicavelmente sisudo. 


Festival do Rio: Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho

Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho
(Epizoda u Zivotu Beraca Zeljeza, 2013)
Drama - 75 min.

Direção: Danis Tanovic
Roteiro: Danis Tanovic

com: Senada Alimonavic, Nazif Mujic, Sandra Mujic, Semsa Mujic

Nazif é um homem comum, trabalhador que sustenta sua família, ele, sua mulher e duas filhas. Sai de tarde para cortar lenha, raspa o gelo do carro, e procura ferro-velho abandonado para catar e vender – a baixíssimo custo. O protagonista do novo filme do bósnio Danis Tanovic habita uma história tipicamente neo-realista, com seus homens sofrendo na pele os problemas econômicos do país. E o diretor reconhece isso a todo o momento, realizando um drama muito próximo da verdade, não coincidente, por valorizar o que há de mais social no caráter populacional da Bósnia atual.

A estrutura do roteiro se concentra na rotina de Nazif e Senada para introduzir a humilde vida do homem, sempre preocupado em conseguir arranjar o dinheiro necessário para passar o mês. O desenvolvimento ocorre com poucos diálogos, pacientemente observando os personagens e o ambiente onde vivem com atuações marcantes de todos da família. Tanovic não se preocupa em estabelecer uma mise-en-scene complexa, compondo situações naturalistas, eficientes em provocar uma intimidade com os habitantes da aldeia. A câmera na mão auxilia nessa intimidade, criando momentos até claustrofóbicos que a montagem ressalta, com cortes abruptos (como do carro ruim para o cano de descarga). E nessa iniciativa, Tanovic concebe momentos poderosos, que soam tão espontâneos quanto simbólicos, como a montanha de lixo.

Quando Senada sofre com uma dor no abdômen, Nazif tem de levá-la ao hospital. É aí que o filme tem seu ponto de ruptura: a secretária do hospital se nega a tratar de Senada, com sérios riscos de aborto, e o momento-chave leva o longa a uma discussão sobre o papel do governo na qualidade de vida do cidadão – novamente, como o Neo-realismo. Nazif implora, em vão, porque sabe não estar em um ambiente propício à qualidade de vida. Em certo momento, Nazif diz que “era melhor na Guerra”, o que denota um desespero claro em seu pensamento. O homem divaga sobre seu momento na guerra, de como servira o país e fora esquecido. Não é uma fala apenas sobre o passado; é sobre o presente.


Essa discussão social é o que Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho tem de mais complexo. A família de Nazif vive numa aldeia onde todos se respeitam se cumprimentam, se ajudam; é o contraponto extremo da impessoalidade do sistema de saúde da Bósnia-Herzegovina. O hospital onde Senada é levada insiste na apresentação do dinheiro para tratar um caso de emergência, o que culmina no desespero de Nazif buscando recursos financeiros. O lixo, a degradação do ambiente gelado e as agruras do catador são expostos de maneira simples, por toques visuais (a já citada montanha de lixo) ou pelo próprio texto (“94 marcos”).

As usinas da cidade, visão corriqueira no drama, são a representações que Tanovic encontra para comentar a frieza da metrópole, um lugar onde o protagonista fica claramente desconfortável. Um lugar de dualidade temporal. É um parecer realista não só pelo fato de Nazif-personagem e Nazif-ator serem praticamente a mesma pessoa; é uma extensão da realidade do leste europeu filmada pelo bósnio desde seu Terra de Ninguém, que dolorosamente soa politicamente estagnada – ainda que inversa – há mais de 20 anos, desde o fim da União Soviética.

Além da camada social, há um belo estudo de personagem no filme. Um desenvolvimento de personagens é bem realizado quando se sente à emoção de um homem que tenta fazer de tudo para tranquilizar sua família. Seja no ótimo plano dos quatro deixando o hospital ou no semblante feliz de Nazif, o filme é tocante, cheio de vida. Uma influência, diga-se de passagem, dos heróis de Vittorio de Sica, que tem a árdua tarefa de viver em tempos difíceis, mas o superam com solidariedade e a pureza da humilde alegria de abraçar sua mulher.



E é a solidariedade dos aldeões versus a impessoalidade da cidade moderna é o que Um Episódio... é eficiente em expor. Quando as barreiras do que é ficcional e do que é real é rompida – ao surgir o nome dos “atores” –, o filme adentra num contexto de confissão documental. Visceralmente documental.