quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Django Livre


Django Livre
(Django Unchained, 2012)
Western - 165 min.

Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino

com: Jamie Foxx, Leonardo DiCaprio, Christoph Waltz, Samuel L. Jackson, Kerry Washington

Reclamar de "tarantinisses" em um filme do próprio é bobagem. Por isso, aviso que não entrarei no coro dos que não veem "realismo histórico", "veracidade nos fatos", "desvirtuamento de valores" e tudo mais que foi dito há quatro anos atrás quando o diretor brincou de guerra em seu Bastardos Inglórios. Prefiro me ater ao fato de que é inacreditável perceber que mesmo criando as obras mais cheias de referências que um cineasta pode produzir, e, portanto, deixando "de lado" a originalidade, Quentin Tarantino assina a ferro e fogo cada uma de suas obras com uma contundência impar. Bastam muito poucos frames de exibição para notarmos que estamos no "mundo mágico" de Tarantino, onde referências e misturas exóticas permeiam o caminho.

Django Livre não é exceção, de fato, acho que nem mesmo em Kill Bill as transgressões cinematográficas foram tão agudas quanto aqui. Se no filme da Noiva, ele usou dos filmes de kung fu B para tratar de vingança, aqui ele é ainda mais ousado, usando um spaghetti western para transformar um escravo negro em "herói" e maior assassino do Oeste.

Nos Estados Unidos o filme foi acusado de racista pelo uso da apalavra nigger (que a gente pode traduzir livremente como "crioulo"), que é verborragicamente dita durante boa parte do filme. Aqui faço uma defesa de Quentin. Acho, ou melhor, tenho quase a certeza de que aqueles que acusam o filme de ser racista não o assistiram, pois se assistissem somente aos primeiros dez minutos notariam exatamente o oposto disso. Explico: ao som do tema de Django (o mesmo composto na década de sessenta para o filme original italiano), vemos uma fila de escravos caminhando seminus pelas "estradas" de pedra e terra embaixo de sol, chuva e frio, sendo escoltados por seus donos. A noite cai, e vemos uma carroça com um ridículo dente preso ao seu teto parar e após apresentações, conhecemos o Dr. King Schultz (Christoph Waltz) que está à procura de escravos que moraram em uma determinada fazenda. Após uma ligeira conversa, Schultz revela ser muito mais do que um sujeito empolado de fala mansa e "dentista" como acusava sua carroça, é também um matador que leva um dos escravos (o nosso herói Django) que havia dito que conhecerá a fazenda e seus moradores. Pois bem, e ai a coisa fica perigosa para os amantes da história "esse filme é racista". Waltz dá duas opções aos escravos ali presos. Levar um dos homens atingidos pela fúria de Schultz (como eu disse ele é um matador) até um médico e voltar ao cabresto ou... acho que entenderam. Liberando a fúria homicida de anos de abusos e flagelos, o que fazem os escravos? Acho que vocês podem imaginar.


Talvez, no contexto histórico e social americano, o uso excessivo da palavra realmente funcione como gatilho racista, mas, por favor, vamos entender a historia envolvida. Todos aqueles que usam a palavra nigger são mostrados como salafrários, bandidos, canalhas, estúpidos e que não merecem viver. Tarantino não glorifica a palavra, apenas mostra que por meio dela podemos exemplificar a ignorância de que a profere com tanta virulência.

Django Livre acompanha a dupla mais insólita de caçadores de recompensa (a "profissão" adotada pelo imigrante alemão vivido por Christoph Waltz) que se afeiçoa ao parceiro Django e decide ajudá-lo em seu plano de vingança, o que leva o filme muito próximo das suas origens italianas. Longe de ser um western sobre redenção humana, ou com comentários sociais (apesar da sacada de fazer do herói um escravo é ótima), Django é um romance, por mais torto que pareça. Django quer encontrar Brunhilda (Kerry Washington) sua esposa, que foi separada dele e hoje permanece perdida. Brunhilda, a valquíria de ébano que fala alemão fluente e que tem a personalidade forte como a de uma besta nórdica.

E é nesse clima irônico e violento que Django segue, com suas escravas que falam alemão, fazendeiros brancos que discutem pela dificuldade de enxergarem com sacos de pano mal costurados sobre os rostos (na cena mais engraçada do filme, e das mais engraçadas da carreira de Tarantino), um herói vestido de valete renascentista andando a cavalo, uma luta entre escravos sobre o chão de madeira, um ataque de cachorros a um pobre coitado que tentou fugir de sua condição e é claro, tiroteios, explosões e tudo mais.


Django tem problemas, no entanto, especialmente em seu segundo ato quando parece que Tarantino quis esticar ao máximo a sensação de suspense (que não é eficiente), tornando muito longos certos diálogos, embora elas sejam estilisticamente muito bem realizadas. É o caso da citada cena dos capuzes, que é longa demais, embora muito boa.

Jamie Foxx é um Django digno. Um homem que aprende um ofício e se transforma em um verdadeiro azougue no que se propõe a fazer. Foxx está intenso, fisicamente impecável e acertando até em detalhes de composição muito sutis como sua constante sensação de tensão, que só é deixada de lado no glorioso ato final. Já Christoph Waltz, embora seja impossível negar seus acertos como o calhorda polido e talentoso, parece demais uma versão mais velha (dado o momento histórico em que o filme se passa) de seu coronel Landa de Bastardos Inglórios. Certas sutilezas de interpretação, a constante polidez de suas palavras, a sua educação cirurgicamente pensada e sua frieza em executar seus inimigos são a mesma do brilhante vilão do filme de 2009.

Quem rouba a cena é a dupla Samuel L. Jackson e Leonardo DiCaprio, como um - aparentemente - velho escravo bajulador e um fazendeiro sádico, respectivamente. Jackson, brilhantemente caracterizado é impagável como o cruel e hilário senhor sem papas na língua, chocado por ver um negro em posição diferente do que a de escravo, mas que durante a produção vai se revelando um líder, amargo e violento. E DiCaprio, segue a linha de Waltz, só que sem a aura de "nobreza" que o Dr. Schultz transparece. Sua personagem é sedutora, aparentemente gentil, mas raivosa em sua essência e isso fica muito claro quando sua paciência se encerra.


Django é uma aula de estilo, embora ele não tente emocionar o público, mas sim entretê-lo, diverti-lo com seus excessos e mesmo com seus erros. Tarantino é uma auto-referência humana, um sujeito verborrágico que fez de seu cinema seu agradecimento àqueles que o inspiraram, tornando difícil imaginar um filme tarantinesco em que nos sintamos tocados emocionalmente por uma história (embora isso acabe acontecendo em Bastardos Inglórios e em Kill Bill).

Isso não impede de que uma produção do diretor seja uma experiência cinematográfica satisfatória. Se ele não atinge o público pela emoção, o faz pelo humor, já que é impossível não se divertir em Django Livre. Além das atuações que estão perfeitas para o clima do filme, ele ainda é inteligente em suas homenagens (Franco Nero, o Django original faz uma ponta) e no uso sempre certeiro da trilha sonora. Afinal, só em um western de Tarantino veríamos soul music e hip hop quando uma procissão cavalga pelas estradas do sul dos Estados Unidos.

Django Livre não é um remake de Django, nem um faroeste histórico ou uma denúncia social contra o racismo, mas outra brincadeira de Tarantino com sua enorme biblioteca de referências. Um pouquinho arrastado demais, com um roteiro que estica demais certos momentos, mas uma aula de estilo e de criatividade visual. Que venha seu filme sobre alienígenas, fantasmas ou qualquer coisa do gênero.










O maior fã de Cinema presente em Hollywood, Quentin Tarantino se afastou dos policiais do início de carreira para homenagear os grandes filmes da indústria. Se sua celebração ocorrera pelos clássicos Cães de Aluguel e Pulp Fiction, o primeiro risco veio em Jackie Brown, que ao adaptar Elmore Leonard, fugiu um pouco do terreno comum do diretor. Porém, foi em Kill Bill que o ex-gerente de locadora começou a visitar diferentes gêneros: da ação japonesa e duelo espadachim dos dois filmes sobre a Noiva até a guerra mundial de Bastardos Inglórios, passando pelo manifesto grindhouse À Prova de Morte. Até que Tarantino, fã incondicional de Sergio Leone resolve se aventurar com seu primeiro Western. E em Django Livre, o diretor volta ao passado do spaghetti western para contar uma fábula distorcida.

(Kill Bill vol. 2 é, em essência, um faroeste [e dos bons], mas é aqui que o americano faz um western no sentido literal).

Como fez com a Universal em Bastardos, Tarantino já inicia seu filme com reverência, ao projetar o logo antigo da Columbia Pictures. As paisagens áridas dignas dos clássicos do gênero preenchem a tela logo no primeiro take, sempre ressaltadas pela fotografia. Entretanto, como um elemento intruso, um grupo de escravos anda por ali. O western sempre situou suas tramas longe do Sul norte-americano a fim de evitar temas polêmicos como a escravidão, o que causa a subversão da imagem bem interessante no contexto. E se isso traz uma questão tipicamente “tarantinesca” (um conceito estabelecido, mas modificado à sua maneira) de uma maneira mais séria, é logo após, na cena de introdução de King Schultz, que o conhecido despojo do diretor se nota. Muitos diálogos divertidos e uma explosão de violência depois, o Django alforriado do título e o ex-dentista já se fazem presentes de forma grandiosa na tela. Tarantino se reafirma como um marcante criador de mundos/personagens, mas são em outros quesitos que o filme surpreende, seja de maneira positiva ou negativa.


O roteiro, novamente escrito pelo diretor, salta de uma referência a outro para contar uma envolvente história de formação de mito, maior até que a formação de herói, uma (re)criação de gênero. Se o exemplo mais fácil se dá pelo escravo cowboy, o diretor vai além ao criar o Dr. Schultz como um legítimo lorde inglês. Desde seus trejeitos, sua cadenciada retórica e seu cavalheirismo até a disciplina diante de um alvo, o caçador de recompensas alemão é encaixado na trama como um digno esgrimista dos livros clássicos da literatura. Até mesmo seu cavalo, Fritz, é educado a ponto de responder ao ser chamado (!).

Logo, o revisionismo de Django Livre é um pouco mais complexo do que o de westerns mais recentes, como Os Imperdoáveis. É um filme que revisita não apenas os faroestes, mas todos os gêneros, para reuni-los. Utiliza um alemão e um afro-americano para contar sobre a formação da cultura negra, dentro de uma trama fabulesca do folclore europeu em forma de faroeste. É a mesma exploração cinéfila presente em Kill Bill e À Prova de Morte, mas com muito mais maturidade e ambição.

Mesmo na estética, as variações se refletem. Os planos de contemplação absoluta do deserto se juntam aos exagerados zooms rápidos do gênero. Nas cenas da tortura de Django e sua esposa, Tarantino usa de uma fotografia grindhouse para registrar Bruce Dern; nas cenas de travessia (não são poucas, mais a frente), a câmera registra o brilhante pôr-do-sol; nas cenas de diálogo no deserto noturno, a granulação fica visível no bonito ambiente azulado. O arrojo de Tarantino aparece em belas cenas: os ângulos que o diretor concebe são muito bonitos, a tensão criada para um duelo é precisa, e o domínio de close que demonstra aqui é coisa de mestre (repare o imponente close em Leonardo DiCaprio quando o mesmo acende seu cigarro), mas é notável que essa separação torne o filme mais volátil. É o mais solene dos trabalhos do diretor em temática e técnica (toca Dies Irae, de Verdi) – mas também o mais blaxpoitation de todos.


Um reflexo dessa dualidade ocorre no entendimento do diretor do serviço que em uma cena pode prestar à narrativa e ao subtexto. Passagens essencialmente narrativas chegam desnecessárias (como o encontro com um caçador, que oferece abrigo para a dupla) ou meramente convencionais (a montagem de Django aprendendo a ser caçador). Já a cena do Ku Kux Klan debochando de suas máscaras surge exclusivamente para tirar um sarro com a temática séria, sem função alguma para a história (por mais que, isolada, a cena seja ótima).

Nisso, o roteiro se mostra impreciso. Django é um filme ambicioso em temática e procura reunir muita informação em seus 165 minutos. Com os já citados contrastes, o filme se revela oscilante. Ora brilhante (o estupendo clímax), ora corriqueiro (desentendimento dramático consagrado entre os protagonistas é algo novo na obra do diretor). O montador Fred Raskin, antes assistente da falecida Sally Menke (colaboradora de Tarantino em todos os projetos), faz um trabalho digno da sua antiga companheira, ao dosar bem o ritmo do filme e tentar organizar a empreitada temática proporcionada por Quentin, mantendo a energia da obra.

Diferente do calibrado roteiro de Bastardos Inglórios (onde todas as cenas estavam no lugar certo), a narrativa de Django segue muito menos uma estrutura coesa. A reunião do tributo ao western acaba tresloucada, justamente por trabalhar com uma abrangente escala de referências. Se em Bastardos tínhamos uma narrativa que incluía passagens sobre os temas que o diretor admira, em Django temos diversas passagens sobre os temas que o diretor admira que incluem uma narrativa. Tudo o que era calculado em Bastardos, tende ao caótico em alguns momentos de Django – e isso não é um demérito dado à qualidade da temática que o diretor impõe a seu script.


Há excessivas travessias no filme, o ritmo até a chegada a Candyland não é tão consistente quanto o irretocável primeiro ato, a salada de culturas talvez não agrade a todos. Mas a quem reconhece ambiciosas incursões estilísticas em territórios desconhecidos, Django Livre será um longa marcante dentro da própria carreira do diretor, que já inclui diversas obras ímpares. Se aqui se fazem presentes as primeiras evidentes falhas em uma estrutura de Tarantino, não é por um motivo banal.

E mesmo com isso, a qualidade do diretor como narrador aparece em boa parte da película, criando uma coleção de cenas que já nascem expressivas, com um elenco à vontade e uma fotografia deslumbrante de Robert Richardson. Toda a excelente passagem do jantar em Candyland remete à cena da taverna em Bastardos Inglórios; a violência brutal da luta de escravos é chocante; a cena do escravo D’Artagnan é precisa ao caracterizar tanto tema quanto personagens; o último ato remete a um faroeste de raiz (sombras, beijo no contraluz, cowboy correndo com o rifle pra cima), ainda que com o upgrade de Tarantino; todas as frases de efeito de Foxx; o monólogo arrepiante de Calvin sobre um crânio. E, claro, a epítome da revisão: o clímax surtado e sensacional, que mistura clássico e novo, catarse com estilo, câmera lenta com faroeste, hip-hop com soul, Ennio Morricone com Jamie Foxx. Se não ressaltei com todas as letras o clímax, vale lembrar: é um banho de sangue estilosíssimo de Tarantino, que deixa até o de Kill Bill levemente pálido.

E com surpresas, surpreendentes ou frustrantes, a narrativa do afiado roteiro vai se consolidando. Se não se pode esperar solidez na narrativa, ao menos Django vale cada futura visita para simplesmente observar o talento de Tarantino em transitar entre gêneros, homenagens revisionistas e obsessões de uma maneira explosiva, afirmativa, talentosa. Pontualmente perfeito, o longa ganha bastante por sua maneira de estudar as culturas que está lidando. Se termina imperfeito, se recupera em outros aspectos. Não é um passo adiante na carreira do diretor como foi Bastardos, mas sem dúvida um exercício empolgante.

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