sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Sem Dor, Sem Ganho

Sem Dor, Sem Ganho
(Pain & Gain, 2013)
Comédia/Crime - 129 min.

Direção: Michael Bay
Roteiro: Christopher Markus e Stephen McFeely

com: Marj Wahlberg, Dwayne Johnson, Anthony Mackie, Ed Harris, Tony Shaloub, Rebel Wilson

Daniel Lugo acredita em malhação. Logo no princípio, após malhar na academia onde trabalha aos gritos de “sou forte, sou enorme”, o homem é interrompido pela chegada da polícia e o observamos correr com um vigor notável. A narração, constante, reforça o mantra de Daniel. É um homem que cultua a si mesmo – e quer ser aceito da forma que julgar merecer. Ao optar por um prólogo no futuro, simbólico, é com bastante economia que Pain & Gain já introduz seu protagonista e sobre os assuntos quer tratar de forma tenaz. 

Analisando qualquer peça promocional do filme, não é difícil constatar a irreverência com que Michael Bay trata da violenta história real do grupo de marombeiros que se reúne para sequestrar um dos clientes de sua academia. Porém, no decorrer da narrativa, é com surpresa que se vê que, por trás da suposta atmosfera cool de humor negro, há um comentário repleto de cinismo sobre o sonho americano, trabalhado em escalas tanto físicas quanto psicológicas e sociais.

O primeiro ato, que introduz a rotina “maçante” de Lugo, encaixa a insatisfação do personagem com seu ambiente através da mesma narração em off do início. Narração em off que, por sua vez, é empregada pela história de maneira diferente, passando por vários personagens, com a intenção de evidenciar os diferentes tipos de ideal dos personagens, as diferentes visões do Sonho Americano. Em tela, o que poderia soar como desnecessária explicação da imagem aumenta o escopo da discussão – além de tornar Lugo mais íntimo do espectador, o que só potencializa a virada da trama.



Nesse ato, Bay e os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely não se preocupam em perder tempo despertando alguma empatia com os protagonistas, sempre deixando o absurdo das situações causar esse efeito no espectador. Desde o princípio, Lugo é visto como um egocêntrico, arrogante, que desperta a atenção do espectador apenas por ter seu caráter mascarado por uma camada de humor que faz parte da estrutura de comédia de erros que Pain & Gain adota em seu primeiro ato, de elaboração do sequestro. E construindo uma narrativa policial que remete a Bad Boys, o filme estabelece uma atmosfera evocativa, através da excelente direção de arte, que exala os anos 90 até no visual da fotografia e nos figurinos divertidíssimos, como a presença do logo antigo da Nike em diversas roupas. 

Quando o filme deixa de ser uma versão hardcore de Arizona Nunca Mais, abordagem à filmes de buddy cop, uma jornada brutal de violência toma conta do filme, sem que seus narradores, antes até simpáticos ao público, tenham qualquer remorso ou noção das consequências de seus atos.

Essencial para a virada da trama, o humor inicial cria um arco interessante para Daniel Lugo, que, após ter sucesso, deixa aparecer sua verdadeira faceta, inescrupulosa, covarde, que não tem medo de se beneficiar das fraquezas alheias (como na cena da van, quando culpa Doyle por certa “morte”) para conseguir o que quer. Lugo deixa de ser apenas um homem com ideal distorcido para se tornar um maldito. É aí que a tendência de Bay em glamourizar fatos violentos mostra seu cinismo: a violência é vista com humor porque os protagonistas a veem com estranha naturalidade, o que causa o desconforto do terço final do filme (o incidente envolvendo uma serra elétrica é particularmente desconfortável). O cool “ingênuo” dá lugar à ferocidade. 



O comentário sobre o sonho americano se faz presente ao se estabelecer através dos óbvios bens materiais (os carros, as mulheres, as mansões), mas traz certo frescor à discussão ao relacionar o fisiculturismo de Lugo com a perfeição que busca para sua vida social. Não por acaso, o protagonista diz em certo ponto que “a América é o país mais sarado do mundo” e que ser fora de forma é “antipatriótico”. O egocêntrico interpretado por Wahlberg se olha no espelho, se auto-proclama um super-homem, e frequentemente para tudo o que está fazendo para malhar, o que rende instantes divertidos.

Não é de se espantar que, a certa altura do filme, os personagens de Wahlberg e Dwayne Johnson sejam quase impossíveis de se identificar, sendo dignos de repulsa pelo espectador. As nuances do mau-caratismo de Lugo são captadas com precisão ímpar por Wahlberg (sempre um ator interessante), que sabe muito bem sair da postura de homem indignado para absoluto vilão. Johnson também impressiona, ao apresentar Doyle absolutamente descontrolado em sua fase cocainômana, e engraçadíssimo em sua fase religiosa. É muito pela veracidade que Wahlberg e Johnson passam na transformação dos personagens que Pain & Gain é satisfatório, afinal.

O forte teor do filme, tanto em conteúdo textual quanto gráfico, poderia – e foi – confundido com um humor desumano, inaceitável. Porém, diferente do humor mau-caráter de Bad Boys II, Bay trata o non-sense do filme com cinismo porque é a visão de mundo de seus vis protagonistas. Assim, sempre retratando os fatos para comentar o absurdo do ocorrido, que por vezes choca e por vezes, por que não?, o filme provoca o tal humor negro (como nas precisas inserções de estilosos grafismos). A falta de noção dos personagens, como na já famosa cena do dedão e do cachorro, desperta o riso mais por incredulidade que por humor de mau-gosto.  O non-sense do filme, quando encaixado dentro do texto da narrativa, cria momentos que surpreendem, como a melhor cena do filme: quando The Rock vai fazer seu barbecue no contraluz, clichê do self-made man estadunidense, está realizando a imagem que todos ali sonham, mesmo que na grelha tenha mãos, e não carne. É o símbolo definitivo da total exacerbação do sonho americano, que atravessa Pain & Gain por toda sua metragem.




A trilha de Steve Jablonsky, precisa, acompanha bem essa transição entre a comédia de erros e a violência que se sucede, utilizando de uma música-tema estilosa, mas um tanto melancólica, para acompanhar os pontos-chave da jornada de cada personagem, o que reforça a atmosfera buscada por Bay.

Obviamente, é um parecer transmitido através de muito didatismo que, mesmo em um filme que nunca deixa o descompromisso, acaba passando do aceitável em certos momentos. Principalmente no epílogo, com uma professoral narração em off divagando sobre as motivações do bando. Mas ainda que enfraqueça o poder do argumento, não chega perto de invalidar a habilidosa condução de narrativa de Markus, McFeely e Bay. É o bem vindo retorno do diretor a uma escala menor de filme, que se sustenta mais pela simplicidade dos set pieces e menos pela grandiloquência anestésica dos dois – fracos – últimos Transformers. Remetendo constantemente ao primeiro Bad Boys (a Miami, a fotografia, a interação bem-humorada entre os personagens), Pain & Gain se beneficia do visual de Bay em sua melhor forma, enquanto o carisma de Wahlberg, Johnson e Mackie fazem o resto.

Bay, ainda que continue demonstrando graves erros de linguagem (mise-en-scene mal-elaborada, ângulos edificantes mal-empregados), prova o quanto entende de ação, de um visual estiloso, bonito, mesmo econômico, muito melhor comandando que na ação incompreensível que andava fazendo (o roubo de duas maletas por Doyle é muito bem conduzido). O cuidado com a fotografia, quente e saturada, se faz muito mais presente que na artificialidade dos dois últimos Transformers, sem que isso modifique algo de sua marca como esteta de cinema espetaculoso. Não faltou nem o travelling giratório.

Pain & Gain satisfaz por seu roteiro decente e por sua divertida história policial, mas acaba se provando acima da média por sugerir que Michael Bay, afinal, não só tem plena consciência de toda a misoginia e patriotismo extremado que é sempre alvo de crítica em seus filmes, como sabe ser cínico ao negá-los em uma trama cômica, mas que nunca deixa de mostrar os preconceitos do tal american way of life.



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