quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Os Miseráveis


Os Miseráveis
(Les Miserávles, 2012)
Musical/Romance/Drama - 158 min.

Direção: Tom Hooper
Roteiro: William Nicholson

com: Hugh Jackman, Russel Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham-Carter

Tom Hooper é um diretor supervalorizado (para ser gentil). Sua noção de enquadramento é questionável, suas ideias para manter sua câmera em movimento são irritantes, cria closes excessivos, "vomita" ângulos holandeses (aquela câmera "torta") como quem passa mal depois de tomar oito doses de vodka e tem dificuldade em acompanhar os acontecimentos na tela com alguma frequência.

E mesmo assim, Os Miseráveis é um filme razoável. Como? Por quê? Qual a magia? Existem alguns fatores envolvidos: os atores, que estão (quase) todos muito engajados e dando o sangue pelo projeto, a história que é muito boa e as canções que são excepcionais.

Hooper, no entanto, parece ser um diretor de atores competente, já que consegue tirar interpretações fortes de seus elencos (vide Colin Firth e Geoffrey Rush em Discurso do Rei), especialmente de Hugh Jackman e Anne Hathaway. Que se leve em consideração o fato de que os atores cantaram "ao vivo", o desempenho de seus protagonistas é bem convincente, incluindo ai Eddie Redmayne e Amanda Seyfried. Alguns coadjuvantes também se destacam como Sacha Baron Cohen e principalmente os atores da Broadway Aaron Tveit e Samantha Barks, que são - como esperado - os cantores mais competentes do filme.


Porém, Hooper escalou muito mal Russel Crowe como o grande vilão do livro de Victor Hugo, o inspetor Javert. Além de Crowe parecer preso pela necessidade de estar sempre cantando (e o faz de forma - sendo bem generoso - honesta) seu personagem (e ai cabe uma critica ao roteiro) nunca é totalmente desenvolvido. Javert do musical Os Miseráveis nunca surge como uma ameaça verdadeiramente cruel, mas quase como um policial caxias demais, perdendo muito de seu impacto.

A história trágica sobre a perseguição de um insano policial ao ex-condenado Jean Valjean (Jackman) e seu subsequente envolvimento com Fantine (Anne Hathaway) perde um pouco do impacto pelo ritmo acelerado demais que a primeira parte do filme assume. Hooper parece mais interessado em criar um épico grandioso, por isso à ação revolucionária acaba tendo até mais importância do que as relações entre Valjean e a filha de Fantine, Cosette (Amanda Seyfried). Confesso aqui que não assisti ao musical, portanto, não sei se o musical tem essa mesma ideia, porém na tela o resultado faz com que o impacto emocional seja bastante diluído.

Em suma, tudo parece corrido demais, acelerando-se para uma gigantesca sequência de ação que não é lá tão poderosa assim. Falta, como disse, além de um acerto visual, uma maior força a alguns personagens fundamentais a trama, que respinga até mesmo em Jean Valjean vai perdendo força no decorrer do filme.


A força de Miseráveis reside mesmo - por mais óbvio que pareça dizer isso - em suas músicas. São canções que resistem ao tempo e que são poderosas (em sua maioria). Se uma eventual qualidade vocal é perdida com os atores cantando ali, ao vivo, se ganha muito em emoção, como é o caso da interpretação de Anne Hathaway para a canção mais famosa do musical "I Dreamed a Dream", que certamente é o ponto alto de sua participação, mesmo com Hooper tentando matar o momento (apostando num close que, mesmo entendendo a intenção de mostrar toda a emoção da personagem, confunde-se quando Hathaway se mexe, privando o espectador de parte do rosto da atriz), é incrível perceber o trabalho de Hathaway em uma canção tão coverizada mundo a fora. A emoção e a tristeza contida na letra são visíveis em sua excepcional performance, mesmo que liricamente e tecnicamente ela não consiga atingir todos os agudos exigidos, o que sinceramente, não parece ser o foco do filme. Mais interessante do que vermos as canções perfeitamente cantadas, a intenção é emocionar o espectador.

Por outro lado, quando Crowe tem seu momento solo, derrapa sensivelmente, porque parece profundamente travado tentando a todo o momento acertar as notas e esquecendo de emocionar o espectador com seu dilema moral. Já Jackman, escolado por suas aparições na Broadway, acerta quase sempre, especialmente na primeira parte da trama, quando deixa de lado um pouco a técnica vocal e apela para a visceralidade de sua personagem. Valjean é um homem derrotado pela vida, vivendo de sobras e restos e que precisa encontrar uma forma de não esmorecer.

Os coadjuvantes acertam, até mesmo Bonham-Carter e Baron Cohen em momentos mais engraçados da trama, assim como Eddie Redmayne, que vive o herói trágico e que emociona na canção em que rememora seus amigos caídos. Como citei acima, em termos "vocais" não dá para não destacar Tveit e Barks, atores da Broadway que estão degraus acima dos atores, especialmente Samantha que vive a trágica Eponine, que ao mesmo tempo em que acerta na composição da personagem, vê seu impacto na tela ser diluído pela pressa de Hooper em fazer do filme um gigantesco épico. Como exemplo, a sequência em que Fantine vai se desconstruindo fisicamente, perdendo dentes, cabelos e por fim se prostituindo, é digno de um musical de humor negro como Sweeney Todd, e não consegue apresentar por meios visuais o desespero da personagem.


Tecnicamente, tanto design de produção, quanto figurinos e efeitos visuais fazem o que deles se espera, criam a realidade necessária para que a história seja bem contada. Como destaques, o visual imundo de Valjean e da taverna/hospedaria de Thénardier (Baron Cohen) são ótimos, assim como os gigantescos elefantes e a (curta infelizmente) sequência no navio de guerra caído.

Os Miseráveis não chega a empolgar totalmente, e com o passar do tempo, saindo daquela comoção sobre a grandiosidade da produção, percebe-se a quantidade de informação esmagada - mesmo com a longa duração do filme - para que tudo parecesse maior do que de fato é. A tal batalha é encenada em uma rua, em um cenário pequeno e que apesar de excepcionalmente bem construído, não é suficiente para ilustrar um conflito enorme, que é o que o filme vende. Por outro lado, as cenas de cantoria coletiva, com os coros poderosos, todas são realmente empolgantes o que compensa essa dificuldade em criar fisicamente uma obra épica.

No afã de deixar tudo tão gigantesco, Hooper escorregou não só tecnicamente, mas perdeu a chance de causar impacto em momentos muito importantes para a trama. Se salva por ter encontrado em Jackman um protagonista forte, em Redmayne um galã com boa voz e presença cênica, em Hathaway por sua entrega e Bonham-Carter e Cohen pelo ótimo timing cômico.


Miseráveis perdeu a chance de ser um tremendo filme, errando mão com um antagonista que não convence, escolhas visuais questionáveis e uma exacerbada correria na tentativa de transformar tudo em uma enorme batalha. Ficam as canções e o talento de alguns de seus interpretes.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O Mestre


O Mestre
(The Master, 2012)
Drama - 144 min.

Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson

com: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams

Começo essa análise com uma confissão: precisei assistir duas vezes a O Mestre para poder escrever sobre o filme. Não que a trama seja complexa, daquelas que é preciso rever para entendê-la, mas porque ao final da primeira exibição sai completamente dividido sobre o que tinha visto. De certeza, apenas a de que acabara de ver um conjunto de atores em momentos muito especiais. Joaquin Phoenix neurótico e furioso, Seymour Hoffman sedutor e inteligente em sua racionalidade de mentira e Amy Adams mantendo-se como uma fortaleza de mistérios.

Não sabia, no entanto, se tudo aquilo mostrado por Paul Thomas Anderson era de fato uma épica historia sobre dois homens torpes que se encontram ou se não passava de uma enrolação crônica, cheia de momentos que beiram o pedantismo.

Pois bem, na segunda visita ao mundo de O Mestre, o filme me pareceu claro (finalmente). Paul Thomas Anderson construiu uma verdadeira epopéia sobre um homem destruído e suas muitas tentativas para encontrar-se, para viver sem rédeas controlando seu destino, sua fúria pela vida, sua vontade de agarrar com ferocidade tudo a sua volta. Quando O Mestre nos foi vendido, tudo indicava que veríamos a história da formação de um culto (no caso a Cientologia, famosa por ter entre seus devotos, Tom Cruise, John Travolta entre outros), e embora O Mestre aborde essa situação (disfarçada como O Culto), não é sobre isso exatamente que o filme de Paul Thomas Anderson quer falar. Seu foco é na relação conturbada entre um aprendiz e um mestre, um sujeito irascível e doentio, sedento por sexo e criador de uma bebida tão forte que pode ser tratada como veneno e outro que se apresenta de forma messiânica, condutor de verdades sobre o sentido da vida, mas na verdade não passa de um homem igualmente perturbado e que inventa verdades para manter sua aura de sábio. Trocando em miúdos: não quer perder seu domínio e sua posição de autoridade sobre seu rebanho.


Assim como em Sangue Negro, Anderson nos apresenta uma história sórdida sem heróis, onde cada homem (e mulher) tem sua quantidade de pecados atados ao corpo. Freddie Quell (Phoenix) é a fúria que ao se envolver com Lancaster Dodd (Hoffman), vê em sua figura (exemplarmente ilustrado na sequência em que o marinheiro de Phoenix é entrevistado de forma brilhante pelo personagem de Hoffman) um pai que não teve, uma figura a que poderia prestar alguma espécie de respeito e que talvez o ajude a encontrar forças para descobrir quem ele é, a busca fundamental do filme. Em uma jornada de descoberta, espera-se (e é até comum notar) um ar de certo moralismo, com virtudes pipocando pela tela. Não é bem esse o caso de O Mestre, onde a jornada de descobrimento acontece, mas os resultados não são aqueles que o espectador talvez espere.

Ancorado em dois homens moralmente bastante condenáveis, Anderson não espera que o espectador se identifique ou torça por um dos personagens, mas que acompanhe suas jornadas. Um para se encontrar e outro para encontrar fregueses para sua fórmula mágica de sucesso e iluminação.

O Mestre é um filme incomodo, pois parece por muitos momentos não saber exatamente o que quer contar, embora isso seja proposital. Explico: em uma trama que oferece ao público a oportunidade de acompanhar um homem completamente perdido, me parece natural que em alguns momentos, o real e o imaginário, a confusão e a insanidade (é o que me parece à cena em que vemos um grupo de mulheres completamente nuas em meio a uma festa) deixem a narrativa um tanto difícil de ser "curtida" (usando uma palavra da moda). Mas Anderson, não parece querer que o espectador de ajeite na cadeira, mas sim realmente incomodar o espectador, sem fazer concessões a pré-conceitos ou ideias prontas.


Não existe caminho fácil, nem solução milagrosa por aqui. Quell é um bruto de postura arcada, com dicção anasalada e Dodd um mentiroso contumaz, cheio de sí, e Paul Thomas Anderson é humilde ao ponto de não entender que poderia mudar dois homens tão certos em suas convicções sobre o que são em duas horas e pouco de filme. Ele apresenta sua historia de redenção torta, de um homem em busca de liberdade completa, de conseguir encontrar seu lugar no mundo (mesmo que este pareça ser apenas um descanso trôpego em uma praia desconhecida ao lado de uma mulher de areia). O sucesso de O Mestre se deve a essa capacidade de não optar pelo caminho fácil e de analisar os motivos que fazem um charlatão sedutor e um homem de neandertal manterem uma amizade doentia. Por que afinal o discípulo segue o Mestre? Essa é a pergunta que Anderson faz.

Mesmo discursando contra a dependência de um bastião moral, Quell precisa de um guia e Dodd tem nele seu maior seguidor, um que verdadeiramente usa dos punhos para defender "a causa", o sonho de qualquer líder de culto. E nessa história de homens perdidos tentando encontrar seu lugar no mundo é que temos a chance de experimentar as mesmas sensações temáticas vistas em Sangue Negro. Soma-se a isso, a verborragia em que os dois amigos disputam o controle sobre todas as discussões, um procurando manter-se fiel a noção de liberdade e o outro implorando por ser amado com um legítimo líder.

Paul Thomas Anderson é ousado, constrói suas narrativas as desconstruindo (por mais absurdo que isso possa parecer), apresentando problemas e não os solucionando de forma óbvia. Talvez não seja tão intenso quanto Sangue Negro, mas é visualmente impecável (a fotografia de Mihai Malamaire Jr. é ensolarada e deslumbrante) e conta com uma dupla de atores especiais.



Há quase seis anos atrás, o cineasta Paul Thomas Anderson realizava Sangue Negro. Adotando sua técnica apurada a uma trama que abandonava a estrutura panorâmica de seus longas anteriores (em Magnólia e Boogie Nights), o diretor criou uma jornada emblemática, um longa que remetia aos grandes clássicos hollywoodianos ao contar a historia do marcante Daniel Plainview, seu anti-herói capitalista exacerbado. Nessa primeira incursão em grandes temas a serviço de uma narrativa focada, PTA concebeu um dos melhores filmes do século XXI. Era com grande espera, portando, que seu novo filme, O Mestre, fora aguardado. E realizar um projeto após uma consagração, porém, é um tópico complicado. Escapar da armadilha do terreno seguro é para poucos.

Com seu novo filme, o diretor sai de sua zona de conforto e se aventura por uma narrativa experimental. Complexo, arrojado e muito mais arriscado que o normal, O Mestre conta a densa historia das origens de um culto aos olhos do fiel, de uma forma que se recusa a facilitar as conclusões.

Para estabelecer o estado desconfortável que irá se fazer presente por toda a projeção, PTA procura pequenas situações triviais para logo distorce-las. Logo, o comportamento do protagonista Freddie Quell é problemático por não se enquadrar nessas trivialidades. Ao achar uma comunidade asiática, Freddie demonstra sua instabilidade ao apresentar um caráter destrutivo; quando sai com uma mulher, dorme no encontro; em um serviço como fotógrafo, não tarda para o homem arrumar uma confusão por motivo algum. É claramente um sujeito perturbado mentalmente - e a postura de Joaquin Phoenix no papel é curvada, pesada, como se o desconforto se estendesse para o corpo. É uma discussão à Cronenberg, onde a mente doente encontra um paralelo com um corpo em transformação, mas não se aborda além da sutileza da composição do ator - o que abre o roteiro a investigar a alienação de uma maneira mais retórica. 


Retórica essa, aliás, que remete novamente a Sangue Negro. Anderson desenvolveu uma visível predileção por duelos verbais. E se no seu filme anterior o duelo era pontual e catártico, aqui se faz mais presente. As discussões ideológicas, ora como formação de pensamento, ora como debate intelectual, rendem pelo menos três cenas memoráveis. O tema religioso ganha proporções maiores ao longo da projeção, com o desenvolvimento d'A Causa, mas é através dessas discussões que a narrativa parece caminhar. É uma estrutura visivelmente diferenciada, que foge da precisão obsessiva dos atos definidos de Sangue Negro, e investe em uma arriscada desorganização com o intuito de discorrer melhor sobre o tema.

Após o início, onde a perversão sexual de Freddie é estabelecida em conjunto com sua instabilidade comportamental, o roteiro de Anderson abandona a pretensão de criar atos definidos e se concentra na entrada e desenvolvimento do protagonista na religião. Como um sujeito problemático, que tem um vício em bebida e parece se portar como um adolescente (a imaturidade de Freddie é composta de maneira sutil, como em seus sorrisos tolos), o homem é perfeito para ser "salvo" por alguma entidade superior. É quando surge A Causa e Lancaster Dodd. Sua pregação desafia qualquer convenção científica e se coloca em uma posição superior irredutível (note como Dodd chama Freddie de animal como se fosse seu dono). E ao ser confrontado, sua fúria é explosiva, captada com precisão pela transformada performance de Phillip Seymour Hoffman, o que geralmente indica a falta de segurança nos argumentos do homem. Em certa passagem, Dodd discute com um homem que o questiona. Enquanto o homem fala com segurança e se cala, Dodd grita, xinga, se mostra hostil. Isso se repete ao menos duas vezes, o que denuncia uma fratura em uma persona que parecia indubitavelmente confiável em seus devaneios. Seus monólogos, como o do dragão obediente, parecem sempre dizer algo a mais sobre a natureza da religião.

Ao desenvolver Dodd, Anderson constrói sua temática além da esfera da Cientologia. Por mais que tenha suas discussões sobre vidas passadas e galáxias distantes, o Mestre não é muito diferente de um pastor ou um padre. 




Freddie, porém, é errante, e questiona sua devoção sem ter argumentos formados sobre. É um homem de instinto, de raiva, imaturo e perturbado, perfeito contraponto para Dodd e sua empreitada. Na cena da prisão, PTA é perfeito ao compor o quadro com Freddie em estado de fúria, e Dodd equilibrado. Ao querer ser salvo, o protagonista investe na Causa quase inconsciente. Através dos métodos da religião, como no exercício de confronto verbal e no de porta e janela, Freddie tenta encontrar uma unidade para sua vida, mas acaba constantemente alienado. A impressionante trilha de Jonny Greenwood auxilia, movendo as ações como um fluxo de consciência, dissonante e caótica, elevando a jornada de Freddie a uma condição entre o desconforto e o puro terror (os agressivos violinos do início se fundem a calma imagem do mar). 

A visão de Dodd, e surpreendentemente de sua opressiva esposa, encara as emoções como um recurso ruim do ser humano. A racionalidade excessiva da família Dodd é manifestada no filho mais velho, que denuncia sua falta de crença no pai e é oprimido em toda a projeção. Até mesmo o marido da filha d'O Mestre é levado a o chamar de "pai", o que só reforça essa figura patriarcal inabalável e insubstituível que Dodd representa. O prazer sexual, inclusive, serve como termômetro: enquanto o viciado Freddie sacia suas vontades com diversas mulheres, Dodd tem um contato sexual extremamente reprimido com sua esposa (que encara o orgasmo de maneira assustadoramente fria).

O complexo de deus de Dodd, representante da moral e da ordem que exige vassalos, toma grandes proporções e é visto com olhos confusos por Freddie. A confusão mental do protagonista, o narrador, acaba criando momentos sublimes de puro domínio de linguagem cinematográfica. Quando Freddie acredita nas ideias de Dodd, a música e os enquadramentos são edificantes (como no lançamento do Livro dois). Já quando a lógica do Mestre apresenta falhas, ao deixar explícito que ele "imagina" e não "relembra" suas vidas passadas, a câmera é dura, dissonante como à trilha. Nisso, o protagonista termina com uma escolha que só dá mais tridimensionalidade para o mesmo. 


Impecável em seu olho para detalhes (como o uso de headfones na pregação no navio), Anderson utiliza de sua apurada direção em Sangue Negro e vai além, ao sair do realismo clássico e filmar uma iniciativa mais onírica, desconcertante visualmente. Diferente da sobriedade da fotografia de Robert Elswit no filme de 2007, PTA se alia ao fotógrafo Milai Milahmare Jr. para investir numa estética mais opressiva, com profundidade de campo bem reduzida e uma dissonante atmosfera solar. Como narrador Anderson vai além ao trabalhar uma historia que se preocupa em estabelecer tanto texto quanto subtexto: a conversa-duelo de Freddie com Dodd mostra tanto à tendência a submissão do primeiro quanto o seu passado amoroso.

"Você não quer ter um mestre? Será o primeiro do mundo a não ter um". No contexto, a frase funciona mais ainda. E em um duelo ideológico sobre a alienação, Freddie tem a difícil decisão de escolher entre a repressão coordenada ou a desordem completa, o caos incalculável de sua mente. A busca por liberdade (o mar aparece constantemente, o último ato ser apresentado por ele, à aparição da moto no deserto) é tema central - e os debates de Phoenix e Hoffman ganham uma urgência notável. O filme surpreende, portanto, por se mover através de suas discussões, e não através de atos. 

Rico em significados e poderoso nas questões que aborda, O Mestre é o mais expressivo dos filmes do diretor - e o mais arriscado. Um trabalho complexo, que investe na desordem e no onírico para contar uma difícil historia. Como qualquer filme do diretor, O Mestre impressiona pela identidade visual e pelo roteiro admirável. Mas é o que mais demonstra a capacidade que Paul Thomas Anderson tem de nos desafiar.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Lincoln


Lincoln
(Lincoln, 2012)
Drama - 150 min.

Direção: Steve Spielberg
Roteiro: Tony Kushner

com: Daniel Day-Lewis, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Sally Field, James Spader, Joseph Gordon-Levitt, Hal Hoolbrook

Lincoln tem cara de vencedor de Oscar. É quadrado, careta, correto, patriótico e tem um elenco em ótimo momento. Mas, é arrastado, sonolento, lentíssimo e a sensação de acompanharmos um épico sobre a politicagem americana não é das melhores. Talvez funcione - imagino pelos elogios vindos de fora - muito melhor para os norte-americanos que conseguem se relacionar diretamente com aqueles personagens e histórias. Para os cucarachas daqui, não passa de uma modorrenta história sobre os bastidores da política, e convenhamos, as nossas histórias são mais suculentas de serem vistas, cheias de comédia, traição, vergonha, terror e ação.

O grande destaque é para o supracitado Daniel Day-Lewis, certamente um dos maiores atores do planeta. Seu Lincoln é um homem calmo e sereno, que em sua infinita cautela foi capaz de manter um país unido mesmo diante de uma guerra civil. Sua interpretação naturalista de um líder frente a um desafio é realmente especial, fazendo o espectador gostar de Lincoln imediatamente. Compramos suas ideias, seus discursos, suas muitas historias inseridas no filme, sua forma de ver a vida e até mesmo conseguimos entender sua relação complicada com sua esposa. Tudo graças a um momento (mais um, o que não é nenhuma novidade) desse excepcional Daniel Day-Lewis. É incrível notar como Daniel trabalhou, por exemplo, o timbre de voz do personagem, sempre baixo, quase que falando para dentro com uma ligeira rouquidão, que mesmo quando exaltado permanece seguro de cada palavra proferida. Lincoln de Spielberg recebe toda a carga messiânica que os americanos colocam em cima de seu presidente mais famoso.

Como disse, os atores se destacam em Lincoln e esse é o caso de Tommy Lee Jones, em desempenho arrebatador, como Thaddeus Stevens, um congressista que defende a igualdade racial em um período onde esse tipo de postura era visto como absurda. Seus discursos no congresso americano são energéticos, cheios de gana, força, inteligência e vida. Esse é um dos grandes desempenhos do ator em sua carreira. Completa o "trio de ferro" Sally Field, vive a Sra. Lincoln como uma mulher amargurada e eternamente em estado de depressão pela morte de seu filho. Sally fez o contraponto pessoal em meio a uma produção excessivamente engessada por sua ideia de passar uma mensagem.


Engessada por culpa do excesso de reverencia histórica de Steven Spielberg para com seu tema. Se em Lista de Schindler, Spielberg conseguiu misturar uma historia grandiloquente com quilos de emoção, Lincoln é apenas historicamente correto, um longa (mesmo) cheio de momentos edificantes, mas que não conseguem fazer o espectador se emocionar com a história.

Lincoln, não é uma biografia do presidente americano, mas a história da assinatura da libertação dos escravos, com detalhes nefastos de conchavos políticos, e todo o trabalho de bastidores para que a décima terceira emenda (que dava fim a escravidão) fosse aprovada. O que Spielberg fez foi praticamente ignorar toda a história até ali, e apresentar um momento histórico apenas. Isso, para quem não conhece a história do presidente americano (sendo honesto, uns 98% da população mundial) transforma o filme numa experiência incompleta. Como Lincoln chegou ao poder? Como o filho de Lincoln morreu? Como a relação de Abraham e Mary Todd "azedou"? Como é possível demonstrar que o presidente era carismático? Apenas essa última pergunta o filme tenta responder, encaixando uma quantidade assombrosa de anedotas que Lincoln usa para ilustrar suas ideias políticas, e que servem de veículo para Day-Lewis mostrar seu talento.

O presidente americano é quase um sábio mitológico, capaz de ter sempre a resposta correta para todos os problemas apresentados. O que Spielberg faz, é transformar seu líder em um messias, mesmo quando esse é "obrigado" a apelar para a politicagem para conseguir seu intento, já que suas promessas para os candidatos do partido rival para que esses endossem a lei, são sempre tratadas com escárnio e bom humor, e dão a entender no decorrer da trama, que aqueles homens foram convencidos "pelo ideal" e não pelos cargos que iriam receber em troca do apoio.


Spielberg é um tremendo diretor e disso todos sabem. Sua capacidade de construção de quadros é magnífica e aqui isso se comprova, já que ele consegue nos ilustrar uma gigantesca obra de bla bla politiqueiro. Uma façanha, mediante sua escolha para o filme. O filme praticamente não conta com cenas de ação, sendo uma obra calcada quase que exclusivamente em texto, o que - nas mãos de um sujeito menos competente - poderia ser transformado em um teatro filmado. Spielberg acerta em suas escolhas fotográficas, quando sempre coloca o presidente sob uma fotografia contrastada para exacerbar suas rugas (um sinal de sabedoria e experiência), e mesmo nas cenas diurnas Spielberg mantém a câmera próxima ao presidente, apostando em poucos momentos de grandes planos abertos, salvo aqueles em que existe uma real necessidade de dar um sentido de grandiosidade a obra. Já pensa diferente no tocante as sequências no Congresso que parece uma panela de pressão, acanhada, apertada, sufocante para aqueles que tentam debater. Isso, auxiliado pelas trocas de ofensas de lado a lado, faz dessas sequências, as verdadeiras "cenas de ação" do longa.

Contudo, por mais que Spielberg seja competente, é o texto de Tony Kushner que é o grande trunfo da obra. Recheado de grandes frases é uma base maravilhosa para que seus atores desfilem as já citadas interpretações de qualidade. Mesmo aqueles com pouco tempo de tela, casos de Joseph Gordon-Levitt e James Spader (ótimo) têm seu pequeno "solo" linguístico.

Porém, essa incapacidade crônica de emocionar o público é surpreendente em se tratando de Spielberg, que sempre apelou para essas sensações em suas produções. Se em filmes históricos mais fracos como Amistad (quem não se lembra de Djimon Hounsou gritando liberdade em seu julgamento?) ou mesmo no soporífero Cavalo de Guerra, o diretor encheu a tela de momentos "pra fazer o espectador chorar", aqui eles nunca acontecem. E por mais absurdo que pareça, elas fazem muita falta. 


Mesmo John Williams, um mestre em criar sensações emocionais por suas notas, aqui está surpreendentemente contido, sóbrio, com uma trilha basicamente incidental, sem grande destaque (sua indicação ao Oscar, me parece exagerada inclusive). Lincoln é um Spielberg sem as características que fizeram do diretor o mais famoso do mundo. Na ânsia de criar um retrato histórico correto, seguro, "sério" de um momento fabuloso de seu país, esqueceu de transformá-lo em uma experiência cinematográfica rica, ou com alguma alma.

Claro que existem momentos de bravata e de exacerbação, mas muito poucos, como a sequência em que Mary e Lincoln discutem veementemente por causa de seu filho mais velho, ou quando Lincoln impõe sua vontade perante o seu gabinete, mas quem precisa segurar esse elemento é Tommy Lee Jones, que é o responsável por tentar emocionar po público. O filme inclusive poderia ser encerrado com a revelação sobre um segredo do personagem que ganharia pontos no fator emocional, mas não, Spielberg prefere esticar a narrativa e tratar a morte de seu protagonista (por favor, não me venham com essa de spoiler aqui) de forma banal, sem ter a coragem de ter recriado o momento de sua morte. A covardia de tentar "tocar no mito" parece tão grande que nem mesmo mostrar sua morte parece ser uma coisa confortável para o diretor, que prefere mostrar a passagem de Lincoln de forma abrupta e sem cuidado algum, impedindo o público (de novo) de criar qualquer vínculo emocional aos personagens, mesmo diante de uma tragédia.

Lincoln é uma produção estéril. Fria, gélida, corretíssima, tecnicamente muito bem construída, com um Daniel Day-Lewis perfeito e um Tommy Lee Jones exuberante, mas que não guarda características daquele que um dia foi o sujeito que mais sabia emocionar uma platéia de cinema. Lincoln não tem alma alguma, e parece apenas um vulto histórico apagado pelo tempo em uma folha amarelada na história. Nada digno para um homem tão importante para seu país.



Em 1865, logo após o fim da Guerra Civil norte-americana, o poeta Walt Whitman escreveu o poema “O Captain! My Captain!”, uma grande metáfora sobre toda a jornada de unificação do país sob os novos conceitos abolicionistas adotados e defendidos pelo presidente Abraham Lincoln. Os marcantes versos de Whitman foram escritos após a fatídica morte do presidente, e toma este como o capitão de uma embarcação que, logo após concluir sua “viagem aterradora” com sucesso, morre no convés e deixa toda sua tripulação em estado de agonia e frustração.

Lamentavelmente, o único sentimento que o filme de Steven Spielberg compartilha com o brilhante texto de Whitman é o de frustração. Uma frustração decorrente de uma obra falha, superficial e descartável, que procura recontar os fatos, mas não investiga-los.  Entretanto, Spielberg já foi capaz de gerar os sentimentos despertados pelo poeta do século XIX. Já o fez incontáveis vezes, e a última foi no espetacular Munique, um longa maduro e intrigante que retratava a relação conturbada entre a família e a violência de maneira espetacular.

Ironicamente, um dos co-escritores responsáveis pelo belo script de Munique foi Tony Kushner, o roteirista de Lincoln. Adaptado do livro Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln de Doris Kearns, o roteiro de Lincoln toma por princípio os meses que antecedem a votação da 13ª Emenda no Congresso, o documento que, entre outras coisas, traria a escravidão nos EUA ao fim. Desse modo, somos introduzidos ao dilema do presidente (vivido por Daniel Day-Lewis): tentar selar o acordo de paz com os Estados Confederados – e assim colocar em risco a aprovação da Emenda – ou buscar o apoio necessário para a maioria na Casa dos Representantes, assinarem a abolição e assistir, nesse meio tempo, ao banho de sangue que o país enfrenta.


O texto de Kushner aborda o tema da abolição – que é a discussão ideológica central no filme – com certo idealismo reforçado, que não só era incompatível com o espírito da época, mas também seria difícil de engolir até nos dias atuais. Há em Lincoln muito maniqueísmo de fácil deglutição, e pouca dissecação de assuntos.  É muito mais fácil de fazer, mas também de se absorver, uma narrativa que desenhe uma situação de forma bidimensional. Kushner não se atreve a ousar, a investigar mais de perto os contornos turbulentos daquele período. Mas se não faz isso, não é por falta de conhecimento ou incompetência – afinal, Munique é um elaborado retrato de personagens cheios de méritos e falhas de caráter, personagens humanos. Se Tony Kushner opta por uma abordagem superficial, é por puro medo. Medo de ser mal interpretado, de dar a entender algo errado num tema tão crucial e polêmico na história dos EUA.

Medo que é compartilhado por um dos maiores corações moles que a indústria recente já viu que se trata do novo Spielberg.  O medo que Spielberg nutre é o de ousar e sujar sua imagem como bom moço, mas principalmente de sujar a imagem de um dos ícones mais importantes da América do Norte – Abraham Lincoln.  Desse medo, surge um respeito demasiado, que interfere desde o modo como o personagem é retratado e culmina até mesmo na direção de Spielberg. A originalidade passa batida, e o diretor escolhe usar a fórmula básica da biografia: mitifique seu biografado e deixe o resto falar pro si mesmo. E o mito de Lincoln parece furado, afinal o tomamos como algo a ser adorado, mas tampouco sabemos o porquê Lincoln mereceria ser reverenciado. Isto porque seus realizadores não se atrevem a explorar sua persona a fundo, e se contentam com a sempre segura superficialidade.  Assim sendo, Spielberg toma o projeto para si mais como um desarme de bomba do que um longa-metragem. Qualquer passo fora da fórmula pode causar uma explosão de danos incalculáveis.

O que salva o exercício formuláico de Spielberg do total fracasso é a humanidade trazida por seu talentoso elenco. Daniel Day-Lewis consegue encarnar Lincoln com estofo emocional interessante, dedicando sua atuação – baseada no método – a incorporar cada detalhe dos hábitos do ex-presidente: Sua postura elegante, mas um tanto cabisbaixa; seu semblante calmo, mas claramente perturbado por toda a sorte de eventos que precisa lidar. É uma pena que o trabalho esmerado de composição de personagem realizado por Day-Lewis não encontre eco em Kushner ou Spielberg.  Entretanto, o desempenho do ator inglês é acompanhado de perto pela interpretação de Tommy Lee Jones, que vive um abolicionista radical que é também uma das lideranças do Congresso. Seu personagem admirável só não merecia sua cena final, que revela um motivo tão óbvio e parco para seu ativismo. Outro problema de responsabilidade do roteiro.


Lincoln é um filme padronizado no esquema recente de produções de Spielberg. Quanto mais simplória, superficial e melodramática for uma trama, melhor. Aliás, o melodrama exagerado e forçado de Spielberg chega a doer quando entoado nas trilhas genéricas e megalomaníacas de John Williams. Infelizmente, isto se repete em Lincoln, em mais de uma infeliz oportunidade. Spielberg encontra-se hoje em dia na sua fase “lugar seguro”, e tudo aquilo que for grandiloquente e formulaico já tem prioridade na sua filmografia. Talvez seja por isso que seus filmes aventurescos sejam aqueles que estejam se saindo melhor – como o Aventuras de Tintim.  De qualquer forma, não é o caso de Lincoln. Um longa que foi feito quase 150 anos depois que os fatos realmente ocorreram, com 150 minutos de duração, não deveria ser tão facilmente superado, tanto em estilo quanto em profundidade, por um poema de seis estrofes feito no calor recente dos acontecimentos. 



quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

João e Maria - Caçadores de Bruxas


João e Maria - Caçadores de Bruxas
(Hansel and Gretel: Witch Hunters, 2013)
Ação - 90 min.

Direção: Tommy Wirkola
Roteiro: Tommy Wirkola

Com: Jeremy Renner, Gemma Arterton, Famke Janssen, Peter Stormare

Tá na moda. Pegar uma história infantil (ou infanto-juvenil) e transformá-la em uma produção "adulta", séria, violenta, agressiva na abordagem dos personagens, às vezes até desvirtuando os conceitos desses contos. Essa não é uma "invenção" do cinema, mas uma consequência da ânsia do publico por fantasia. Se Bill Willingham em sua serie de quadrinhos Fábulas fez uma enorme revolução, True Blood, Crepúsculo, Grimm, Supernatural entre muitos e muitos outros fizeram o mesmo na TV e no cinema. A fantasia vende muito e cada vez mais o cinema se abraça com muita força a estes personagens.

Ano passado, o cinema foi tomado de assalto pelo risível Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, uma bobagem sem muita graça sobre o presidente americano caçando os chupadores de sangue e esse ano é a vez de João e Maria caçando bruxas.

O bom, é que João e Maria é bem mais divertido que o filme do presidente americano. Escrito e dirigido por Tommy Wirkola (o maluco responsável pelo cult Zumbis na Neve/Dead Snow, uma maluquice sobre zumbis nazistas) João e Maria se leva muito menos a sério, é sucinto, direto e não perde tempo com explicações pretensiosas e se foca no óbvio nesse tipo de produção: ação, sangue e até nudez (olha só).


A história parte do conto clássico, com dois irmãos sendo largados na floresta e encontrando a casa de doces e a bruxa. Aí, a história muda completamente. A bruxa é medonha, as crianças atacam a bruxa de forma violentíssima, mas o final acaba sendo o mesmo: bruxa queimada no forno.

A partir daí, João e Maria se transformam em caçadores de bruxas e a trama segue até uma cidade alemã em que crianças foram sequestradas e os irmãos são contratados para encontrá-las. Curioso citar, que o filme mostra recortes de jornal ilustrando os feitos de João e Maria, com ilustrações que parecem medievais, o que nos situa historicamente na trama. Jeremy Renner é João, um sujeito calado e de pouco papo, enquanto Gemma Arterton é Maria, de personalidade forte que bate primeiro e pergunta depois.

A trama é bem rasa, bem óbvia, mas isso não chega a ser um defeito, já que o filme não tem pretensões de ser nada além de um passatempo razoável. Como estamos nesse mundo fantástico, é preciso detalhar as maquiagens e criaturas mágicas criadas pela produção. Famke Janssen, bela atriz holandesa radicada há anos nos Estados Unidos (e que todo mundo lembra como a Jean Grey em X-Men) vive a bruxa mor, chamada Moira, sob muitos momentos embaixo de uma maquiagem razoável, que faz seu rosto marmorizado e praticamente craquelado. O mesmo vale para suas duas ajudantes (ou filhas, ou casal de filhos, já que uma das bruxas/os é absurdamente andrógino/a) que mantém o padrão de maquiagem do filme, que não é ruim, mas está longe da qualidade exigida em um filme do gênero nos dias de hoje. Existe um troll no filme, que parece saído - sem muitos upgrades - de um filme oitentista do gênero, como Labirinto, lembrando bastante à produção dos estúdios Henson.


Por outro lado, inspirado nessa onda de filmes realistas e adultos envolvendo fantasia, João e Maria é recheado de violência gore e explícita, incluindo desmembramentos, cabeças amassadas entre outras nojeiras que talvez incomodem aqueles que irão ver o filme esperando aquele sangue em computação gráfica, típico das produções do gênero.

Toda essa cultura de seriedade na fantasia me faz questionar o público, estaremos ficando mais infantilizados e abraçados a crenças e histórias que nos tragam - de repente - algum conforto, mas não queremos as ver de forma infantil, já que (em tamanho ao menos) crescemos? Ou é a ousadia do ser humano, que procura adaptar tudo a sua realidade contemporânea? Ou mesmo é o desejo sádico do público em re-imaginar algo que já conhece dando uma "nova cara" a essas histórias? Ou mesmo é a facilidade para vender um conceito conhecido, porém "mudado", que possa atingir um público nerd ávido por todo tipo de historia fora do mundo real? Ou a eterna falta de criatividade hollywoodiana em criar conceitos novos e de sucesso?

Antes que a pedra gigante role ladeira abaixo sobre minha cabeça, isso não é uma crítica, mas uma constatação. João e Maria é apenas mais um elemento nessa onda que parece não ter fim. Teriam mesmo os nerds tomado de assalto a cultura do entretenimento de tal modo que somente a realidade fantástica pode funcionar? E mais, estariam estes felizes com essa avalanche? A qualidade dessas produções é realmente boa e acerta no alvo de seu público?


Sobre as duas últimas questões, me permito observações: Não, imagino que não estejam felizes, já que, o publico que motivou esse tipo de produção ser alçada a uma categoria de produto de sucesso, sofre com a qualidade cada vez menor dessas produções. Por outro lado, um público diferente, ávido por escapismo abraça essas histórias com muita força. Seria então, uma resposta dos frequentadores do cinema a sua realidade? Quanto mais escapismo, menos preocupações? Essa é a regra do cinema desde sempre, a fuga para a tela prateada é muito sedutora e nos proporciona horas de desligamento de nosso mundinho, mas não responde o porquê esse fascínio com esse tipo de tema específico. Seria uma vontade de voltar à infância?

Não sei, e gostaria bastante de saber. O fato é que diante da invasão, João e Maria é digno. Não é brilhante, nem tem essa intenção, mas é divertido no que se propõe (as sacadas "modernas" como um desfibrilador de corda ou a "doença do doce" são excelentes) e na média das produções do "gênero" é superior à maioria delas.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Amor


Amor
(Amour, 2012)
Drama - 127 min.

Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke

com: Jean-Louis Trintignant, Emanulle Riva, Isabelle Huppert

Michael Haneke é um sádico. Só um sádico consegue realizar uma obra chamada Amor sendo tão duro e - porque não - honesto sobre os reais significados dessa palavra. E digo isso sem nenhum ranço do sentimento, ao contrário, já que vejo o filme de Haneke como uma verdadeira elegia ao sentimento mais complexo do escopo dos seres vivos. Haneke nos faz uma pergunta simples e que todos nós nos fazemos, com maior ou menor grau de medo e dúvida: o que acontece com o amor quando ficamos velhos? O que acontece com o amor quando o nosso corpo não nos entende mais? O que acontece com o amor quando vemos aquele a quem dedicamos anos de nossa vida (alguns quase uma vida inteira) se esfarelar diante de nossos olhos?

São perguntas difíceis, densas, dolorosas de ser serem respondidas. E Haneke colocando em frames sua visão de seu próprio futuro (ou presente) faz uso de um casal para dar sua interpretação de uma eventual resposta. Outros certamente transformariam o calvário seguido pelo personagem de Jean-Louis Trintignant em uma obra melodramática recheada de momentos de comoção, de cachoeiras de lágrimas, de abraços sinceros e de resoluções esperançosas.

Muitos fariam isso, mas não Haneke. Famoso por suas obras sem concessões, sem medo de entrar em um campo sempre minado e apostando na teoria de que o ser humano é uma coleção inesgotável de complexos e problemas, sua filmografia não cede espaço para o melodrama aberto (talvez o vejamos transformado em alguns momentos, mas sempre depois da "plástica" aplicada pelo diretor).


Amor, curiosamente, talvez seja o mais "humano" e acessível dos filmes do diretor. Saindo do microcosmo de um casal de idosos absolutamente ativos (ele, ao que parece, um aposentado de posses e ela, uma professora de piano talentosa), Haneke analisa o ser humano tendo de provar o tamanho de seu amor diante da tragédia. Georges (Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) passam por essa provação, quando Georges começa a perceber que sua amada sofre de algum mal. A historia, praticamente uma longa e lenta transformação de uma rotina comum em tragédia, é filmada com igual voyeurismo que é comum aos outros filmes do diretor. Porém, Haneke parece mais tocado pelo que mostra e por mais que a historia tente nos deixar distanciado daquilo, com seus longos planos estáticos e a dificuldade em percebermos com certeza sobre o que sente Georges ao ver sua mulher naquele estado (apesar de tocado, seu humor varia entre o transtornado com a situação, chocado, resignado, mas quase nunca emocionado), existe ali uma pontinha de carinho por Georges, quase uma posição de alter-ego.

A trama toma forma quando o que antes era uma simples dificuldade se transforma em uma trágica operação mal sucedida que transforma a ativa Anne em uma mulher confinada a uma cadeira de rodas. É ai que vemos pela primeira vez a personagem da filha do casal (Isabelle Huppert) que é a que mais transparece o desespero comum em situações dessa natureza.

Amor é doloroso de ser visto, cansativo e por vezes até assustador, mas é um tremendo trabalho de seu elenco. Se Isabelle Huppert mostra-se inconformada com o rumo da historia e do sofrimento de sua mãe, Trintignant tem uma interpretação fenomenal que transmite sua inconstância de sentimentos pelos olhos e pelos momentos de solidão em que o personagem parece se perguntar sobre que caminho tomar. E finalmente Emanuelle Riva, que no momento em que essa crítica está sendo escrito, já foi laureada com a indicação ao Oscar de melhor atriz. Um trabalho solitário de transformar-se diante de nossos olhos, de mulher ativa, a frustrada, a entristecida, a revoltada e por fim envolvida na insanidade. Tudo isso de forma sutil, mas muito real e dolorosa.


Vê-la sucumbir diante da tela é um aceno triste para todos nós, de uma possibilidade bastante próxima de todos. Ver a reação de seu esposo (um verdadeiro desmoronamento interno) é a perfeita representação de uma possibilidade bastante crível, e talvez por isso ele machuque tanto e seja o filme mais humano de Haneke. Os personagens são tão bem construídos em suas introduções simples e objetivas que nos comovemos com eles e por nos enxergarmos ali, possíveis intérpretes daquele drama.

Claro, que como em todo filme do diretor (não darei spoilers, embora o espectador consiga adivinhar nos primeiros minutos de projeção) a tragédia é gloriosamente apresentada sem nenhuma dose de pudor e, portanto os finais amargos são oferta da casa. E tudo é conduzido com enorme controle por Haneke que nos priva de sentimentalismos nos afundando em agonia.

Amor talvez seja um dos mais honestos filmes já realizados sobre o tema. Ver envelhecer alguém que se ama e ter de lidar com todos os problemas e privações decorrentes dessa condição é uma verdadeira batalha. Agir de forma extremada pode ser visto como maligno, mas a questão que Haneke quer que seu público responda é: você, ali, naquela situação, agiria como? Haneke nos dá uma violenta aula de amor, sádica e poética, como os maiores e mais gloriosos contos sobre o tema que o cinema já contou.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Django Livre


Django Livre
(Django Unchained, 2012)
Western - 165 min.

Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino

com: Jamie Foxx, Leonardo DiCaprio, Christoph Waltz, Samuel L. Jackson, Kerry Washington

Reclamar de "tarantinisses" em um filme do próprio é bobagem. Por isso, aviso que não entrarei no coro dos que não veem "realismo histórico", "veracidade nos fatos", "desvirtuamento de valores" e tudo mais que foi dito há quatro anos atrás quando o diretor brincou de guerra em seu Bastardos Inglórios. Prefiro me ater ao fato de que é inacreditável perceber que mesmo criando as obras mais cheias de referências que um cineasta pode produzir, e, portanto, deixando "de lado" a originalidade, Quentin Tarantino assina a ferro e fogo cada uma de suas obras com uma contundência impar. Bastam muito poucos frames de exibição para notarmos que estamos no "mundo mágico" de Tarantino, onde referências e misturas exóticas permeiam o caminho.

Django Livre não é exceção, de fato, acho que nem mesmo em Kill Bill as transgressões cinematográficas foram tão agudas quanto aqui. Se no filme da Noiva, ele usou dos filmes de kung fu B para tratar de vingança, aqui ele é ainda mais ousado, usando um spaghetti western para transformar um escravo negro em "herói" e maior assassino do Oeste.

Nos Estados Unidos o filme foi acusado de racista pelo uso da apalavra nigger (que a gente pode traduzir livremente como "crioulo"), que é verborragicamente dita durante boa parte do filme. Aqui faço uma defesa de Quentin. Acho, ou melhor, tenho quase a certeza de que aqueles que acusam o filme de ser racista não o assistiram, pois se assistissem somente aos primeiros dez minutos notariam exatamente o oposto disso. Explico: ao som do tema de Django (o mesmo composto na década de sessenta para o filme original italiano), vemos uma fila de escravos caminhando seminus pelas "estradas" de pedra e terra embaixo de sol, chuva e frio, sendo escoltados por seus donos. A noite cai, e vemos uma carroça com um ridículo dente preso ao seu teto parar e após apresentações, conhecemos o Dr. King Schultz (Christoph Waltz) que está à procura de escravos que moraram em uma determinada fazenda. Após uma ligeira conversa, Schultz revela ser muito mais do que um sujeito empolado de fala mansa e "dentista" como acusava sua carroça, é também um matador que leva um dos escravos (o nosso herói Django) que havia dito que conhecerá a fazenda e seus moradores. Pois bem, e ai a coisa fica perigosa para os amantes da história "esse filme é racista". Waltz dá duas opções aos escravos ali presos. Levar um dos homens atingidos pela fúria de Schultz (como eu disse ele é um matador) até um médico e voltar ao cabresto ou... acho que entenderam. Liberando a fúria homicida de anos de abusos e flagelos, o que fazem os escravos? Acho que vocês podem imaginar.


Talvez, no contexto histórico e social americano, o uso excessivo da palavra realmente funcione como gatilho racista, mas, por favor, vamos entender a historia envolvida. Todos aqueles que usam a palavra nigger são mostrados como salafrários, bandidos, canalhas, estúpidos e que não merecem viver. Tarantino não glorifica a palavra, apenas mostra que por meio dela podemos exemplificar a ignorância de que a profere com tanta virulência.

Django Livre acompanha a dupla mais insólita de caçadores de recompensa (a "profissão" adotada pelo imigrante alemão vivido por Christoph Waltz) que se afeiçoa ao parceiro Django e decide ajudá-lo em seu plano de vingança, o que leva o filme muito próximo das suas origens italianas. Longe de ser um western sobre redenção humana, ou com comentários sociais (apesar da sacada de fazer do herói um escravo é ótima), Django é um romance, por mais torto que pareça. Django quer encontrar Brunhilda (Kerry Washington) sua esposa, que foi separada dele e hoje permanece perdida. Brunhilda, a valquíria de ébano que fala alemão fluente e que tem a personalidade forte como a de uma besta nórdica.

E é nesse clima irônico e violento que Django segue, com suas escravas que falam alemão, fazendeiros brancos que discutem pela dificuldade de enxergarem com sacos de pano mal costurados sobre os rostos (na cena mais engraçada do filme, e das mais engraçadas da carreira de Tarantino), um herói vestido de valete renascentista andando a cavalo, uma luta entre escravos sobre o chão de madeira, um ataque de cachorros a um pobre coitado que tentou fugir de sua condição e é claro, tiroteios, explosões e tudo mais.


Django tem problemas, no entanto, especialmente em seu segundo ato quando parece que Tarantino quis esticar ao máximo a sensação de suspense (que não é eficiente), tornando muito longos certos diálogos, embora elas sejam estilisticamente muito bem realizadas. É o caso da citada cena dos capuzes, que é longa demais, embora muito boa.

Jamie Foxx é um Django digno. Um homem que aprende um ofício e se transforma em um verdadeiro azougue no que se propõe a fazer. Foxx está intenso, fisicamente impecável e acertando até em detalhes de composição muito sutis como sua constante sensação de tensão, que só é deixada de lado no glorioso ato final. Já Christoph Waltz, embora seja impossível negar seus acertos como o calhorda polido e talentoso, parece demais uma versão mais velha (dado o momento histórico em que o filme se passa) de seu coronel Landa de Bastardos Inglórios. Certas sutilezas de interpretação, a constante polidez de suas palavras, a sua educação cirurgicamente pensada e sua frieza em executar seus inimigos são a mesma do brilhante vilão do filme de 2009.

Quem rouba a cena é a dupla Samuel L. Jackson e Leonardo DiCaprio, como um - aparentemente - velho escravo bajulador e um fazendeiro sádico, respectivamente. Jackson, brilhantemente caracterizado é impagável como o cruel e hilário senhor sem papas na língua, chocado por ver um negro em posição diferente do que a de escravo, mas que durante a produção vai se revelando um líder, amargo e violento. E DiCaprio, segue a linha de Waltz, só que sem a aura de "nobreza" que o Dr. Schultz transparece. Sua personagem é sedutora, aparentemente gentil, mas raivosa em sua essência e isso fica muito claro quando sua paciência se encerra.


Django é uma aula de estilo, embora ele não tente emocionar o público, mas sim entretê-lo, diverti-lo com seus excessos e mesmo com seus erros. Tarantino é uma auto-referência humana, um sujeito verborrágico que fez de seu cinema seu agradecimento àqueles que o inspiraram, tornando difícil imaginar um filme tarantinesco em que nos sintamos tocados emocionalmente por uma história (embora isso acabe acontecendo em Bastardos Inglórios e em Kill Bill).

Isso não impede de que uma produção do diretor seja uma experiência cinematográfica satisfatória. Se ele não atinge o público pela emoção, o faz pelo humor, já que é impossível não se divertir em Django Livre. Além das atuações que estão perfeitas para o clima do filme, ele ainda é inteligente em suas homenagens (Franco Nero, o Django original faz uma ponta) e no uso sempre certeiro da trilha sonora. Afinal, só em um western de Tarantino veríamos soul music e hip hop quando uma procissão cavalga pelas estradas do sul dos Estados Unidos.

Django Livre não é um remake de Django, nem um faroeste histórico ou uma denúncia social contra o racismo, mas outra brincadeira de Tarantino com sua enorme biblioteca de referências. Um pouquinho arrastado demais, com um roteiro que estica demais certos momentos, mas uma aula de estilo e de criatividade visual. Que venha seu filme sobre alienígenas, fantasmas ou qualquer coisa do gênero.










O maior fã de Cinema presente em Hollywood, Quentin Tarantino se afastou dos policiais do início de carreira para homenagear os grandes filmes da indústria. Se sua celebração ocorrera pelos clássicos Cães de Aluguel e Pulp Fiction, o primeiro risco veio em Jackie Brown, que ao adaptar Elmore Leonard, fugiu um pouco do terreno comum do diretor. Porém, foi em Kill Bill que o ex-gerente de locadora começou a visitar diferentes gêneros: da ação japonesa e duelo espadachim dos dois filmes sobre a Noiva até a guerra mundial de Bastardos Inglórios, passando pelo manifesto grindhouse À Prova de Morte. Até que Tarantino, fã incondicional de Sergio Leone resolve se aventurar com seu primeiro Western. E em Django Livre, o diretor volta ao passado do spaghetti western para contar uma fábula distorcida.

(Kill Bill vol. 2 é, em essência, um faroeste [e dos bons], mas é aqui que o americano faz um western no sentido literal).

Como fez com a Universal em Bastardos, Tarantino já inicia seu filme com reverência, ao projetar o logo antigo da Columbia Pictures. As paisagens áridas dignas dos clássicos do gênero preenchem a tela logo no primeiro take, sempre ressaltadas pela fotografia. Entretanto, como um elemento intruso, um grupo de escravos anda por ali. O western sempre situou suas tramas longe do Sul norte-americano a fim de evitar temas polêmicos como a escravidão, o que causa a subversão da imagem bem interessante no contexto. E se isso traz uma questão tipicamente “tarantinesca” (um conceito estabelecido, mas modificado à sua maneira) de uma maneira mais séria, é logo após, na cena de introdução de King Schultz, que o conhecido despojo do diretor se nota. Muitos diálogos divertidos e uma explosão de violência depois, o Django alforriado do título e o ex-dentista já se fazem presentes de forma grandiosa na tela. Tarantino se reafirma como um marcante criador de mundos/personagens, mas são em outros quesitos que o filme surpreende, seja de maneira positiva ou negativa.


O roteiro, novamente escrito pelo diretor, salta de uma referência a outro para contar uma envolvente história de formação de mito, maior até que a formação de herói, uma (re)criação de gênero. Se o exemplo mais fácil se dá pelo escravo cowboy, o diretor vai além ao criar o Dr. Schultz como um legítimo lorde inglês. Desde seus trejeitos, sua cadenciada retórica e seu cavalheirismo até a disciplina diante de um alvo, o caçador de recompensas alemão é encaixado na trama como um digno esgrimista dos livros clássicos da literatura. Até mesmo seu cavalo, Fritz, é educado a ponto de responder ao ser chamado (!).

Logo, o revisionismo de Django Livre é um pouco mais complexo do que o de westerns mais recentes, como Os Imperdoáveis. É um filme que revisita não apenas os faroestes, mas todos os gêneros, para reuni-los. Utiliza um alemão e um afro-americano para contar sobre a formação da cultura negra, dentro de uma trama fabulesca do folclore europeu em forma de faroeste. É a mesma exploração cinéfila presente em Kill Bill e À Prova de Morte, mas com muito mais maturidade e ambição.

Mesmo na estética, as variações se refletem. Os planos de contemplação absoluta do deserto se juntam aos exagerados zooms rápidos do gênero. Nas cenas da tortura de Django e sua esposa, Tarantino usa de uma fotografia grindhouse para registrar Bruce Dern; nas cenas de travessia (não são poucas, mais a frente), a câmera registra o brilhante pôr-do-sol; nas cenas de diálogo no deserto noturno, a granulação fica visível no bonito ambiente azulado. O arrojo de Tarantino aparece em belas cenas: os ângulos que o diretor concebe são muito bonitos, a tensão criada para um duelo é precisa, e o domínio de close que demonstra aqui é coisa de mestre (repare o imponente close em Leonardo DiCaprio quando o mesmo acende seu cigarro), mas é notável que essa separação torne o filme mais volátil. É o mais solene dos trabalhos do diretor em temática e técnica (toca Dies Irae, de Verdi) – mas também o mais blaxpoitation de todos.


Um reflexo dessa dualidade ocorre no entendimento do diretor do serviço que em uma cena pode prestar à narrativa e ao subtexto. Passagens essencialmente narrativas chegam desnecessárias (como o encontro com um caçador, que oferece abrigo para a dupla) ou meramente convencionais (a montagem de Django aprendendo a ser caçador). Já a cena do Ku Kux Klan debochando de suas máscaras surge exclusivamente para tirar um sarro com a temática séria, sem função alguma para a história (por mais que, isolada, a cena seja ótima).

Nisso, o roteiro se mostra impreciso. Django é um filme ambicioso em temática e procura reunir muita informação em seus 165 minutos. Com os já citados contrastes, o filme se revela oscilante. Ora brilhante (o estupendo clímax), ora corriqueiro (desentendimento dramático consagrado entre os protagonistas é algo novo na obra do diretor). O montador Fred Raskin, antes assistente da falecida Sally Menke (colaboradora de Tarantino em todos os projetos), faz um trabalho digno da sua antiga companheira, ao dosar bem o ritmo do filme e tentar organizar a empreitada temática proporcionada por Quentin, mantendo a energia da obra.

Diferente do calibrado roteiro de Bastardos Inglórios (onde todas as cenas estavam no lugar certo), a narrativa de Django segue muito menos uma estrutura coesa. A reunião do tributo ao western acaba tresloucada, justamente por trabalhar com uma abrangente escala de referências. Se em Bastardos tínhamos uma narrativa que incluía passagens sobre os temas que o diretor admira, em Django temos diversas passagens sobre os temas que o diretor admira que incluem uma narrativa. Tudo o que era calculado em Bastardos, tende ao caótico em alguns momentos de Django – e isso não é um demérito dado à qualidade da temática que o diretor impõe a seu script.


Há excessivas travessias no filme, o ritmo até a chegada a Candyland não é tão consistente quanto o irretocável primeiro ato, a salada de culturas talvez não agrade a todos. Mas a quem reconhece ambiciosas incursões estilísticas em territórios desconhecidos, Django Livre será um longa marcante dentro da própria carreira do diretor, que já inclui diversas obras ímpares. Se aqui se fazem presentes as primeiras evidentes falhas em uma estrutura de Tarantino, não é por um motivo banal.

E mesmo com isso, a qualidade do diretor como narrador aparece em boa parte da película, criando uma coleção de cenas que já nascem expressivas, com um elenco à vontade e uma fotografia deslumbrante de Robert Richardson. Toda a excelente passagem do jantar em Candyland remete à cena da taverna em Bastardos Inglórios; a violência brutal da luta de escravos é chocante; a cena do escravo D’Artagnan é precisa ao caracterizar tanto tema quanto personagens; o último ato remete a um faroeste de raiz (sombras, beijo no contraluz, cowboy correndo com o rifle pra cima), ainda que com o upgrade de Tarantino; todas as frases de efeito de Foxx; o monólogo arrepiante de Calvin sobre um crânio. E, claro, a epítome da revisão: o clímax surtado e sensacional, que mistura clássico e novo, catarse com estilo, câmera lenta com faroeste, hip-hop com soul, Ennio Morricone com Jamie Foxx. Se não ressaltei com todas as letras o clímax, vale lembrar: é um banho de sangue estilosíssimo de Tarantino, que deixa até o de Kill Bill levemente pálido.

E com surpresas, surpreendentes ou frustrantes, a narrativa do afiado roteiro vai se consolidando. Se não se pode esperar solidez na narrativa, ao menos Django vale cada futura visita para simplesmente observar o talento de Tarantino em transitar entre gêneros, homenagens revisionistas e obsessões de uma maneira explosiva, afirmativa, talentosa. Pontualmente perfeito, o longa ganha bastante por sua maneira de estudar as culturas que está lidando. Se termina imperfeito, se recupera em outros aspectos. Não é um passo adiante na carreira do diretor como foi Bastardos, mas sem dúvida um exercício empolgante.