domingo, 13 de janeiro de 2013

O Som ao Redor


O Som ao Redor
(O Som ao Redor, 2012)
Drama/Thriller - 131 min.

Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho

com: Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, W.J. Solha, Irma Brown

O cotidiano é algo fascinante. Surpreendentemente misterioso. A ação de pessoas em seu curso de necessidade, por vezes previsível, acaba se mostrando ímpar por expor, ainda que levemente, as fraturas de um determinado local ou grupo. Recorrente, a tentativa da sociedade de se organizar revela a capacidade estranha de cada pessoa, mesmo tendo um livre arbítrio, de seguir caminhos quase pré-determinados, muitas vezes involuntariamente. É ao olhar mais de perto que uma sensação de mal-estar se instala na rotina aparentemente trivial.

E nesse nível opera O Som ao Redor, uma crônica do social, do som, da rotina mas, principalmente, do mal-estar. O primeiro filme de ficção do consagrado curta-metragista Kleber Mendonça Filho observa a vida dos moradores de uma rua de Recife com o mesmo olhar implacável que cineastas como Michael Haneke possuem: filmando o trivial, e mostrando que, de trivial, ele não tem nada.

Já ambientando o espectador nos minutos iniciais com um plano-sequência que percorre com segurança um local do condomínio até chegar ao campo de futebol, Mendonça é paciente ao criar uma atmosfera penetrante que emule uma realidade onde é possível reconhecer todo cotidiano dos moradores sem precisar dizer nada. Temos um local calmo, onde poucos carros passam o que corresponde ao ambiente; a vida dos moradores, mostrando o trabalho deles (trabalho capitalista, como o corretor Gustavo mostrar um apartamento para uma possível compradora, ou trabalho compulsório, como o de Bia, personagem da ótima Maeve Jinkings, ao preparar os filhos para alguma tarefa); e o problema, como o perfeito design de som já deixa claro desde o início, que é o som ao redor.


Aproximando o espectador a cada morador desde esse princípio, o diretor implanta cortes secos para ressaltar o caráter de continuidade do que se vive ali no bairro de Setúbal, o que funciona tanto para delimitar o cotidiano das pessoas quanto para criar um inquietante mistério no ar da narrativa. Mistério, por sua vez, que se junta aos incômodos sons em volta de cada morador, para criar o mal-estar necessário para mover a historia. Investindo em uma série de tramas curtas que vão se desenrolando e se interligando de maneira perigosa, Mendonça é cuidadoso ao exibir tensão mesmo nas cenas onde o desenvolvimento do personagem é o foco: na cena em que Bia se excita, o barulho da centrífuga toma conta da projeção e aumenta o desconforto.

Concentrado em abordar de forma panorâmica a vivência no bairro, o roteiro começa a se revelar uma análise social em trechos específicos que, no meio da envolvente teia de personagens, se revelam falsamente despretensiosos. Naquele conjunto de classe média, eventos pequenos irritam a vizinhança: um porteiro dorminhoco, um ladrão de pequenos valores, alguma batida de carro. A solução parece ser a contratação de uma segurança privada para as redondezas, uma pequena milícia. O que parecia simples questão de orgulho/proteção se torna uma questão maior através do mal-estar implantado por Mendonça Filho. Afinal, as fotografias antigas do local aparecem de forma desconfortável por algum motivo. Será que o local mudou tanto assim com a chegada da modernidade e com o avanço econômico?

A proteção de cada um com seu território é revelada com pequenos atos. Há uma cerca na única casa do bairro; no encerramento do primeiro ato, Mendonça registra takes de altos prédios, com paisagens de grandes edificações, sufocando a pouca natureza; e até Bia quer proteger seu território do cão latindo. A classe média do filme tem agora as mesmas preocupações dos antigos donos de terra. Essa classe ascendente não só investe para fora do país (os filhos de Bia aprendem mandarim) como tratam de maneira não muito convidativa seus empregados (a explosão da dona de casa com sua empregada, que queimou um aparelho). E nisso, Francisco, vivido por W. J. Solha, ganha um olhar diferenciado. Uma simples ordem do homem é mais autoritária do que parece, e a aura em torno dele remete aos latifundiários do sertão. Se os médios se elevaram, a alta está tão poderosa quanto naquela época. O seu banho de mar é vigiado com cuidado maior que o normal, sua postura é de chefe de feudo. Até mesmo a atitude do pacato protagonista João, interpretado com precisão clínica pelo excepcional Gustavo Jahn, acaba carregando certa reminiscência hierárquica trabalhista dos tempos do engenho.


Ousado como narrativa incômoda, o filme tem como cena-chave a da reunião do condomínio. Uma civilizada discussão, reunindo muitos dos personagens, começa com descompromisso. Aos poucos, quando uma mulher aponta um erro do condomínio, os presentes começam a discordar e a tensão se torna crescente. E, como em todo o filme, o desenho de som é responsável por exacerbar a tensão. Mendonça sabe do potencial e da função de sua cena; logo, a encerra subitamente quando ela já exerceu o que precisava.

Esta técnica, de cortes abruptos, o diretor usa com propriedade no longa. A complexidade engenhosa da narrativa de Mendonça Filho é tamanha que seria compreensível deixar de se aprofundar nos aspectos mais técnicos da produção, mas o diretor calcula todo sua obra com perfeccionismo. O domínio espacial de Mendonça, auxiliado pela brilhante fotografia de Pedro Sotero e Fabricio Tadeu, casa perfeitamente com o pleno conhecimento de mise-en-scene do pernambucano, que assusta nos mínimos detalhes (como na cena onde um menino pede sua bola durante uma visita a um apartamento). E como ferramenta para sua constante tensão planejada, o diretor novamente surpreende: os close-ups de O Som ao Redor pontuam o filme com diversos duelos de diálogos fortes e expressivos.

Duelos esses que são demonstrados de formas diversas. Na cena dos seguranças com Dinho, a direção a inicia com um plano aberto, pegando a rua deserta e a baixa iluminação para criar atmosfera de embate. Com o desenvolver dos diálogos, os closes tomam as rédeas e a cena termina de maneira precisa. A atuação de Yuri Holanda, intérprete de Dinho é levemente caricata, exacerbando as atitudes autoritárias do jovem, o que aumenta a gravidade da situação sem cair no teatral. É um domínio que Mendonça Filho demonstra aqui, na principal cena que usa a imagem como forma.


Porém, na maior parte do filme, é em conjunto do som que a imagem apura o sentido para o tal mal-estar quanto para prenunciar algum acontecimento. Quando o traficante visita à casa de Bia, a lavadora faz um som estridente que é incômodo tanto para o personagem quanto para o espectador. Mendonça usa então um curto e lento travelling contra-plongée (que mostra o objeto, no caso a lavadoura, de baixo para cima) para criar um quadro onírico e desconfortável. Mais adiante, perto do clímax, esse ângulo será novamente utilizado, ainda que de maneira mais sutil, em um elevador. O som faz a função de elemento catalisador: neste elevador, nesse momento, ouve-se o barulho insuportável das cordas que sustentam o primeiro. E é dessa maneira incomum sonora e ambiciosa que Mendonça Filho vai quebrando os momentos comuns da narrativa.

Em um filme que o design de som é tão fundamental, espera-se uma possível exageração do uso. No entanto, o diretor sabe aproveitar muito bem o roteiro que tem em mãos. É raro ou quase nulo o barulho da vizinhança (a classe média que protagoniza) nas cenas com Francisco. No topo (nesse caso, literalmente) da sociedade, o personagem age como um senhor do engenho conservador, o que se reflete no ambiente. Sua empregada doméstica ouve a conversa ao fundo do quadro, como se estivesse acuada pelo velho homem. O som ao redor não se ouve porque o status de Francisco não deixa. E é com o silêncio que a tensão com Francisco se instala. Tanto a introdução quanto o encerramento do arco do homem é pontuado com uma inquietação fora do comum, que deflagra o cuidado com que cada pessoa ali se expressa (a tensa conversa na introdução, principalmente na citação a Lampião, é o exemplo máximo disso).

O que cria um caos absoluto na perfeita narrativa: se nem o silêncio está em paz, o que será do barulho?


Fundamental na conexão da densa narrativa com o espectador, o desenvolvimento de personagens é acertado ao criar características singelas, mas cruciais, em cada um ali. Bia é entediada, e por isso fica tão inquieta na passagem do mandarim; João é observador, cínico, como se nota pelo leve olhar de Gustavo Jahn; o tio de João é apresentado com um camarada amoroso, o que revela de forma econômica a bondade do homem; o segurança Clodoaldo apresenta uma retórica falha, mas cheia de energia, captada com precisão pela atuação de Irandhir Santos logo em sua primeira cena; até mesmo os personagens secundários têm certo trabalho esmerado, já que a empregada surge tirando sua roupa para, momentos depois, se entregar ao sexo; e, por fim, Francisco, que surge das sombras, após ser chamado, obviamente, por sua serviçal.

O uso de imagens surrealistas (a invasão da casa, os pesadelos no filme) para transformar em metáfora visual a perturbação sonora de O Som ao Redor toma, surpreendentemente, o roteiro de assalto com o passar dos três atos. O surgimento da visão antiga do local subitamente já causa desconserto, mas cenas como a da invasão e roubo da casa se estabelece como o inconsciente do medo dos moradores em perder o que é seu de valor, em forma de demonstração onírica aos olhos de uma simples criança, que talvez não saiba nem o porquê de possuir esse medo. Já a cena da cachoeira, emblemática e de incrível beleza plástica, torna gráfico o receio de uma resolução pessimista.

Chegando a um desfecho esplêndido, onde as partes desconexas do filme parecem rumar para algo extraordinário, mesmo que simples, o diretor investe por completo em mostrar seus personagens com um caráter duelista, ambíguo (repare como o vigia novo é apresentado de costas, ou com um zoom longo que o destaca de maneira imponente), para criar catarse onde os problemas invisíveis já haviam tomado conta da atmosfera do local.
 

E nisso, Mendonça concebe uma narrativa tão desconcertante em seu suspense quanto dramática, rica em seus arcos singulares, unidos pelo desejo de cada um possuir sua própria terra. O desconforto instalado, atravessando atos sem uma explicação explícita.

Assim, O Som ao Redor se torna tão fascinante porque causa tensão no espectador sem ele nem ao menos saber porquê.



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