quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Lincoln


Lincoln
(Lincoln, 2012)
Drama - 150 min.

Direção: Steve Spielberg
Roteiro: Tony Kushner

com: Daniel Day-Lewis, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Sally Field, James Spader, Joseph Gordon-Levitt, Hal Hoolbrook

Lincoln tem cara de vencedor de Oscar. É quadrado, careta, correto, patriótico e tem um elenco em ótimo momento. Mas, é arrastado, sonolento, lentíssimo e a sensação de acompanharmos um épico sobre a politicagem americana não é das melhores. Talvez funcione - imagino pelos elogios vindos de fora - muito melhor para os norte-americanos que conseguem se relacionar diretamente com aqueles personagens e histórias. Para os cucarachas daqui, não passa de uma modorrenta história sobre os bastidores da política, e convenhamos, as nossas histórias são mais suculentas de serem vistas, cheias de comédia, traição, vergonha, terror e ação.

O grande destaque é para o supracitado Daniel Day-Lewis, certamente um dos maiores atores do planeta. Seu Lincoln é um homem calmo e sereno, que em sua infinita cautela foi capaz de manter um país unido mesmo diante de uma guerra civil. Sua interpretação naturalista de um líder frente a um desafio é realmente especial, fazendo o espectador gostar de Lincoln imediatamente. Compramos suas ideias, seus discursos, suas muitas historias inseridas no filme, sua forma de ver a vida e até mesmo conseguimos entender sua relação complicada com sua esposa. Tudo graças a um momento (mais um, o que não é nenhuma novidade) desse excepcional Daniel Day-Lewis. É incrível notar como Daniel trabalhou, por exemplo, o timbre de voz do personagem, sempre baixo, quase que falando para dentro com uma ligeira rouquidão, que mesmo quando exaltado permanece seguro de cada palavra proferida. Lincoln de Spielberg recebe toda a carga messiânica que os americanos colocam em cima de seu presidente mais famoso.

Como disse, os atores se destacam em Lincoln e esse é o caso de Tommy Lee Jones, em desempenho arrebatador, como Thaddeus Stevens, um congressista que defende a igualdade racial em um período onde esse tipo de postura era visto como absurda. Seus discursos no congresso americano são energéticos, cheios de gana, força, inteligência e vida. Esse é um dos grandes desempenhos do ator em sua carreira. Completa o "trio de ferro" Sally Field, vive a Sra. Lincoln como uma mulher amargurada e eternamente em estado de depressão pela morte de seu filho. Sally fez o contraponto pessoal em meio a uma produção excessivamente engessada por sua ideia de passar uma mensagem.


Engessada por culpa do excesso de reverencia histórica de Steven Spielberg para com seu tema. Se em Lista de Schindler, Spielberg conseguiu misturar uma historia grandiloquente com quilos de emoção, Lincoln é apenas historicamente correto, um longa (mesmo) cheio de momentos edificantes, mas que não conseguem fazer o espectador se emocionar com a história.

Lincoln, não é uma biografia do presidente americano, mas a história da assinatura da libertação dos escravos, com detalhes nefastos de conchavos políticos, e todo o trabalho de bastidores para que a décima terceira emenda (que dava fim a escravidão) fosse aprovada. O que Spielberg fez foi praticamente ignorar toda a história até ali, e apresentar um momento histórico apenas. Isso, para quem não conhece a história do presidente americano (sendo honesto, uns 98% da população mundial) transforma o filme numa experiência incompleta. Como Lincoln chegou ao poder? Como o filho de Lincoln morreu? Como a relação de Abraham e Mary Todd "azedou"? Como é possível demonstrar que o presidente era carismático? Apenas essa última pergunta o filme tenta responder, encaixando uma quantidade assombrosa de anedotas que Lincoln usa para ilustrar suas ideias políticas, e que servem de veículo para Day-Lewis mostrar seu talento.

O presidente americano é quase um sábio mitológico, capaz de ter sempre a resposta correta para todos os problemas apresentados. O que Spielberg faz, é transformar seu líder em um messias, mesmo quando esse é "obrigado" a apelar para a politicagem para conseguir seu intento, já que suas promessas para os candidatos do partido rival para que esses endossem a lei, são sempre tratadas com escárnio e bom humor, e dão a entender no decorrer da trama, que aqueles homens foram convencidos "pelo ideal" e não pelos cargos que iriam receber em troca do apoio.


Spielberg é um tremendo diretor e disso todos sabem. Sua capacidade de construção de quadros é magnífica e aqui isso se comprova, já que ele consegue nos ilustrar uma gigantesca obra de bla bla politiqueiro. Uma façanha, mediante sua escolha para o filme. O filme praticamente não conta com cenas de ação, sendo uma obra calcada quase que exclusivamente em texto, o que - nas mãos de um sujeito menos competente - poderia ser transformado em um teatro filmado. Spielberg acerta em suas escolhas fotográficas, quando sempre coloca o presidente sob uma fotografia contrastada para exacerbar suas rugas (um sinal de sabedoria e experiência), e mesmo nas cenas diurnas Spielberg mantém a câmera próxima ao presidente, apostando em poucos momentos de grandes planos abertos, salvo aqueles em que existe uma real necessidade de dar um sentido de grandiosidade a obra. Já pensa diferente no tocante as sequências no Congresso que parece uma panela de pressão, acanhada, apertada, sufocante para aqueles que tentam debater. Isso, auxiliado pelas trocas de ofensas de lado a lado, faz dessas sequências, as verdadeiras "cenas de ação" do longa.

Contudo, por mais que Spielberg seja competente, é o texto de Tony Kushner que é o grande trunfo da obra. Recheado de grandes frases é uma base maravilhosa para que seus atores desfilem as já citadas interpretações de qualidade. Mesmo aqueles com pouco tempo de tela, casos de Joseph Gordon-Levitt e James Spader (ótimo) têm seu pequeno "solo" linguístico.

Porém, essa incapacidade crônica de emocionar o público é surpreendente em se tratando de Spielberg, que sempre apelou para essas sensações em suas produções. Se em filmes históricos mais fracos como Amistad (quem não se lembra de Djimon Hounsou gritando liberdade em seu julgamento?) ou mesmo no soporífero Cavalo de Guerra, o diretor encheu a tela de momentos "pra fazer o espectador chorar", aqui eles nunca acontecem. E por mais absurdo que pareça, elas fazem muita falta. 


Mesmo John Williams, um mestre em criar sensações emocionais por suas notas, aqui está surpreendentemente contido, sóbrio, com uma trilha basicamente incidental, sem grande destaque (sua indicação ao Oscar, me parece exagerada inclusive). Lincoln é um Spielberg sem as características que fizeram do diretor o mais famoso do mundo. Na ânsia de criar um retrato histórico correto, seguro, "sério" de um momento fabuloso de seu país, esqueceu de transformá-lo em uma experiência cinematográfica rica, ou com alguma alma.

Claro que existem momentos de bravata e de exacerbação, mas muito poucos, como a sequência em que Mary e Lincoln discutem veementemente por causa de seu filho mais velho, ou quando Lincoln impõe sua vontade perante o seu gabinete, mas quem precisa segurar esse elemento é Tommy Lee Jones, que é o responsável por tentar emocionar po público. O filme inclusive poderia ser encerrado com a revelação sobre um segredo do personagem que ganharia pontos no fator emocional, mas não, Spielberg prefere esticar a narrativa e tratar a morte de seu protagonista (por favor, não me venham com essa de spoiler aqui) de forma banal, sem ter a coragem de ter recriado o momento de sua morte. A covardia de tentar "tocar no mito" parece tão grande que nem mesmo mostrar sua morte parece ser uma coisa confortável para o diretor, que prefere mostrar a passagem de Lincoln de forma abrupta e sem cuidado algum, impedindo o público (de novo) de criar qualquer vínculo emocional aos personagens, mesmo diante de uma tragédia.

Lincoln é uma produção estéril. Fria, gélida, corretíssima, tecnicamente muito bem construída, com um Daniel Day-Lewis perfeito e um Tommy Lee Jones exuberante, mas que não guarda características daquele que um dia foi o sujeito que mais sabia emocionar uma platéia de cinema. Lincoln não tem alma alguma, e parece apenas um vulto histórico apagado pelo tempo em uma folha amarelada na história. Nada digno para um homem tão importante para seu país.



Em 1865, logo após o fim da Guerra Civil norte-americana, o poeta Walt Whitman escreveu o poema “O Captain! My Captain!”, uma grande metáfora sobre toda a jornada de unificação do país sob os novos conceitos abolicionistas adotados e defendidos pelo presidente Abraham Lincoln. Os marcantes versos de Whitman foram escritos após a fatídica morte do presidente, e toma este como o capitão de uma embarcação que, logo após concluir sua “viagem aterradora” com sucesso, morre no convés e deixa toda sua tripulação em estado de agonia e frustração.

Lamentavelmente, o único sentimento que o filme de Steven Spielberg compartilha com o brilhante texto de Whitman é o de frustração. Uma frustração decorrente de uma obra falha, superficial e descartável, que procura recontar os fatos, mas não investiga-los.  Entretanto, Spielberg já foi capaz de gerar os sentimentos despertados pelo poeta do século XIX. Já o fez incontáveis vezes, e a última foi no espetacular Munique, um longa maduro e intrigante que retratava a relação conturbada entre a família e a violência de maneira espetacular.

Ironicamente, um dos co-escritores responsáveis pelo belo script de Munique foi Tony Kushner, o roteirista de Lincoln. Adaptado do livro Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln de Doris Kearns, o roteiro de Lincoln toma por princípio os meses que antecedem a votação da 13ª Emenda no Congresso, o documento que, entre outras coisas, traria a escravidão nos EUA ao fim. Desse modo, somos introduzidos ao dilema do presidente (vivido por Daniel Day-Lewis): tentar selar o acordo de paz com os Estados Confederados – e assim colocar em risco a aprovação da Emenda – ou buscar o apoio necessário para a maioria na Casa dos Representantes, assinarem a abolição e assistir, nesse meio tempo, ao banho de sangue que o país enfrenta.


O texto de Kushner aborda o tema da abolição – que é a discussão ideológica central no filme – com certo idealismo reforçado, que não só era incompatível com o espírito da época, mas também seria difícil de engolir até nos dias atuais. Há em Lincoln muito maniqueísmo de fácil deglutição, e pouca dissecação de assuntos.  É muito mais fácil de fazer, mas também de se absorver, uma narrativa que desenhe uma situação de forma bidimensional. Kushner não se atreve a ousar, a investigar mais de perto os contornos turbulentos daquele período. Mas se não faz isso, não é por falta de conhecimento ou incompetência – afinal, Munique é um elaborado retrato de personagens cheios de méritos e falhas de caráter, personagens humanos. Se Tony Kushner opta por uma abordagem superficial, é por puro medo. Medo de ser mal interpretado, de dar a entender algo errado num tema tão crucial e polêmico na história dos EUA.

Medo que é compartilhado por um dos maiores corações moles que a indústria recente já viu que se trata do novo Spielberg.  O medo que Spielberg nutre é o de ousar e sujar sua imagem como bom moço, mas principalmente de sujar a imagem de um dos ícones mais importantes da América do Norte – Abraham Lincoln.  Desse medo, surge um respeito demasiado, que interfere desde o modo como o personagem é retratado e culmina até mesmo na direção de Spielberg. A originalidade passa batida, e o diretor escolhe usar a fórmula básica da biografia: mitifique seu biografado e deixe o resto falar pro si mesmo. E o mito de Lincoln parece furado, afinal o tomamos como algo a ser adorado, mas tampouco sabemos o porquê Lincoln mereceria ser reverenciado. Isto porque seus realizadores não se atrevem a explorar sua persona a fundo, e se contentam com a sempre segura superficialidade.  Assim sendo, Spielberg toma o projeto para si mais como um desarme de bomba do que um longa-metragem. Qualquer passo fora da fórmula pode causar uma explosão de danos incalculáveis.

O que salva o exercício formuláico de Spielberg do total fracasso é a humanidade trazida por seu talentoso elenco. Daniel Day-Lewis consegue encarnar Lincoln com estofo emocional interessante, dedicando sua atuação – baseada no método – a incorporar cada detalhe dos hábitos do ex-presidente: Sua postura elegante, mas um tanto cabisbaixa; seu semblante calmo, mas claramente perturbado por toda a sorte de eventos que precisa lidar. É uma pena que o trabalho esmerado de composição de personagem realizado por Day-Lewis não encontre eco em Kushner ou Spielberg.  Entretanto, o desempenho do ator inglês é acompanhado de perto pela interpretação de Tommy Lee Jones, que vive um abolicionista radical que é também uma das lideranças do Congresso. Seu personagem admirável só não merecia sua cena final, que revela um motivo tão óbvio e parco para seu ativismo. Outro problema de responsabilidade do roteiro.


Lincoln é um filme padronizado no esquema recente de produções de Spielberg. Quanto mais simplória, superficial e melodramática for uma trama, melhor. Aliás, o melodrama exagerado e forçado de Spielberg chega a doer quando entoado nas trilhas genéricas e megalomaníacas de John Williams. Infelizmente, isto se repete em Lincoln, em mais de uma infeliz oportunidade. Spielberg encontra-se hoje em dia na sua fase “lugar seguro”, e tudo aquilo que for grandiloquente e formulaico já tem prioridade na sua filmografia. Talvez seja por isso que seus filmes aventurescos sejam aqueles que estejam se saindo melhor – como o Aventuras de Tintim.  De qualquer forma, não é o caso de Lincoln. Um longa que foi feito quase 150 anos depois que os fatos realmente ocorreram, com 150 minutos de duração, não deveria ser tão facilmente superado, tanto em estilo quanto em profundidade, por um poema de seis estrofes feito no calor recente dos acontecimentos. 



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