Lincoln
(Lincoln, 2012)
Drama - 150 min.
Direção: Steve Spielberg
Roteiro: Tony Kushner
com: Daniel Day-Lewis, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Sally Field, James Spader, Joseph Gordon-Levitt, Hal Hoolbrook
Lincoln tem cara
de vencedor de Oscar. É quadrado, careta, correto, patriótico e tem um elenco
em ótimo momento. Mas, é arrastado, sonolento, lentíssimo e a sensação de
acompanharmos um épico sobre a politicagem americana não é das melhores. Talvez
funcione - imagino pelos elogios vindos de fora - muito melhor para os
norte-americanos que conseguem se relacionar diretamente com aqueles
personagens e histórias. Para os cucarachas daqui, não passa de uma modorrenta
história sobre os bastidores da política, e convenhamos, as nossas histórias
são mais suculentas de serem vistas, cheias de comédia, traição, vergonha,
terror e ação.
O grande destaque
é para o supracitado Daniel Day-Lewis, certamente um dos maiores atores do
planeta. Seu Lincoln é um homem calmo e sereno, que em sua infinita cautela foi
capaz de manter um país unido mesmo diante de uma guerra civil. Sua interpretação
naturalista de um líder frente a um desafio é realmente especial, fazendo o
espectador gostar de Lincoln imediatamente. Compramos suas ideias, seus
discursos, suas muitas historias inseridas no filme, sua forma de ver a vida e
até mesmo conseguimos entender sua relação complicada com sua esposa. Tudo
graças a um momento (mais um, o que não é nenhuma novidade) desse excepcional
Daniel Day-Lewis. É incrível notar como Daniel trabalhou, por exemplo, o timbre
de voz do personagem, sempre baixo, quase que falando para dentro com uma
ligeira rouquidão, que mesmo quando exaltado permanece seguro de cada palavra
proferida. Lincoln de Spielberg recebe toda a carga messiânica que os
americanos colocam em cima de seu presidente mais famoso.
Como disse, os
atores se destacam em Lincoln e esse é o caso de Tommy Lee Jones, em desempenho
arrebatador, como Thaddeus Stevens, um congressista que defende a igualdade racial em um
período onde esse tipo de postura era visto como absurda. Seus discursos no
congresso americano são energéticos, cheios de gana, força, inteligência e
vida. Esse é um dos grandes desempenhos do ator em sua carreira. Completa o
"trio de ferro" Sally Field, vive a Sra. Lincoln como uma mulher
amargurada e eternamente em estado de depressão pela morte de seu filho. Sally
fez o contraponto pessoal em meio a uma produção excessivamente engessada por
sua ideia de passar uma mensagem.
Engessada por
culpa do excesso de reverencia histórica de Steven Spielberg para com seu tema.
Se em Lista de Schindler, Spielberg conseguiu misturar uma historia
grandiloquente com quilos de emoção, Lincoln é apenas historicamente
correto, um longa (mesmo) cheio de momentos edificantes, mas que não conseguem
fazer o espectador se emocionar com a história.
Lincoln, não é uma
biografia do presidente americano, mas a história da assinatura da libertação
dos escravos, com detalhes nefastos de conchavos políticos, e todo o trabalho
de bastidores para que a décima terceira emenda (que dava fim a escravidão)
fosse aprovada. O que Spielberg fez foi praticamente ignorar toda a história
até ali, e apresentar um momento histórico apenas. Isso, para quem não conhece
a história do presidente americano (sendo honesto, uns 98% da população
mundial) transforma o filme numa experiência incompleta. Como Lincoln chegou ao
poder? Como o filho de Lincoln morreu? Como a relação de Abraham e Mary Todd "azedou"? Como é possível demonstrar que o presidente era
carismático? Apenas essa última pergunta o filme tenta responder, encaixando
uma quantidade assombrosa de anedotas que Lincoln usa para ilustrar suas ideias
políticas, e que servem de veículo para Day-Lewis mostrar seu talento.
O presidente americano é quase um sábio mitológico, capaz de ter
sempre a resposta correta para todos os problemas apresentados. O que Spielberg faz, é transformar
seu líder em um messias, mesmo quando esse é "obrigado" a apelar para
a politicagem para conseguir seu intento, já que suas promessas para os
candidatos do partido rival para que esses endossem a lei, são sempre tratadas
com escárnio e bom humor, e dão a entender no decorrer da trama, que aqueles
homens foram convencidos "pelo ideal" e não pelos cargos que iriam
receber em troca do apoio.
Spielberg é um tremendo
diretor e disso todos sabem. Sua capacidade de construção de quadros é magnífica
e aqui isso se comprova, já que ele consegue nos ilustrar uma gigantesca obra
de bla bla politiqueiro. Uma façanha, mediante sua escolha para o filme. O
filme praticamente não conta com cenas de ação, sendo uma obra calcada quase
que exclusivamente em texto, o que - nas mãos de um sujeito menos competente -
poderia ser transformado em um teatro filmado. Spielberg acerta em suas
escolhas fotográficas, quando sempre coloca o presidente sob uma fotografia
contrastada para exacerbar suas rugas (um sinal de sabedoria e experiência), e
mesmo nas cenas diurnas Spielberg mantém a câmera próxima ao presidente,
apostando em poucos momentos de grandes planos abertos, salvo aqueles em que
existe uma real necessidade de dar um sentido de grandiosidade a obra. Já pensa
diferente no tocante as sequências no Congresso que parece uma panela de
pressão, acanhada, apertada, sufocante para aqueles que tentam debater. Isso, auxiliado
pelas trocas de ofensas de lado a lado, faz dessas sequências, as verdadeiras
"cenas de ação" do longa.
Contudo, por mais
que Spielberg seja competente, é o texto de Tony Kushner que é o grande trunfo da obra.
Recheado de grandes frases é uma base maravilhosa para que seus atores desfilem
as já citadas interpretações de qualidade. Mesmo aqueles com pouco tempo de
tela, casos de Joseph Gordon-Levitt e James Spader (ótimo) têm seu pequeno
"solo" linguístico.
Porém, essa
incapacidade crônica de emocionar o público é surpreendente em se tratando de
Spielberg, que sempre apelou para essas sensações em suas produções. Se em
filmes históricos mais fracos como Amistad (quem não se lembra de Djimon
Hounsou gritando liberdade em seu julgamento?) ou mesmo no soporífero Cavalo de
Guerra, o diretor encheu a tela de momentos "pra fazer o espectador
chorar", aqui eles nunca acontecem. E por mais absurdo que pareça, elas
fazem muita falta.
Mesmo John Williams, um mestre em criar sensações emocionais
por suas notas, aqui está surpreendentemente contido, sóbrio, com uma trilha
basicamente incidental, sem grande destaque (sua indicação ao Oscar, me parece
exagerada inclusive). Lincoln é um Spielberg sem as características que fizeram
do diretor o mais famoso do mundo. Na ânsia de criar um retrato histórico
correto, seguro, "sério" de um momento fabuloso de seu país, esqueceu
de transformá-lo em uma experiência cinematográfica rica, ou com alguma alma.
Claro que existem
momentos de bravata e de exacerbação, mas muito poucos, como a sequência em que Mary e Lincoln
discutem veementemente por causa de seu filho mais velho, ou quando Lincoln
impõe sua vontade perante o seu gabinete, mas quem precisa segurar esse
elemento é Tommy Lee Jones, que é o responsável por tentar emocionar po público. O filme inclusive
poderia ser encerrado com a revelação sobre um segredo do personagem que
ganharia pontos no fator emocional, mas não, Spielberg prefere esticar a
narrativa e tratar a morte de seu protagonista (por favor, não me venham com
essa de spoiler aqui) de forma banal, sem ter a coragem de ter recriado o
momento de sua morte. A covardia de tentar "tocar no mito" parece tão
grande que nem mesmo mostrar sua morte parece ser uma coisa confortável para o
diretor, que prefere mostrar a passagem de Lincoln de forma abrupta e sem
cuidado algum, impedindo o público (de novo) de criar qualquer vínculo
emocional aos personagens, mesmo diante de uma tragédia.
Lincoln é uma
produção estéril. Fria, gélida, corretíssima, tecnicamente muito bem
construída, com um Daniel Day-Lewis perfeito e um Tommy Lee Jones exuberante,
mas que não guarda características daquele que um dia foi o sujeito que mais
sabia emocionar uma platéia de cinema. Lincoln não tem alma alguma, e parece
apenas um vulto histórico apagado pelo tempo em uma folha amarelada na
história. Nada digno para um homem tão importante para seu país.
Em 1865, logo após o fim da Guerra Civil norte-americana, o
poeta Walt Whitman escreveu o poema “O Captain! My Captain!”, uma grande
metáfora sobre toda a jornada de unificação do país sob os novos conceitos
abolicionistas adotados e defendidos pelo presidente Abraham Lincoln. Os
marcantes versos de Whitman foram escritos após a fatídica morte do presidente,
e toma este como o capitão de uma embarcação que, logo após concluir sua
“viagem aterradora” com sucesso, morre no convés e deixa toda sua tripulação em
estado de agonia e frustração.
Lamentavelmente, o único sentimento que o filme de Steven
Spielberg compartilha com o brilhante texto de Whitman é o de frustração. Uma
frustração decorrente de uma obra falha, superficial e descartável, que procura
recontar os fatos, mas não investiga-los.
Entretanto, Spielberg já foi capaz de gerar os sentimentos despertados
pelo poeta do século XIX. Já o fez incontáveis vezes, e a última foi no
espetacular Munique, um longa maduro e intrigante que retratava a relação
conturbada entre a família e a violência de maneira espetacular.
Ironicamente, um dos co-escritores responsáveis pelo belo
script de Munique foi Tony Kushner, o roteirista de Lincoln. Adaptado do livro Team of Rivals: The Political Genius of
Abraham Lincoln de Doris Kearns, o roteiro de Lincoln toma por princípio os
meses que antecedem a votação da 13ª Emenda no Congresso, o documento que,
entre outras coisas, traria a escravidão nos EUA ao fim. Desse modo, somos
introduzidos ao dilema do presidente (vivido por Daniel Day-Lewis): tentar
selar o acordo de paz com os Estados Confederados – e assim colocar em risco a
aprovação da Emenda – ou buscar o apoio necessário para a maioria na Casa dos
Representantes, assinarem a abolição e assistir, nesse meio tempo, ao banho de
sangue que o país enfrenta.
O texto de Kushner aborda o tema da abolição – que é a
discussão ideológica central no filme – com certo idealismo reforçado, que não
só era incompatível com o espírito da época, mas também seria difícil de
engolir até nos dias atuais. Há em Lincoln muito maniqueísmo de fácil
deglutição, e pouca dissecação de assuntos.
É muito mais fácil de fazer, mas também de se absorver, uma narrativa
que desenhe uma situação de forma bidimensional. Kushner não se atreve a ousar,
a investigar mais de perto os contornos turbulentos daquele período. Mas se não
faz isso, não é por falta de conhecimento ou incompetência – afinal, Munique é
um elaborado retrato de personagens cheios de méritos e falhas de caráter,
personagens humanos. Se Tony Kushner opta por uma abordagem superficial, é por
puro medo. Medo de ser mal
interpretado, de dar a entender algo errado num tema tão crucial e polêmico na
história dos EUA.
Medo que é compartilhado por um dos maiores corações moles
que a indústria recente já viu que se trata do novo Spielberg. O medo que Spielberg nutre é o de ousar e
sujar sua imagem como bom moço, mas principalmente de sujar a imagem de um dos
ícones mais importantes da América do Norte – Abraham Lincoln. Desse medo, surge um respeito demasiado, que
interfere desde o modo como o personagem é retratado e culmina até mesmo na
direção de Spielberg. A originalidade passa batida, e o diretor escolhe usar a
fórmula básica da biografia: mitifique seu biografado e deixe o resto falar pro
si mesmo. E o mito de Lincoln parece furado, afinal o tomamos como algo a ser
adorado, mas tampouco sabemos o porquê
Lincoln mereceria ser reverenciado. Isto porque seus realizadores não se atrevem
a explorar sua persona a fundo, e se contentam com a sempre segura
superficialidade. Assim sendo, Spielberg
toma o projeto para si mais como um desarme de bomba do que um longa-metragem.
Qualquer passo fora da fórmula pode causar uma explosão de danos incalculáveis.
O que salva o exercício formuláico de Spielberg do total
fracasso é a humanidade trazida por seu talentoso elenco. Daniel Day-Lewis
consegue encarnar Lincoln com estofo emocional interessante, dedicando sua
atuação – baseada no método – a incorporar cada detalhe dos hábitos do
ex-presidente: Sua postura elegante, mas um tanto cabisbaixa; seu semblante
calmo, mas claramente perturbado por toda a sorte de eventos que precisa lidar.
É uma pena que o trabalho esmerado de composição de personagem realizado por
Day-Lewis não encontre eco em Kushner ou Spielberg. Entretanto, o desempenho do ator inglês é acompanhado
de perto pela interpretação de Tommy Lee Jones, que vive um abolicionista
radical que é também uma das lideranças do Congresso. Seu personagem admirável
só não merecia sua cena final, que revela um motivo tão óbvio e parco para seu
ativismo. Outro problema de responsabilidade do roteiro.
Lincoln é um filme padronizado no esquema recente de
produções de Spielberg. Quanto mais simplória, superficial e melodramática for
uma trama, melhor. Aliás, o melodrama exagerado e forçado de Spielberg chega a
doer quando entoado nas trilhas genéricas e megalomaníacas de John Williams.
Infelizmente, isto se repete em Lincoln, em mais de uma infeliz oportunidade.
Spielberg encontra-se hoje em dia na sua fase “lugar seguro”, e tudo aquilo que
for grandiloquente e formulaico já tem prioridade na sua filmografia. Talvez
seja por isso que seus filmes aventurescos sejam aqueles que estejam se saindo
melhor – como o Aventuras de Tintim. De
qualquer forma, não é o caso de Lincoln. Um longa que foi feito quase 150 anos
depois que os fatos realmente ocorreram, com 150 minutos de duração, não
deveria ser tão facilmente superado, tanto em estilo quanto em profundidade,
por um poema de seis estrofes feito no calor recente dos acontecimentos.
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