Django Livre
(Django Unchained, 2012)
Western - 165 min.
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
com: Jamie Foxx, Leonardo DiCaprio, Christoph Waltz, Samuel L. Jackson, Kerry Washington
Reclamar de
"tarantinisses" em um filme do próprio é bobagem. Por isso, aviso que
não entrarei no coro dos que não veem "realismo histórico",
"veracidade nos fatos", "desvirtuamento de valores" e tudo
mais que foi dito há quatro anos atrás quando o diretor brincou de guerra em seu Bastardos Inglórios.
Prefiro me ater ao fato de que é inacreditável perceber que mesmo criando as
obras mais cheias de referências que um cineasta pode produzir, e, portanto,
deixando "de lado" a originalidade, Quentin Tarantino assina a ferro
e fogo cada uma de suas obras com uma contundência impar. Bastam muito poucos
frames de exibição para notarmos que estamos no "mundo mágico" de
Tarantino, onde referências e misturas exóticas permeiam o caminho.
Django Livre não é
exceção, de fato, acho que nem mesmo em Kill Bill as transgressões cinematográficas foram
tão agudas quanto aqui. Se no filme da Noiva, ele usou dos filmes de kung fu B
para tratar de vingança, aqui ele é ainda mais ousado, usando um spaghetti
western para transformar um escravo negro em "herói" e maior
assassino do Oeste.
Nos Estados Unidos
o filme foi acusado de racista pelo uso da apalavra nigger (que a gente pode
traduzir livremente como "crioulo"), que é verborragicamente dita
durante boa parte do filme. Aqui faço uma defesa de Quentin. Acho, ou melhor,
tenho quase a certeza de que aqueles que acusam o filme de ser racista não o
assistiram, pois se assistissem somente aos primeiros dez minutos notariam
exatamente o oposto disso. Explico: ao som do tema de Django (o mesmo composto
na década de sessenta para o filme original italiano), vemos uma fila de
escravos caminhando seminus pelas "estradas" de pedra e terra embaixo
de sol, chuva e frio, sendo escoltados por seus donos. A noite cai, e vemos uma
carroça com um ridículo dente preso ao seu teto parar e após apresentações,
conhecemos o Dr. King Schultz (Christoph Waltz) que está à procura de escravos
que moraram em uma determinada fazenda. Após uma ligeira conversa, Schultz
revela ser muito mais do que um sujeito empolado de fala mansa e
"dentista" como acusava sua carroça, é também um matador que leva um
dos escravos (o nosso herói Django) que havia dito que conhecerá a fazenda e
seus moradores. Pois bem, e ai a coisa fica perigosa para os amantes da
história "esse filme é racista". Waltz dá duas opções aos escravos
ali presos. Levar um dos homens atingidos pela fúria de Schultz (como eu disse
ele é um matador) até um médico e voltar ao cabresto ou... acho que entenderam.
Liberando a fúria homicida de anos de abusos e flagelos, o que fazem os
escravos? Acho que vocês podem imaginar.
Talvez, no
contexto histórico e social americano, o uso excessivo da palavra realmente
funcione como gatilho racista, mas, por favor, vamos entender a historia
envolvida. Todos aqueles que usam a palavra nigger são mostrados como salafrários,
bandidos, canalhas, estúpidos e que não merecem viver. Tarantino não glorifica
a palavra, apenas mostra que por meio dela podemos exemplificar a ignorância de
que a profere com tanta virulência.
Django Livre
acompanha a dupla mais insólita de caçadores de recompensa (a
"profissão" adotada pelo imigrante alemão vivido por Christoph Waltz)
que se afeiçoa ao parceiro Django e decide ajudá-lo em seu plano de vingança, o
que leva o filme muito próximo das suas origens italianas. Longe de ser um
western sobre redenção humana, ou com comentários sociais (apesar da sacada de
fazer do herói um escravo é ótima), Django é um romance, por mais torto que pareça. Django quer encontrar
Brunhilda (Kerry Washington) sua esposa, que foi separada dele e hoje permanece
perdida. Brunhilda, a valquíria de ébano que fala alemão fluente e que tem a
personalidade forte como a de uma besta nórdica.
E é nesse clima
irônico e violento que Django segue, com suas escravas que falam alemão, fazendeiros
brancos que discutem pela dificuldade de enxergarem com sacos de pano mal
costurados sobre os rostos (na cena mais engraçada do filme, e das mais
engraçadas da carreira de Tarantino), um herói vestido de valete renascentista
andando a cavalo, uma luta entre escravos sobre o chão de madeira, um ataque de
cachorros a um pobre coitado que tentou fugir de sua condição e é claro,
tiroteios, explosões e tudo mais.
Django tem
problemas, no entanto, especialmente em seu segundo ato quando parece que
Tarantino quis esticar ao máximo a sensação de suspense (que não é eficiente),
tornando muito longos certos diálogos, embora elas sejam estilisticamente
muito bem realizadas. É o caso da citada cena dos capuzes, que é longa demais,
embora muito boa.
Jamie Foxx é um
Django digno. Um homem que aprende um ofício e se transforma em um verdadeiro
azougue no que se propõe a fazer. Foxx está intenso, fisicamente impecável e
acertando até em detalhes de composição muito sutis como sua constante sensação
de tensão, que só é deixada de lado no glorioso ato final. Já Christoph Waltz,
embora seja impossível negar seus acertos como o calhorda polido e talentoso,
parece demais uma versão mais velha (dado o momento histórico em que o filme se
passa) de seu coronel Landa de Bastardos Inglórios. Certas sutilezas de
interpretação, a constante polidez de suas palavras, a sua educação
cirurgicamente pensada e sua frieza em executar seus inimigos são a mesma do
brilhante vilão do filme de 2009.
Quem rouba a cena
é a dupla Samuel L. Jackson e Leonardo DiCaprio, como um - aparentemente -
velho escravo bajulador e um fazendeiro sádico, respectivamente. Jackson,
brilhantemente caracterizado é impagável como o cruel e hilário senhor
sem papas na língua, chocado por ver um negro em posição diferente do que a de
escravo, mas que durante a produção vai se revelando um líder,
amargo e violento. E DiCaprio, segue a linha de Waltz, só que sem a aura de
"nobreza" que o Dr. Schultz transparece. Sua personagem é sedutora,
aparentemente gentil, mas raivosa em sua essência e isso fica muito claro
quando sua paciência se encerra.
Django é uma aula
de estilo, embora ele não tente emocionar o público, mas sim entretê-lo, diverti-lo
com seus excessos e mesmo com seus erros. Tarantino é uma auto-referência
humana, um sujeito verborrágico que fez de seu cinema seu agradecimento àqueles
que o inspiraram, tornando difícil imaginar um filme tarantinesco em que nos
sintamos tocados emocionalmente por uma história (embora isso acabe acontecendo
em Bastardos
Inglórios e em
Kill Bill ).
Isso não impede de
que uma produção do diretor seja uma experiência cinematográfica satisfatória.
Se ele não atinge o público pela emoção, o faz pelo humor, já que é impossível
não se divertir em
Django Livre. Além das atuações que estão perfeitas para o
clima do filme, ele ainda é inteligente em suas homenagens (Franco Nero, o
Django original faz uma ponta) e no uso sempre certeiro da trilha sonora.
Afinal, só em um western de Tarantino veríamos soul music e hip hop quando uma
procissão cavalga pelas estradas do sul dos Estados Unidos.
Django Livre não é
um remake de Django, nem um faroeste histórico ou uma denúncia social contra o
racismo, mas outra brincadeira de Tarantino com sua enorme biblioteca de
referências. Um pouquinho arrastado demais, com um roteiro que estica demais
certos momentos, mas uma aula de estilo e de criatividade visual. Que venha seu
filme sobre alienígenas, fantasmas ou qualquer coisa do gênero.
O maior fã de Cinema presente em Hollywood, Quentin
Tarantino se afastou dos policiais do início de carreira para homenagear os
grandes filmes da indústria. Se sua celebração ocorrera pelos clássicos Cães de
Aluguel e Pulp Fiction, o primeiro risco veio em Jackie Brown , que ao
adaptar Elmore Leonard, fugiu um pouco do terreno comum do diretor. Porém, foi em Kill Bill que o
ex-gerente de locadora começou a visitar diferentes gêneros: da ação japonesa e
duelo espadachim dos dois filmes sobre a Noiva até a guerra mundial de
Bastardos Inglórios, passando pelo manifesto grindhouse À Prova de Morte. Até
que Tarantino, fã incondicional de Sergio Leone resolve se aventurar com seu
primeiro Western. E em
Django Livre , o diretor volta ao passado do spaghetti western
para contar uma fábula distorcida.
(Kill Bill vol. 2 é, em essência, um faroeste [e dos bons],
mas é aqui que o americano faz um western no sentido literal).
Como fez com a Universal em Bastardos, Tarantino já inicia
seu filme com reverência, ao projetar o logo antigo da Columbia Pictures. As
paisagens áridas dignas dos clássicos do gênero preenchem a tela logo no
primeiro take, sempre ressaltadas pela fotografia. Entretanto, como um elemento
intruso, um grupo de escravos anda por ali. O western sempre situou suas tramas
longe do Sul norte-americano a fim de evitar temas polêmicos como a escravidão,
o que causa a subversão da imagem bem interessante no contexto. E se isso traz
uma questão tipicamente “tarantinesca” (um conceito estabelecido, mas
modificado à sua maneira) de uma maneira mais séria, é logo após, na cena de
introdução de King Schultz, que o conhecido despojo do diretor se nota. Muitos
diálogos divertidos e uma explosão de violência depois, o Django alforriado do
título e o ex-dentista já se fazem presentes de forma grandiosa na tela.
Tarantino se reafirma como um marcante criador de mundos/personagens, mas são
em outros quesitos que o filme surpreende, seja de maneira positiva ou
negativa.
O roteiro, novamente escrito pelo diretor, salta de uma
referência a outro para contar uma envolvente história de formação de mito,
maior até que a formação de herói, uma (re)criação de gênero. Se o exemplo mais
fácil se dá pelo escravo cowboy, o diretor vai além ao criar o Dr. Schultz como
um legítimo lorde inglês. Desde seus trejeitos, sua cadenciada retórica e seu
cavalheirismo até a disciplina diante de um alvo, o caçador de recompensas
alemão é encaixado na trama como um digno esgrimista dos livros clássicos da
literatura. Até mesmo seu cavalo, Fritz, é educado a ponto de responder ao ser
chamado (!).
Logo, o revisionismo de Django Livre é um pouco mais
complexo do que o de westerns mais recentes, como Os Imperdoáveis. É um filme
que revisita não apenas os faroestes, mas todos os gêneros, para reuni-los.
Utiliza um alemão e um afro-americano para contar sobre a formação da cultura
negra, dentro de uma trama fabulesca do folclore europeu em forma de faroeste.
É a mesma exploração cinéfila presente em Kill Bill e À Prova de Morte, mas com muito mais
maturidade e ambição.
Mesmo na estética, as variações se refletem. Os planos de
contemplação absoluta do deserto se juntam aos exagerados zooms rápidos do
gênero. Nas cenas da tortura de Django e sua esposa, Tarantino usa de uma
fotografia grindhouse para registrar Bruce Dern; nas cenas de travessia (não
são poucas, mais a frente), a câmera registra o brilhante pôr-do-sol; nas cenas
de diálogo no deserto noturno, a granulação fica visível no bonito ambiente
azulado. O arrojo de Tarantino aparece em belas cenas: os ângulos que o diretor
concebe são muito bonitos, a tensão criada para um duelo é precisa, e o domínio
de close que demonstra aqui é coisa de mestre (repare o imponente close em Leonardo DiCaprio
quando o mesmo acende seu cigarro), mas é notável que essa separação torne o
filme mais volátil. É o mais solene dos trabalhos do diretor em temática e
técnica (toca Dies Irae, de Verdi) – mas também o mais blaxpoitation de todos.
Um reflexo dessa dualidade ocorre no entendimento do diretor
do serviço que em uma cena pode prestar à narrativa e ao subtexto. Passagens
essencialmente narrativas chegam desnecessárias (como o encontro com um
caçador, que oferece abrigo para a dupla) ou meramente convencionais (a
montagem de Django aprendendo a ser caçador). Já a cena do Ku Kux Klan
debochando de suas máscaras surge exclusivamente para tirar um sarro com a
temática séria, sem função alguma para a história (por mais que, isolada, a cena
seja ótima).
Nisso, o roteiro se mostra impreciso. Django é um filme
ambicioso em temática e procura reunir muita informação em seus 165 minutos.
Com os já citados contrastes, o filme se revela oscilante. Ora brilhante (o
estupendo clímax), ora corriqueiro (desentendimento dramático consagrado entre
os protagonistas é algo novo na obra do diretor). O montador Fred Raskin, antes
assistente da falecida Sally Menke (colaboradora de Tarantino em todos os
projetos), faz um trabalho digno da sua antiga companheira, ao dosar bem o
ritmo do filme e tentar organizar a empreitada temática proporcionada por
Quentin, mantendo a energia da obra.
Diferente do calibrado roteiro de Bastardos Inglórios (onde
todas as cenas estavam no lugar certo), a narrativa de Django segue muito menos
uma estrutura coesa. A reunião do tributo ao western acaba tresloucada,
justamente por trabalhar com uma abrangente escala de referências. Se em
Bastardos tínhamos uma narrativa que incluía passagens sobre os temas que o
diretor admira, em Django temos diversas passagens sobre os temas que o diretor
admira que incluem uma narrativa. Tudo o que era calculado em Bastardos, tende
ao caótico em alguns momentos de Django – e isso não é um demérito dado à
qualidade da temática que o diretor impõe a seu script.
Há excessivas travessias no filme, o ritmo até a chegada a
Candyland não é tão consistente quanto o irretocável primeiro ato, a salada de
culturas talvez não agrade a todos. Mas a quem reconhece ambiciosas incursões
estilísticas em territórios desconhecidos, Django Livre será um longa marcante
dentro da própria carreira do diretor, que já inclui diversas obras ímpares. Se
aqui se fazem presentes as primeiras evidentes falhas em uma estrutura de
Tarantino, não é por um motivo banal.
E mesmo com isso, a qualidade do diretor como narrador
aparece em boa parte da película, criando uma coleção de cenas que já nascem
expressivas, com um elenco à vontade e uma fotografia deslumbrante de Robert
Richardson. Toda a excelente passagem do jantar em Candyland remete à cena da
taverna em
Bastardos Inglórios ; a violência brutal da luta de escravos é
chocante; a cena do escravo D’Artagnan é precisa ao caracterizar tanto tema
quanto personagens; o último ato remete a um faroeste de raiz (sombras, beijo
no contraluz, cowboy correndo com o rifle pra cima), ainda que com o upgrade de
Tarantino; todas as frases de efeito de Foxx; o monólogo arrepiante de Calvin
sobre um crânio. E, claro, a epítome da revisão: o clímax surtado e
sensacional, que mistura clássico e novo, catarse com estilo, câmera lenta com
faroeste, hip-hop com soul, Ennio Morricone com Jamie Foxx. Se não ressaltei
com todas as letras o clímax, vale lembrar: é um banho de sangue estilosíssimo
de Tarantino, que deixa até o de Kill Bill levemente pálido.
E com surpresas, surpreendentes ou frustrantes, a narrativa
do afiado roteiro vai se consolidando. Se não se pode esperar solidez na
narrativa, ao menos Django vale cada futura visita para simplesmente observar o
talento de Tarantino em transitar entre gêneros, homenagens revisionistas e
obsessões de uma maneira explosiva, afirmativa, talentosa. Pontualmente
perfeito, o longa ganha bastante por sua maneira de estudar as culturas que
está lidando. Se termina imperfeito, se recupera em outros aspectos. Não é um passo adiante na carreira do diretor como foi
Bastardos, mas sem dúvida um exercício empolgante.
Muita vontade ver esse filme!
ResponderExcluirCurti muito a sua critica!