sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O Mestre


O Mestre
(The Master, 2012)
Drama - 144 min.

Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson

com: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams

Começo essa análise com uma confissão: precisei assistir duas vezes a O Mestre para poder escrever sobre o filme. Não que a trama seja complexa, daquelas que é preciso rever para entendê-la, mas porque ao final da primeira exibição sai completamente dividido sobre o que tinha visto. De certeza, apenas a de que acabara de ver um conjunto de atores em momentos muito especiais. Joaquin Phoenix neurótico e furioso, Seymour Hoffman sedutor e inteligente em sua racionalidade de mentira e Amy Adams mantendo-se como uma fortaleza de mistérios.

Não sabia, no entanto, se tudo aquilo mostrado por Paul Thomas Anderson era de fato uma épica historia sobre dois homens torpes que se encontram ou se não passava de uma enrolação crônica, cheia de momentos que beiram o pedantismo.

Pois bem, na segunda visita ao mundo de O Mestre, o filme me pareceu claro (finalmente). Paul Thomas Anderson construiu uma verdadeira epopéia sobre um homem destruído e suas muitas tentativas para encontrar-se, para viver sem rédeas controlando seu destino, sua fúria pela vida, sua vontade de agarrar com ferocidade tudo a sua volta. Quando O Mestre nos foi vendido, tudo indicava que veríamos a história da formação de um culto (no caso a Cientologia, famosa por ter entre seus devotos, Tom Cruise, John Travolta entre outros), e embora O Mestre aborde essa situação (disfarçada como O Culto), não é sobre isso exatamente que o filme de Paul Thomas Anderson quer falar. Seu foco é na relação conturbada entre um aprendiz e um mestre, um sujeito irascível e doentio, sedento por sexo e criador de uma bebida tão forte que pode ser tratada como veneno e outro que se apresenta de forma messiânica, condutor de verdades sobre o sentido da vida, mas na verdade não passa de um homem igualmente perturbado e que inventa verdades para manter sua aura de sábio. Trocando em miúdos: não quer perder seu domínio e sua posição de autoridade sobre seu rebanho.


Assim como em Sangue Negro, Anderson nos apresenta uma história sórdida sem heróis, onde cada homem (e mulher) tem sua quantidade de pecados atados ao corpo. Freddie Quell (Phoenix) é a fúria que ao se envolver com Lancaster Dodd (Hoffman), vê em sua figura (exemplarmente ilustrado na sequência em que o marinheiro de Phoenix é entrevistado de forma brilhante pelo personagem de Hoffman) um pai que não teve, uma figura a que poderia prestar alguma espécie de respeito e que talvez o ajude a encontrar forças para descobrir quem ele é, a busca fundamental do filme. Em uma jornada de descoberta, espera-se (e é até comum notar) um ar de certo moralismo, com virtudes pipocando pela tela. Não é bem esse o caso de O Mestre, onde a jornada de descobrimento acontece, mas os resultados não são aqueles que o espectador talvez espere.

Ancorado em dois homens moralmente bastante condenáveis, Anderson não espera que o espectador se identifique ou torça por um dos personagens, mas que acompanhe suas jornadas. Um para se encontrar e outro para encontrar fregueses para sua fórmula mágica de sucesso e iluminação.

O Mestre é um filme incomodo, pois parece por muitos momentos não saber exatamente o que quer contar, embora isso seja proposital. Explico: em uma trama que oferece ao público a oportunidade de acompanhar um homem completamente perdido, me parece natural que em alguns momentos, o real e o imaginário, a confusão e a insanidade (é o que me parece à cena em que vemos um grupo de mulheres completamente nuas em meio a uma festa) deixem a narrativa um tanto difícil de ser "curtida" (usando uma palavra da moda). Mas Anderson, não parece querer que o espectador de ajeite na cadeira, mas sim realmente incomodar o espectador, sem fazer concessões a pré-conceitos ou ideias prontas.


Não existe caminho fácil, nem solução milagrosa por aqui. Quell é um bruto de postura arcada, com dicção anasalada e Dodd um mentiroso contumaz, cheio de sí, e Paul Thomas Anderson é humilde ao ponto de não entender que poderia mudar dois homens tão certos em suas convicções sobre o que são em duas horas e pouco de filme. Ele apresenta sua historia de redenção torta, de um homem em busca de liberdade completa, de conseguir encontrar seu lugar no mundo (mesmo que este pareça ser apenas um descanso trôpego em uma praia desconhecida ao lado de uma mulher de areia). O sucesso de O Mestre se deve a essa capacidade de não optar pelo caminho fácil e de analisar os motivos que fazem um charlatão sedutor e um homem de neandertal manterem uma amizade doentia. Por que afinal o discípulo segue o Mestre? Essa é a pergunta que Anderson faz.

Mesmo discursando contra a dependência de um bastião moral, Quell precisa de um guia e Dodd tem nele seu maior seguidor, um que verdadeiramente usa dos punhos para defender "a causa", o sonho de qualquer líder de culto. E nessa história de homens perdidos tentando encontrar seu lugar no mundo é que temos a chance de experimentar as mesmas sensações temáticas vistas em Sangue Negro. Soma-se a isso, a verborragia em que os dois amigos disputam o controle sobre todas as discussões, um procurando manter-se fiel a noção de liberdade e o outro implorando por ser amado com um legítimo líder.

Paul Thomas Anderson é ousado, constrói suas narrativas as desconstruindo (por mais absurdo que isso possa parecer), apresentando problemas e não os solucionando de forma óbvia. Talvez não seja tão intenso quanto Sangue Negro, mas é visualmente impecável (a fotografia de Mihai Malamaire Jr. é ensolarada e deslumbrante) e conta com uma dupla de atores especiais.



Há quase seis anos atrás, o cineasta Paul Thomas Anderson realizava Sangue Negro. Adotando sua técnica apurada a uma trama que abandonava a estrutura panorâmica de seus longas anteriores (em Magnólia e Boogie Nights), o diretor criou uma jornada emblemática, um longa que remetia aos grandes clássicos hollywoodianos ao contar a historia do marcante Daniel Plainview, seu anti-herói capitalista exacerbado. Nessa primeira incursão em grandes temas a serviço de uma narrativa focada, PTA concebeu um dos melhores filmes do século XXI. Era com grande espera, portando, que seu novo filme, O Mestre, fora aguardado. E realizar um projeto após uma consagração, porém, é um tópico complicado. Escapar da armadilha do terreno seguro é para poucos.

Com seu novo filme, o diretor sai de sua zona de conforto e se aventura por uma narrativa experimental. Complexo, arrojado e muito mais arriscado que o normal, O Mestre conta a densa historia das origens de um culto aos olhos do fiel, de uma forma que se recusa a facilitar as conclusões.

Para estabelecer o estado desconfortável que irá se fazer presente por toda a projeção, PTA procura pequenas situações triviais para logo distorce-las. Logo, o comportamento do protagonista Freddie Quell é problemático por não se enquadrar nessas trivialidades. Ao achar uma comunidade asiática, Freddie demonstra sua instabilidade ao apresentar um caráter destrutivo; quando sai com uma mulher, dorme no encontro; em um serviço como fotógrafo, não tarda para o homem arrumar uma confusão por motivo algum. É claramente um sujeito perturbado mentalmente - e a postura de Joaquin Phoenix no papel é curvada, pesada, como se o desconforto se estendesse para o corpo. É uma discussão à Cronenberg, onde a mente doente encontra um paralelo com um corpo em transformação, mas não se aborda além da sutileza da composição do ator - o que abre o roteiro a investigar a alienação de uma maneira mais retórica. 


Retórica essa, aliás, que remete novamente a Sangue Negro. Anderson desenvolveu uma visível predileção por duelos verbais. E se no seu filme anterior o duelo era pontual e catártico, aqui se faz mais presente. As discussões ideológicas, ora como formação de pensamento, ora como debate intelectual, rendem pelo menos três cenas memoráveis. O tema religioso ganha proporções maiores ao longo da projeção, com o desenvolvimento d'A Causa, mas é através dessas discussões que a narrativa parece caminhar. É uma estrutura visivelmente diferenciada, que foge da precisão obsessiva dos atos definidos de Sangue Negro, e investe em uma arriscada desorganização com o intuito de discorrer melhor sobre o tema.

Após o início, onde a perversão sexual de Freddie é estabelecida em conjunto com sua instabilidade comportamental, o roteiro de Anderson abandona a pretensão de criar atos definidos e se concentra na entrada e desenvolvimento do protagonista na religião. Como um sujeito problemático, que tem um vício em bebida e parece se portar como um adolescente (a imaturidade de Freddie é composta de maneira sutil, como em seus sorrisos tolos), o homem é perfeito para ser "salvo" por alguma entidade superior. É quando surge A Causa e Lancaster Dodd. Sua pregação desafia qualquer convenção científica e se coloca em uma posição superior irredutível (note como Dodd chama Freddie de animal como se fosse seu dono). E ao ser confrontado, sua fúria é explosiva, captada com precisão pela transformada performance de Phillip Seymour Hoffman, o que geralmente indica a falta de segurança nos argumentos do homem. Em certa passagem, Dodd discute com um homem que o questiona. Enquanto o homem fala com segurança e se cala, Dodd grita, xinga, se mostra hostil. Isso se repete ao menos duas vezes, o que denuncia uma fratura em uma persona que parecia indubitavelmente confiável em seus devaneios. Seus monólogos, como o do dragão obediente, parecem sempre dizer algo a mais sobre a natureza da religião.

Ao desenvolver Dodd, Anderson constrói sua temática além da esfera da Cientologia. Por mais que tenha suas discussões sobre vidas passadas e galáxias distantes, o Mestre não é muito diferente de um pastor ou um padre. 




Freddie, porém, é errante, e questiona sua devoção sem ter argumentos formados sobre. É um homem de instinto, de raiva, imaturo e perturbado, perfeito contraponto para Dodd e sua empreitada. Na cena da prisão, PTA é perfeito ao compor o quadro com Freddie em estado de fúria, e Dodd equilibrado. Ao querer ser salvo, o protagonista investe na Causa quase inconsciente. Através dos métodos da religião, como no exercício de confronto verbal e no de porta e janela, Freddie tenta encontrar uma unidade para sua vida, mas acaba constantemente alienado. A impressionante trilha de Jonny Greenwood auxilia, movendo as ações como um fluxo de consciência, dissonante e caótica, elevando a jornada de Freddie a uma condição entre o desconforto e o puro terror (os agressivos violinos do início se fundem a calma imagem do mar). 

A visão de Dodd, e surpreendentemente de sua opressiva esposa, encara as emoções como um recurso ruim do ser humano. A racionalidade excessiva da família Dodd é manifestada no filho mais velho, que denuncia sua falta de crença no pai e é oprimido em toda a projeção. Até mesmo o marido da filha d'O Mestre é levado a o chamar de "pai", o que só reforça essa figura patriarcal inabalável e insubstituível que Dodd representa. O prazer sexual, inclusive, serve como termômetro: enquanto o viciado Freddie sacia suas vontades com diversas mulheres, Dodd tem um contato sexual extremamente reprimido com sua esposa (que encara o orgasmo de maneira assustadoramente fria).

O complexo de deus de Dodd, representante da moral e da ordem que exige vassalos, toma grandes proporções e é visto com olhos confusos por Freddie. A confusão mental do protagonista, o narrador, acaba criando momentos sublimes de puro domínio de linguagem cinematográfica. Quando Freddie acredita nas ideias de Dodd, a música e os enquadramentos são edificantes (como no lançamento do Livro dois). Já quando a lógica do Mestre apresenta falhas, ao deixar explícito que ele "imagina" e não "relembra" suas vidas passadas, a câmera é dura, dissonante como à trilha. Nisso, o protagonista termina com uma escolha que só dá mais tridimensionalidade para o mesmo. 


Impecável em seu olho para detalhes (como o uso de headfones na pregação no navio), Anderson utiliza de sua apurada direção em Sangue Negro e vai além, ao sair do realismo clássico e filmar uma iniciativa mais onírica, desconcertante visualmente. Diferente da sobriedade da fotografia de Robert Elswit no filme de 2007, PTA se alia ao fotógrafo Milai Milahmare Jr. para investir numa estética mais opressiva, com profundidade de campo bem reduzida e uma dissonante atmosfera solar. Como narrador Anderson vai além ao trabalhar uma historia que se preocupa em estabelecer tanto texto quanto subtexto: a conversa-duelo de Freddie com Dodd mostra tanto à tendência a submissão do primeiro quanto o seu passado amoroso.

"Você não quer ter um mestre? Será o primeiro do mundo a não ter um". No contexto, a frase funciona mais ainda. E em um duelo ideológico sobre a alienação, Freddie tem a difícil decisão de escolher entre a repressão coordenada ou a desordem completa, o caos incalculável de sua mente. A busca por liberdade (o mar aparece constantemente, o último ato ser apresentado por ele, à aparição da moto no deserto) é tema central - e os debates de Phoenix e Hoffman ganham uma urgência notável. O filme surpreende, portanto, por se mover através de suas discussões, e não através de atos. 

Rico em significados e poderoso nas questões que aborda, O Mestre é o mais expressivo dos filmes do diretor - e o mais arriscado. Um trabalho complexo, que investe na desordem e no onírico para contar uma difícil historia. Como qualquer filme do diretor, O Mestre impressiona pela identidade visual e pelo roteiro admirável. Mas é o que mais demonstra a capacidade que Paul Thomas Anderson tem de nos desafiar.


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