sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Intocáveis


Intocáveis
(Intouchables, 2011)
Drama/Comédia - 112 min.

Direção: Olivier Nakache e Eric Toledano
Roteiro: Olivier Nakache e Eric Toledano

Com: François Cluzet, Omar Sy

Como descrever Intocáveis? Uma comédia de humor politicamente incorreto, sem nenhuma piedade em brincar com a condição de um ser humano tolhido de suas liberdades decorrente de uma deficiência? Um conto sobre mundos que se encontram, se tocam e se modificam? Um "buddy movie" com aquele toque fabulesco? Tudo isso, ainda amparado por um trabalho técnico de qualidade, mas principalmente por uma dupla de atores muito especial.

Intocáveis diz a que veio e o que pretende, já em sua cena inicial, quando vemos um homem negro e forte dirigir um belo carro esporte, acompanhado por um homem de meia idade de feições doloridas, barbado e perdido em seus pensamentos. O homem negro acelera forte ultrapassando sem dó diversos veículos em sua corrida sem nenhum objetivo claro. De repente são perseguidos pela polícia e depois de uma tentativa de fuga, forçados a parar. O homem negro sai do carro e vocifera que precisa levar o outro homem ao hospital, pois ele está convulsionando ao seu lado. O homem de meia idade, ao mesmo tempo, começa a babar simulando essa condição. Para piorar a situação, o homem de meia idade está numa cadeira de rodas, o que amplia ainda mais a piedade dos policiais. Pronto, eles são liberados e os dois homens podem voltar a sua diversão.

Essa descrição detalhada que fiz (e que vocês que acompanham os textos por aqui, sabem que não costumo fazer) é importante para situar o leitor sobre o que vai ver. Ao enganar os policiais com uma desculpa das mais "ofensivas" o filme logo diz que o politicamente incorreto dará o tom da historia. Não espere uma historia edificante tradicional, e apesar da ideia ser até se enquadrar no ideal de superação de dificuldades, é dessa forma "diferente" que o filme vai seguir em frente.


O sujeito na cadeira de rodas é tetraplégico (ou seja, não sente nada do pescoço para baixo) e se chama Philippe. O motorista é o homem negro e forte chamado Driss. Quando o filme realmente começa após esse prólogo que é genial ao rapidamente dar as coordenadas do que veremos a seguir, Philippe está em busca de um novo cuidador, alguém para vesti-lo, conduzir sua cadeira, dar-lhe banho, dar-lhe de comer, beber, lhe passar o telefone, abrir sua correspondência entre muitas outras responsabilidades. Driss acaba de sair da cadeia depois de meses presos por um furto, e está - ao lado de muitos homens teoricamente mais bem preparados que ele - diante de uma entrevista de emprego, que para ele apenas serve como subterfúgio para conseguir garantir seu seguro desemprego (algo assim) por mais trinta dias.

Porém, Philippe encanta-se com o jeito sem rodeios, sem piedade, irônico e muito honesto de Driss e resolve contratá-lo. A partir daí o filme vai nos mostrar como a relação de empregado e patrão evolui para uma amizade verdadeira e muito forte.

Não existem vilões em Intocáveis, além das próprias limitações de Phillipe. Seus inimigos estão em sua própria mente e em seu próprio corpo. Por outro lado, Driss tem uma historia em seu passado, uma família muito numerosa que tem uma serie de problemas para manter-se. Esse talvez seja o único demérito do filme, já que essa linha narrativa é pouco explorada de forma mais intensa dando lugar a historia principal, embora em determinado momento da trama as duas narrativas acabem se cruzando, interferindo uma na outra.


Intocáveis é um filme profundamente humano e por isso não é politicamente correto. Não trata o deficiente como um aleijado social, alguém que não tem capacidade emocional para ouvir uma brincadeira e que não consegue lidar com seus próprios fantasmas. Tratar o deficiente como mais um cidadão, sem piedade e sem meias palavras é um dos grandes méritos do filme, que não tem medo de fazer piada com a condição de Philippe. Porém, é bom avisar o leitor, que quando falo de "fazer graça" não estou apontando a baixaria de produções escatológicas, mas de observações cotidianas sobre Philippe. Por exemplo, Driss fica curioso sobre como sexualmente o seu novo amigo funciona. Ao receber a noticia de que o amigo não sente nada do pescoço pra baixo fica curioso em saber como ele faz sexo. "Existem outras zona erógenas no corpo", diz Philippe. "Por exemplo?" retruca Driss. "Os lóbulos das orelhas" complementa o homem atado à cadeira de rodas. "Quer dizer que quando suas orelhas ficam duras é sinal que está excitado?" diz com todo o bom humor, o gigante africano.

Compreendem? É assim que Intocáveis trata seus personagens. Sem "dó", sem "passar a mão na cabeça" e dizer: "que coitadinho", mas fazendo graça de uma condição humana, colocando o deficiente como membro ativo da sociedade, alguém que deve ser tratado com igualdade assim como todos os demais seres vivos.

Isso não significa que o filme seja uma comédia rasgada, pelo contrário. Como estamos próximos ao ambiente de fábula, onde além de ser rico, Philippe mora quase em um castelo encravado em Paris, personagens coadjuvantes acabam se apaixonando quase beirando o cartoon, a doçura equilibra com muita sabedoria as observações ácidas e irônicas. Se Driss se esquece que seu patrão não consegue atender ao telefone e apenas "entrega" o aparelho ao homem, é também aquele que o incentiva a viver mais profundamente. Se ele tem uma paixão, ele o incentiva a seguir em frente, se ele quer praticar algum esporte é ele que o acompanha, e logo Philippe também ensina Driss o quão ele é competente e pode ser importante.


O filme de Olivier Nakache e Eric Toledano consegue essa proeza. Fazer graça de algo que a sociedade nos ensina a não brincar ao mesmo tempo em que é profundamente emocionante e leve. François Cluzet está reluzente. Philippe é um homem muito complexo que aparenta uma leveza que não condiz com suas reais emoções. Claro que se sente enfraquecido e deprimido com sua condição. Claro que sente falta de caminhar sozinho, de sua independência, mas mesmo assim, tenta encontrar ajuda exatamente em alguém que "se esquece" de suas deficiências, alguém que o trate nem pior, nem melhor, apenas igual a todos os outros. São nos olhos de Cluzet que vemos ele se entregar completamente ao papel. São nos pequenos movimentos de sua boca e em seu franzir de testa que tudo está contido. Obviamente limitado, é com a voz e seu rosto que o ator consegue nos convencer e identificar facilmente quando aquela alegria é falsa e quando Driss consegue tocá-lo de forma real, transformando-o em uma pessoa melhor.

Omar Sy - anote esse nome. Esse é um legitimo representante daquele chavão do cinema: força da natureza. Enorme, quase bronco, cheio de trejeitos que podem indicar uma agressividade, é leve, inteligente, sagaz e cheio de fibra moral. Sy é intenso, cheio de energia e dono de um carisma maior que o próprio filme. Sua química, com todos os demais interpretes, é assustadora e em especial com Cluzet, que parecem amigos de longa data, tamanha facilidade que os dois têm para conversar e convencer. Realmente um trabalho notável.

Intocáveis é um dos grandes filmes do ano. Uma aula de como tocar em temas complexos de uma forma profundamente inteligente e emocional, sem no entanto, esbarrar no pedantismo, no melodrama (no pior dos sentidos) ou na falta de respeito e na ofensa gratuita. Caminha sobre uma finíssima corda de forma elegante, com resultados exultantes.


3 comentários:

  1. Estou ansioso para assistir a esse filme. Primeiro, não havia nada que me interessasse de verdade, mas tenho lido boas resenhas sobre ele e fiquei bastante animado em vê-lo. Parece se tratar de uma obra de caráter ideológico bastante válido de se observar.

    Cara, passa no novo blog sobre o Oscar e confira: http://eooscarfoipara.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  2. otima crítica! Eu só adicionaria um comentário sobre a trilha sonora. A simplicidade das linha melódicas do piano, sem exageros e que unidas as belas imagens, comovem...

    ResponderExcluir
  3. Otima critica!! A trilha sonora também é excelente... sem exageros... dá o tom certo para o filme

    ResponderExcluir