terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O Vencedor
(The Fighter, 2010)
Drama - 115 min.

Direção: David O. Russell
Roteiro: Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson

Com: Mark Wahlberg, Christian Bale, Melissa Leo e Amy Adams



Cine biografias tem, por excelência, uma possibilidade muito grande de se consagrarem. Para cada aberração como Fique Rico ou Morra tentando, temos dez A Rede Social. Os filmes de boxe seguem esse estilo. Rocky e O Campeão conseguem ser exemplos de narrativa e usam o esquema de superação de forma estimulante, geralmente culminando na luta final, que tende a ser inspiradora e emocionante. Quando os dois subgêneros se fundem, potencializa-se a emoção e criam-se obras memoráveis como Touro Indomável. Porém, o tempo fez com que existissem diversos tipos de "filmes de boxe". Se Hurricane e Ali são exemplos do filme de superação, foram criadas variações para o gênero não se tornar repetitivo. A partir daí, surgiram filmes que usavam o boxe apenas como pano de fundo para uma vida difícil (Touro, O Invencível), contos morais dramáticos (Menina de Ouro) e até mesmo filmes noir com pano de fundo do boxe (A Morte passou por Perto). Todos bem sucedidos vale a pena dizer. Logo, é fácil constatar que é difícil se errar com um filme de boxe.

Obras sobre boxe rendem filmes competentes, sem dúvida, mas é raro ver algo que é digno de nota máxima, como Touro, o ótimo Menina de Ouro e o emocionante Quando Éramos Reis. As variações no subgênero são essenciais no que diz respeito a qualidade das obras. Pegando como exemplo os filmes de roubo, temos o conflito da segurança contra ousadia, o que separa um filme competente de uma obra-prima. Se o recente Atração Perigosa não alcança um lugar na memória dos deuses do cinema é justamente por não ousar. Como comentei na crítica do competente filme de Ben Affleck, Fogo contra Fogo é a variação ousada do filme de roubo, o que o torna especial e inesquecível.



E no filme de boxe a coisa anda de um jeito similar. Um filme de superação comum não ficaria no páreo com um Menina de Ouro, por exemplo. Deve-se haver um diferencial. E O Vencedor, novo filme do - indicado ao Oscar - David O. Russell, é um filme de superação que quer fincar seu pé na calçada dos filmaços do gênero.


Rotular o filme apenas como de superação seria um erro. Flertando com o esquema de filmes como Os Infiltrados e o próprio Atração Perigosa, O Vencedor entrega um interessante retrato sobre o povo de uma cidade do interior americano. Se nos filmes de Scorsese e Affleck a abordagem era policial, Vencedor tem um panorama dramático-cômico para sua vizinhança, retratada com leveza pelos roteiristas Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson. E esse ritmo, que demonstra bem a admiração dos roteiristas e de O. Russell por Lowell, o local onde Micky Ward nasceu, é intenso e nunca deixa a película cair no esquecimento. A atmosfera de anos 90, recriada de forma simples e competente, faz com que cada nuance do drama da família seja potencializado, dando mais realismo a tudo ali. A história de boxe de Micky Ward, retratado de forma enérgica e eficiente por Mark Wahlberg, é a principal, mas o pano de fundo divertido dos curiosos habitantes de Lowell é o tal diferencial que O Vencedor usa para tentar calcar seus pés na memória.



Percebendo-se isso, é interessante constatar que O Vencedor é tão uma crônica sobre uma família disfuncional com origens irlandesas quanto um filme de boxe. Da mesma forma que Infiltrados e Atração retrataram os criminosos tradicionais e as pessoas normais daqueles locais, O Vencedor usa esse pano de fundo para sua história. Porém, como é um filme dramático, Vencedor fala bastante dos conflitos internos daquela gente. E justamente deles vêm às cenas mais pesadas do filme.


Mas, curiosamente, elas não são muitas. O filme de David O. Russell aprofunda-se mais no lado cômico dessa vizinhança e da própria redenção de Micky e seu irmão Dicky. Dando uma estética cool as partes de boxe (utilizando recursos como a montagem ágil e frases de efeito) e cômica em várias partes do núcleo familiar, o roteiro tem como seu maior trunfo a consciência dessa natureza. Afinal, as situações em que somos apresentados não poderiam ser levadas muito a sério. A maquiada Alice, mãe do clã boxeador, interpretada com intensidade notável por Melissa Leo, desperta risos até mesmo pelo seu modo "elegante do interior" de se vestir. O artificial cabelo loiro de Alice é uma inteligente sacada visual. Ao mesmo tempo em que nos apresenta um elemento recorrente dos anos 90, retrata bem o espírito da personagem (e do próprio filme). Apostando ferrenhamente no humor e no "feel good movie", O. Russell encontra nos caricatos núcleos familiares uma fonte cômica inusitada. A situação bizarra dos irmãos Micky e Dicky serem de pais diferentes ou a forma manipuladora com que Alice agencia a carreira de Micky é captada pelas lentes do diretor de forma irônica e extremamente divertida. E se poderia haver qualquer divergência entre o estilo cômico de O. Russell e um possível tom sério do roteiro, isso logo se invalida. Afinal, as sete irmãs Eklund-Ward tem um desenvolvimento raso justamente para se apoiarem no humor, o que surge como uma decisão corretíssima, com grande destaque para a briga entre Charlene e as irmãs.



Charlene, por sinal, é construída com esmero pelo roteiro e pela magnífica atuação de Amy Adams. Ela é o parâmetro para Micky bater de frente com sua família e tomar um rumo de verdade em sua antes fracassada carreira de boxe. As partes em que Micky começa a ganhar voz na família são reveladoras, fundamentais para a narrativa e, novamente, captadas com leveza divertida.

E mesmo que o retrato da carreira no boxe dos irmãos seja esquemático, a ciência das limitações narrativas que o roteiro impõe são fundamentais pra apreciação da história. Estão lá todos os arcos da superação do filme de boxe, mas somados ao núcleo familiar e ao tom surpreendentemente cômico, O Vencedor chega com dignidade a seu clímax, que é espetacular justamente pela construção formidável de situações e personagens que o filme de O. Russell tem. Deixando o público tenso e com uma torcida sincera pelo protagonista na obrigatória luta final, O. Russell realiza um filme redondinho e divertidíssimo, que entretém de maneira diferente e, acima de tudo, inteligente.



Essas limitações narrativas não só são ajudadas pela parte cômica como são utilizadas em prol das atuações. Visando a possível caricatura que cada ator poderia ser sujeitado a fazer pelos seus papéis exagerados, o roteiro abre essa brecha para o overacting com rara qualidade. E nesse caso, o extrapolar de emoções é utilizado de forma benéfica. Melissa Leo e os coadjuvantes podem estar atuando no limite do over, sim, mas a naturalidade com que tudo é encarado pelo filme é notável. Sendo assim, O Vencedor entra naquele seleto grupo de "filmes de atuação", desde o desempenho contido do ótimo Mark Wahlberg até a merecedora do Oscar, de Christian Bale.

O personagem de Bale, aliás, é o motivo maior da dramaticidade do filme e até a metade da projeção, quase o engole. Mudando fisicamente de forma assustadora, Bale ainda cria seu personagem com competência equivalente á de seus Patrick Bateman e Bruce Wayne. A grande prova disso é a sequência mais pesada do filme, a exibição do documentário da HBO sobre o vício de Dicky Eklund. Arrebatadora e palco explícito destinado a Bale demonstrar todo seu talento.



Sendo bem sucedido no núcleo familiar quanto no inspirador e revigorante núcleo do boxe, O Vencedor é um perfeito feel-good movie. Uma diversão com um tom mais sério que o cinemão pipoca, mas sem dúvida vitoriosa e leve por ser ciente de suas limitações narrativas. Sem chegar perto de ser uma obra-prima, mas uma película que deixa uma felicidade agradável no ar. Merecedor de sua indicação ao Oscar (ainda que Christopher Nolan e Danny Boyle tenham feito direções muito mais competentes que O. Russell), O Vencedor é uma boa surpresa.


Sem surpresas, preciso, enérgico e cômico. Quem diria. Overacting bem feito é outra coisa.

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