A grande diferença entre um grande clássico e um filme cult é simples: Cult é aquele filme que você gosta e não necessariamente é tão bom assim (alguns até são), mas que por algum motivo você adora, se diverte e indica aos amigos. O caso é que na ânsia de encaixar esses filmes em alguma sessão, o Fotograma resolveu criar essa nova sessão, onde aqueles filmes amados e cultuados serão aqui comentados. Sempre de maneira leve e divertida, como pede um filme cult.
Eu sou a Lenda
(I am Legend, 2007)
Francis Lawrence é um diretor competente. Após realizar o interessante Constantine, o austríaco se consolidou como um belo carregador de piano na Meca do Cinema. Não fazendo muitas exigências, o diretor é querido pelos produtores e é chamado pra fazer os projetos que são blockbusters, claro, mas que são mais complicados que os meros mutantes e bruxos das franquias. Portanto, a adaptação do complicado I am Legend, livro de Richard Mathieson, não poderia ter caído em mãos melhores. Porém, o filme e o livro têm abordagens bem complicadas, principalmente ao se considerar que em 2 terços das mídias, o protagonista anda sozinho pela cidade. Um problema, então, era escalar alguém que segurasse o papel de forma distinta. Will Smith, ator carismático e talentoso, se associou ao projeto, o que é outro enorme acerto. Tendo um competente roteiro em mãos, Lawrence então poderia realizar seu primeiro projeto arriscado, transcendendo ainda mais a barreira criativa que ele tinha em Constantine.
Porém, segundo os produtores americanos, um projeto Cult e pequeno, com ambições enormes e tendência a pouco orçamento, pode ter um potencial financeiro imenso. Will Smith, dono de pelo menos 4 bilheterias gigantescas, é o protagonista, porque não visar mais dinheiro? Sendo assim, o ousado projeto virou um monstro da mídia. 160 milhões em orçamento são mais do que prova de que Eu Sou a Lenda virou oficialmente um blockbuster. Mas como um filme quieto, calcado em atuação e subtexto filosófico-político, pode ter gerado 590 milhões (pagando assim seu orçamento megalomaníaco)?
Apostando na idiotice generalizada dos produtores, que ofendem o espectador. O filme tem seus próprios erros, que o tornam inquestionavelmente imperfeito, mas o que a ganância por um happy ending é o principal deles.
Mesmo antes dos logotipos dos estúdios sumirem da tela, o roteiro de Akiva Goldsman e Mark Protosovich já bombardeia informações. Porém, o que é relevante do programa jornalístico, começa apenas quando Emma Thompson surge na tela, numa ponta como a Dra. Krippen, revelando que descobriu a cura pro câncer. Com um belo corte para 3 anos no futuro, começamos a acompanhar, com imagens impressionantes, a jornada de Robert Neville e seu cachorro para sobreviver na devastada Nova York. Uma divertida e esplêndida sequência de Neville em um Mustang, cruzando a cidade vazia, dá uma incrível dimensão aos fatos sem explicar nada. No final da cena, Neville vai á caça. E confrontando a fauna selvagem que ali se instalou, o protagonista percebe que é uma luta perdida. Ele simplesmente sai. Surge, com fundo musical climático e gigante autoridade, o título na tela. Simplesmente devastador, o início do filme é perfeito em todos os sentidos. Além de ditar o ritmo da narrativa dali pra frente, com poucas interações faladas, o prólogo ainda estabelece o desesperador cenário da narrativa com eficácia, colocando o espectador dentro daquele mundo.
E o roteiro continua sua história sem excessos, calmo, como um verdadeiro artista. Pouco a pouco conhecemos Neville e seus hábitos, ao passo que também contraímos laços emocionais com ele e Sam, sua pastora alemã. O tocante modo com que Neville lida com sua solidão, é muito bem executado também. A cena na locadora é exemplo de confiança no espectador, preferindo ilustrar as emoções do personagem por gestos e palavras bem-humoradas, como a ótima sacada com os manequins. Recusando utilizar narração em off no filme, o roteiro ganha mais pontos ao negar um artifício que é mais fácil (mas incompetente quando mal utilizado). Não por acaso, os únicos monólogos explicativos de Neville são para realizar seus experimentos científicos. A opção por omitir as reações do povo à infecção é vitoriosa. Os flashbacks da família de Neville são os únicos elos do espectador pra conectar o que ocorreu durante a infestação e evacuação, dando um tom de mistério que é muito bom.
E aí entra a competência de Francis Lawrence. Executando uma direção madura ao extremo, Lawrence é perfeito ao potencializar a solidão e tristeza de Neville em cada enquadramento, ainda indo além ao conceber belíssimos quadros em conjunto com Andrew Lesnie, o diretor de fotografia. A paleta amarelada, que enriquece as internas e aumenta o desconforto ao ver a maior metrópole do mundo inteiramente vazia, casa com a direção contemplativa de Lawrence, que consegue ser arrojado mesmo num filme de estúdio. E ainda acerta ao investir em algumas soluções visuais pra criar suspense, como os cachorros infectados esperando a luz do Sol acabar pra atacarem. Tendo como mantra um conceito que cada diretor devia lembrar mais, o do valor imenso de uma imagem muda perante as palavras expositivas, Lawrence conta sua história com paciência admirável. Se revelando também um baita diretor de atores, com uma performance hipnótica de Will Smith, Lawrence cria passagens angustiantes só na interação diretor-ator, como a lindíssima e forte cena de Neville e a manequim na locadora, após um evento catártico.
O ritmo diferente, a narrativa complexa estruturalmente, apenas um ator em tela e um tema difícil, que envolve até mesmo religião, construíram Eu Sou a Lenda como um raro exemplo de inteligência nos blockbusters, um Cult em essência com orçamento milionário. E até o minuto 75, o filme ia caminhando pra um resultando esplêndido. Tudo é atmosférico, é emoção visceral, nada é pedante, nada desnecessário se explica (como a armadilha que precede os cachorros infectados). Claro que tem seus erros peculiares, como a energia infinita da casa de Neville, o suprimento alimentar que não estragou em 3 anos e uma coincidência lá pro minuto 60 na sequência do píer. Mas ainda assim, um belo filme a ponto de ser memorável junto a Filhos da Esperança, outro filme que tem sua raiz de ação, mas é inegavelmente mais político. Comparando os dois filmes, Filhos aposta mais nos conflitos étnicos e políticos enquanto Eu Sou a Lenda se baseia nas emoções do isolamento. Juntos, dividem o apocalipse iminente e o subtexto filosófico-religioso fortíssimo.
Obviamente, o filme enfraqueceria com a chegada de outro elemento, no caso, Alice Braga. Mas sua personagem sustenta as interações com Smith muito bem, com destaque para o discurso de Neville sobre Deus que, apesar de expositivo ao contar a população mundial após o incidente, é poderosíssimo. A correria que acaba acontecendo é bem executada e libera a tensão tão velada ao longo do filme. Assim, Lawrence, Smith e os roteiristas caminhavam a passos largos pra memória do espectador.
Porém, chega o clímax. O dinheiro falou mais alto e Hollywood mostrou sua mágica.
Explorando recursos batidos como o sacrifício, os 10 minutos finais abraçam sem reservas o espectador médio ao conceder respostas fáceis ao final da narrativa. Não só satisfeito em desfazer a encantadora atmosfera desoladora do restante da película, o final moldado pelos produtores após uma exibição-teste ainda cria imensos buracos de roteiros em prol do desgraçado do happy ending. Como aceitar que há esperança em uma freqüência de rádio se em três anos (repetindo, TRÊS ANOS) ninguém a ouviu? Deu um estalo de inteligência nas pessoas pra resolver ligar o rádio em AM apenas depois de quase meia década? Pior: como aceitar que uma paulista com um moleque de 10 anos foi capaz de encontrar Neville se há uma BASE MILITAR que não o encontrou? E não satisfeito em sua mediocridade, o final ainda destroça a bela ideologia velada do título: Se Neville é a lenda que a insistente narração final martela, por que essa lenda tem passado?
A coisa só enfraquece quando vemos o potencial que o clímax tinha. Não só em imaginar como seria um final digno do início pessimista, mas considerar que um final alternativo, bem superior, foi gravado e retirado em prol do sorriso no rosto do público que vê cinema como mero entretenimento. E aquele final era espetacular, evocando o lado humano da tragédia que tanto prezaram ao longo da narrativa. Lembrando Blade Runner, humanizando o vilão, vendo o outro lado da moeda, que talvez seja mais desolador que a própria linha principal da história. Mas desde a década de 70, arte não faz dinheiro. E a corda sempre arrebenta pro lado mais pobre. Uma pena, pois Eu Sou a Lenda é competente, mas podia ser memorável.
Em pensar que a melhor cena do filme é a síntese do filme "quietão" que estávamos vendo. Um homem angustiado e a câmera.
Olá Gabriel
ResponderExcluirGostei da sua análise, mas discordei do final ( só escrevemos sobre o que não concordamos né, haha)
Eu achei o final original melhor que o alternativo justamente por ser menos "comercial". O alternativo sim é um "Happy ending". Ele faz sentido com o restante do filme, que desde o começo dá a entender que os seres humanos viraram bichos, que são 100% instinto, eles se estapeiam por um pedaço de carne. Não faz sentido eles abrirem mão da sua necessidade de alimentação instintiva em nome de salvar uma companheira, isso mostra uma racionalidade e um senso de sacrifício que não havia anteriormente. Não faz sentido humaniza-los, se o restante do filme mostra que não há humanidade nenhuma neles.
Acredito que o final alternativo deixaria muito satisfeito o publico médio, que assiste cinema só como entretenimento
Além disso, ficou muito estranho: o doutor aplica o antídoto nela, ela vai se curar e os outros vão querer come-la...
Enfim acho que optaram pelo final menos comercial e mais coerente com o filme.