As Aventuras de Pi
(Life of Pi, 2012)
Drama/Aventura - 127 min.
Direção: Ang Lee
Roteiro: David Magee
com: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Adil Hussein, Tabu, Rafe Spall, Gérard Depardieu
Essa é a melhor
representação que vi na tela grande sobre a necessidade do ser humano em ter fé
e acreditar em alguma coisa além do que seus olhos veem. E você nem precisa
acreditar nessa visão de mundo para entender e se apaixonar pela jornada de
beleza impecável do jovem Pi, um garoto indiano que, perdido no mar, precisa
encontrar uma forma de sobreviver. Também é um tratado sobre a força do contador de histórias, uma tradição humana que remonta as cavernas e que é fundamental na construção de nossa sociedade.
Dirigido por Ang
Lee, um dos diretores de maiores sensibilidade do cinema mundial, Aventuras de
Pi é um deslumbre para os olhos e uma historia aguda, levemente questionadora com final
surpreendentemente agridoce e com personagens (humanos ou não) absolutamente
carismáticos.
Pi (ou melhor Piscine) é um jovem
indiano cujo pai tem um zoológico e que foi criado num lar amoroso, entre um pai
racional e uma mãe aberta as mais diferentes manifestações de fé, embora mantenha sua crença no hinduismo. Pi, um garoto curioso, abraça todas as características
que para ele são positivas em cada uma das manifestações religiosas exemplificado num dos
momentos mais geniais do ano em que agradece a Vishnu (divindade hinduísta) por ter
lhe apresentado Cristo, num maravilhoso exemplo de sincretismo religioso.
Reconheço, no
entanto, que a narrativa tem suas falhas pontuais. Todo o primeiro arco do
filme, ambientado na Índia e que mostra o dia a dia de Pi, suas descobertas e
primeiras "aventuras" é cansativo, mas essencial para a compreensão
dos personagens e principalmente da personalidade do protagonista.
A trama se
desenrola em dois tempos. Na atualidade, um Pi de meia idade conta sua historia
para um escritor francês intrigado com sua historia de sobrevivência. A outra
linha narrativa é justamente a historia contada por Pi. Esse detalhe é
importante e fundamental para o espectador não sair do cinema perdido com o que
viu. Assim como em J.Edgar (quem lembra?) pra ficar em um exemplo recente, a
historia da vida de Pi nos chega depois de filtrada pelos olhos, imaginação,
lembranças e omissões do hoje senhor de meia idade. É como ouvir um conto de um sujeito, a
partir de seus relatos e depois confrontá-los com os fatos. É a forma que Ang Lee encontrou para ir além das ideias sobre sincretismo e fé, e também abordar a força de uma boa história.
É por isso, que a Índia de Pi é tão bucólica e de sonho, já que é a lembrança de um homem a respeito de sua
terra natal. Essa sensação é elevada à enésima potencia quando sua família está
de saída da Índia, em busca de um novo começo no Canadá a bordo de um navio levando a
tiracolo os animais do zoológico. Um terrível acidente vitima a embarcação
e Pi sobrevive cercado de alguns animais do zoológico. Uma zebra ferida, um
orangotango, uma hiena e o mítico Richard Parker, um tigre de bengala
temperamental.
A partir dai,
somos envolvidos em uma narrativa de sobrevivência, mas diferente do melodrama
fácil de O Náufrago, Pi tenta nos encantar pelas imagens impecáveis, de uma
beleza plástica incomum, realmente nos dando a impressão de não estarmos com o
garoto no mar, mas em um mundo onírico, único e inalcançável.
A qualidade visual
também esbarra na criação de animais absurdamente críveis, mas ainda sim com um
toque quase mágico em suas expressões faciais e movimentação. Sim, Richard
Parker, em grande parte do filme é fruto da tecnologia. Um deslumbre
verdadeiramente impressionante. Desde a criação da movimentação do animal,
passando pela pelagem e seus olhos profundos, tudo encanta.
A grande dúvida,
conhecendo a sinopse, era a mágica que deveria ser feita para que o espectador
não dormisse no cinema, depois de acompanhar mais de uma hora de um jovem
sozinho dentro de um barco, quase sem diálogos. O uso de um improvisado diário,
sua interação absolutamente natural com o tigre Richard Parker e pontuais
retornos aos dias de hoje, fazem da montagem do filme uma das mais inteligentes
do ano, conseguindo a proeza de não entediar o espectador.
Aventuras de Pi é
um filme de camadas, com interpretações variadas sobre alguns assuntos e que
culmina em uma chocante e tocante reviravolta que nos diz muito a respeito das
ações do ser humano (sem o pedantismo tão comum em obras assim). A partir de um
microcosmo, Lee consegue contar uma historia sobre as aventuras da vida de
todos nós, e das escolhas que fazemos para nos mantermos sãos e felizes.
Uma delas é a
relação realista com um animal feroz. Depois que terminamos o filme e somos
apresentados às respostas a respeito dessa incrível jornada, podemos percebemos
ainda mais essa ideia de Lee em nos aproximarmos da natureza, da visão da
deidade, sem, no entanto, nos esquecermos de que animais e humanos são
diferentes em diversos aspectos e que não devemos ver um tigre (no caso) como
um animal dócil, mas como um ser irascível e capaz de tudo para sobreviver. Em
uma analogia óbvia (e que o filme faz), é a mesma visão que Lee tem para com
nós mesmos. Dentro de toda nossa civilidade, somos capazes de momentos de pura
fúria e de encantamento. Somos mais um grão na infinidade do universo, capazes de tudo para sobrevivermos.
Outro
questionamento, para mim, o maior de todos eles, é sobre a importância dos
fatos mediante as muitas lendas que povoam nossas vidas. Nossas opções de
crença e de valores são diretamente influenciadas pela nossa felicidade. Nossa
fé nos leva a crer naquilo que - primeiramente - nos faz nos sentir bem. Essa é
uma discussão dolorosa, complexa e agridoce, e que faz do filme muito mais
importante do que uma mera viagem astral/transcendental com um tigre.
Seus
questionamentos sobre a natureza da fé, sobre nossa identificação com aquilo
que nos serve como porto seguro e que nos afaga num momento de tristeza são
muito bem colocados. É um retrato duro, doloroso, belíssimo e tocante sobre a
relação da fé com o ser humano e do poder das historias em nossa vida.
Contando com uma
interpretação inspiradíssima do garoto Suraj Sharma (que atua boa parte do tempo sozinho), Aventuras de Pi é um amalgama sobre
fé, humanidade, escolhas, virtudes e defeitos que todos nós podemos enfrentar.
Um verdadeiro catecismo.
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