quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


As Aventuras de Pi
(Life of Pi, 2012)
Drama/Aventura - 127 min.

Direção: Ang Lee
Roteiro: David Magee

com: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Adil Hussein, Tabu, Rafe Spall, Gérard Depardieu

Essa é a melhor representação que vi na tela grande sobre a necessidade do ser humano em ter fé e acreditar em alguma coisa além do que seus olhos veem. E você nem precisa acreditar nessa visão de mundo para entender e se apaixonar pela jornada de beleza impecável do jovem Pi, um garoto indiano que, perdido no mar, precisa encontrar uma forma de sobreviver. Também é um tratado sobre a força do contador de histórias, uma tradição humana que remonta as cavernas e que é fundamental na construção de nossa sociedade. 

Dirigido por Ang Lee, um dos diretores de maiores sensibilidade do cinema mundial, Aventuras de Pi é um deslumbre para os olhos e uma historia aguda, levemente questionadora com final surpreendentemente agridoce e com personagens (humanos ou não) absolutamente carismáticos.

Pi (ou melhor Piscine) é um jovem indiano cujo pai tem um zoológico e que foi criado num lar amoroso, entre um pai racional e uma mãe aberta as mais diferentes manifestações de fé, embora mantenha sua crença no hinduismo. Pi, um garoto curioso, abraça todas as características que para ele são positivas em cada uma das manifestações religiosas exemplificado num dos momentos mais geniais do ano em que agradece a Vishnu (divindade hinduísta) por ter lhe apresentado Cristo, num maravilhoso exemplo de sincretismo religioso.


Reconheço, no entanto, que a narrativa tem suas falhas pontuais. Todo o primeiro arco do filme, ambientado na Índia e que mostra o dia a dia de Pi, suas descobertas e primeiras "aventuras" é cansativo, mas essencial para a compreensão dos personagens e principalmente da personalidade do protagonista.

A trama se desenrola em dois tempos. Na atualidade, um Pi de meia idade conta sua historia para um escritor francês intrigado com sua historia de sobrevivência. A outra linha narrativa é justamente a historia contada por Pi. Esse detalhe é importante e fundamental para o espectador não sair do cinema perdido com o que viu. Assim como em J.Edgar (quem lembra?) pra ficar em um exemplo recente, a historia da vida de Pi nos chega depois de filtrada pelos olhos, imaginação, lembranças e omissões do hoje senhor de meia idade. É como ouvir um conto de um sujeito, a partir de seus relatos e depois confrontá-los com os fatos. É a forma que Ang Lee encontrou para ir além das ideias sobre sincretismo e fé, e também abordar a força de uma boa história.

É por isso, que a Índia de Pi é tão bucólica e de sonho, já que é a lembrança de um homem a respeito de sua terra natal. Essa sensação é elevada à enésima potencia quando sua família está de saída da Índia, em busca de um novo começo no Canadá a bordo de um navio levando a tiracolo os animais do zoológico. Um terrível acidente vitima a embarcação e Pi sobrevive cercado de alguns animais do zoológico. Uma zebra ferida, um orangotango, uma hiena e o mítico Richard Parker, um tigre de bengala temperamental.


A partir dai, somos envolvidos em uma narrativa de sobrevivência, mas diferente do melodrama fácil de O Náufrago, Pi tenta nos encantar pelas imagens impecáveis, de uma beleza plástica incomum, realmente nos dando a impressão de não estarmos com o garoto no mar, mas em um mundo onírico, único e inalcançável.

A qualidade visual também esbarra na criação de animais absurdamente críveis, mas ainda sim com um toque quase mágico em suas expressões faciais e movimentação. Sim, Richard Parker, em grande parte do filme é fruto da tecnologia. Um deslumbre verdadeiramente impressionante. Desde a criação da movimentação do animal, passando pela pelagem e seus olhos profundos, tudo encanta.

A grande dúvida, conhecendo a sinopse, era a mágica que deveria ser feita para que o espectador não dormisse no cinema, depois de acompanhar mais de uma hora de um jovem sozinho dentro de um barco, quase sem diálogos. O uso de um improvisado diário, sua interação absolutamente natural com o tigre Richard Parker e pontuais retornos aos dias de hoje, fazem da montagem do filme uma das mais inteligentes do ano, conseguindo a proeza de não entediar o espectador.


Aventuras de Pi é um filme de camadas, com interpretações variadas sobre alguns assuntos e que culmina em uma chocante e tocante reviravolta que nos diz muito a respeito das ações do ser humano (sem o pedantismo tão comum em obras assim). A partir de um microcosmo, Lee consegue contar uma historia sobre as aventuras da vida de todos nós, e das escolhas que fazemos para nos mantermos sãos e felizes.

Uma delas é a relação realista com um animal feroz. Depois que terminamos o filme e somos apresentados às respostas a respeito dessa incrível jornada, podemos percebemos ainda mais essa ideia de Lee em nos aproximarmos da natureza, da visão da deidade, sem, no entanto, nos esquecermos de que animais e humanos são diferentes em diversos aspectos e que não devemos ver um tigre (no caso) como um animal dócil, mas como um ser irascível e capaz de tudo para sobreviver. Em uma analogia óbvia (e que o filme faz), é a mesma visão que Lee tem para com nós mesmos. Dentro de toda nossa civilidade, somos capazes de momentos de pura fúria e de encantamento. Somos mais um grão na infinidade do universo, capazes de tudo para sobrevivermos.

Outro questionamento, para mim, o maior de todos eles, é sobre a importância dos fatos mediante as muitas lendas que povoam nossas vidas. Nossas opções de crença e de valores são diretamente influenciadas pela nossa felicidade. Nossa fé nos leva a crer naquilo que - primeiramente - nos faz nos sentir bem. Essa é uma discussão dolorosa, complexa e agridoce, e que faz do filme muito mais importante do que uma mera viagem astral/transcendental com um tigre.


Seus questionamentos sobre a natureza da fé, sobre nossa identificação com aquilo que nos serve como porto seguro e que nos afaga num momento de tristeza são muito bem colocados. É um retrato duro, doloroso, belíssimo e tocante sobre a relação da fé com o ser humano e do poder das historias em nossa vida. 

Contando com uma interpretação inspiradíssima do garoto Suraj Sharma (que atua boa parte do tempo sozinho), Aventuras de Pi é um amalgama sobre fé, humanidade, escolhas, virtudes e defeitos que todos nós podemos enfrentar. Um verdadeiro catecismo.

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