sexta-feira, 30 de julho de 2010


O Filmes para ver antes de Morrer nunca tentou - e nem vai tentar - criticar ou analisar uma obra que por motivos óbvios está no panteão das maiores (na opinião da equipe) já produzidas pela sétima arte, por isso o espaço aqui é para relembrarmos, homenagearmos e apresentarmos a quem não viu, grandes filmes da história do cinema.

Hora do Lobo 
(Vargtimmen, 1968)

O pesadelo segundo Ingmar Bergman

Ingmar Bergman, o maior e mais famoso cineasta nórdico, sempre tentou dar significados a suas obras, sejam elas comédias, dramas, análises do ser humano e até filmes de terror. Hora do Lobo é um filme de terror, e não é. Uma mistura de filme "sobre" o terror, paranóia e pesadelo com algo a mais. Esse a mais cabe ao espectador entender como quer. 

Diante da escuridão expressa em cada plano do diretor sueco muita interpretações podem ser percebidas e cooptadas a um raciocínio.

No livro 1001 Filmes para ver Antes de Morrer - sempre um bom guia para obras desconhecidas e com textos análiticos interessantes - o crítico Michael Tapper diz que Hora do Lobo pode ser vista como "...o tormento espiritual do artista " e complementa "este é um filme de completo horror sobre um artista sensível (embora não muito simpático) feito espiritualmente em pedaços por seus críticos demoníacos e pela platéia". 

Michael faz uma análise simbólica do que representa o terror e medo e a sensação de paranóia constante enfrentado pelo personagem de Max Von Sidow. No texto, Michael apresenta como argumentos para sua tese o fato do personagem de Von Sidow encarar o mecenato de um casal burgues como elementos de menosprezo a sua arte, como se os dois fossem mortos-vivos, que de forma predatorial usam o artista. Outro elemento apresentado por ele é a sequencia lisérgica e perturbadora no castelo que o autor interpreta como "A humilhação final acontece na cena em que Johan se descobre utilizando uma maquiagem de palhaço, feminina e recebe provocações de sua amante Veronica Vogler (Ingrid Thulin) enquanto seus algozes observam no escuro dando risadas".

Já Adam Simon no livro 101 Horror Movies You Must See Before you Die diz sobre Hora do Lobo: "Verdadeiros filmes de pesadelo nunca são filmes sobre pesadelos em si. Eles se concentram mais na insônia".

As duas interpretações são válidas mas o filme de Bergman é mais do que crítica ao mundo dos espetáculos ou uma visão dolorosa do mundo dos sonhos, é uma viagem pela mente perturbada e paranóica de um homem assustado por seus fantasmas e pela escuridão de sua mente. Isso se reflete em cada atitude do personagem de Von Sidow. Ao mesmo tempo que  sua esposa (Liv Ullman, belíssima) é tão servil e apaixonada que não enxerga e não tenta se desvencilhar dessa condição mental deteriorada que seu marido enfrenta.

Isso regado a um uso da sombra fabuloso, de efeitos visuais inteligentes, de tensão eterna - que não é causada por sustos, mas pela condução do diretor - e um final eliptico.

Afinal com quem Alma sempre conversava? Um diretor de um filme, como a abertura indica? Ou a alguma entidade que veio "buscá-la"? E se falava porque razão? Solidão?

Bergman, como sempre, é vago nas respostas. Deixa o espectador conjecturar e criar suas próprias interpretações. Metafisicas, criticas, científicas, filosóficas ou religiosas. Quase todas válidas e defensáveis pelo próprio filme. Um caso raro de diretor que dizia realmente algo por trás das camadas de significado.




quinta-feira, 29 de julho de 2010

Hot Tub Time Machine
(Hot Tub Time Machine, 2010)
Comédia - 99 min.

Direção: Steve Pink
Roteiro: Josh Heald, Sean Anders e John Morris

Com: John Cusack, Clark Duke, Craig Robinson, Rob Corddry, Chevy Chase e Crispin Glover.

O filme do diretor Steve Pink mistura duas coisas que quase sempre funcionam e dão resultados divertidos na tela: viagem no tempo e cultura pop. Hot Tub Time Machine (traduzido aqui como A Ressaca - péssimo título) conta a história de três amigos de infância e o sobrinho de um deles que acabam voltando no tempo graças a uma engenhosa e bizarra jacuzzi.


Nick (Craig Robinson da série The Office) é um ex-cantor que, casado, vive uma vida medíocre trabalhando num pet shop. Lou (Rob Corddry que entre milhões de papéis de coadjuvante, fez a seqüência do "hemp-movie" Harold & Kumar) é uma versão do personagem Stifler, da série American Pie, com menos cabelo e menos noção. Adam (John Cusack, de Alta Fidelidade, 2012 entre outros), é o vendedor de seguros que é largado pela namorada. E Jacob (Clark Duke de Kick Ass) é o sobrinho de Adam, o nerd bobo que não sai de casa e vive uma vida via wi-fi.
Quando acidentalmente Lou quase se mata (numa seqüência nostálgica que me fez lembrar o quão velho estou ficando), os dois amigos decidem levá-lo ao mítico Kodiak Valley, um lugar nas montanhas, onde entre esquis, drogas, sexo e bebedeiras o trio passou momentos importantes de suas vidas. O filme segue até o momento bizarro da volta no tempo numa jacuzzi, trazendo o quarteto de volta ao - hoje - longínquo ano de 1986.

A partir dai a comédia - que não faz gargalhar - leva o quarteto e o público a um tour pelo melhor e o pior dessa fabulosa década: os anos oitenta. Pink foi brilhante ao trazer ao elenco dois atores símbolo desse período; Crispin Glover (da fabulosa série De Volta para o Futuro) é Phil, o carregador de um braço só do hotel onde se passa boa parte do filme. Já Chevy Chase (de zilhões de comédias seminais dos anos 80, incluindo Férias Frustradas, Fletch, Clube dos Pilantras entre muitos outros) é uma espécie de guardião da jacuzzi do tempo, funcionando como o personagem de Christophen Walken em Click - com muito mais graça, que se diga.


Não é um filme que vai fazer o espectador rir até cair da cadeira, mas para os quase trintões e trintões funciona como um catalisador de muitas memórias; é um feel good movie de primeira. Para os mais novos, existem algumas referências - em especial quando um dos personagens decide tirar vantagem do fato de saber o futuro - e piadas que satirizam aquele momento histórico.

Porém, a narrativa prega o básico em filmes de volta no tempo: não mexa em nada, pois qualquer mínima mudança pode arruinar seu futuro. Ai cabe o registro da homenagem a série De Volta para o Futuro, com o personagem Jacob - que tem pouco mais de vinte anos - sendo "apagado" tal qual a foto da família McFly na série de Zemeckis.

Os problemas do filme, e que fazem ele não deslanchar de vez, é que o excesso de cultura pop e referências atrapalham depois de um tempo a boa idéia do roteiro inicial. Em vez de tirar sarro da situação, Pink e o trio de roteiristas Josh Heald, Sean Anders e John Morris, misturaram a incrível série de referências com a óbvia questão do "e se...". O que faríamos se tivéssemos uma segunda chance, para voltarmos ao passado e mudarmos nossa vida. Faríamos?


John Cusack, que deveria ser o protagonista teórico, abre espaço para o engraçadíssimo Rob Corddry, dono das melhores piadas, cenas e momentos do filme. A cena dos créditos finais mistura em iguais proporções comédia, vergonha alheia em níveis altíssimos e nostalgia absoluta, e é um grande momento do ator. Cusack é o elo "real" do espectador com o filme, e que aborda melhor aquela questão rala do "e se...", já Robinson tem duas memoráveis seqüências envolvendo sua mulher, uma banheira e um telefonema. Enquanto Clark Duke compõe o estereótipo do nerd bobalhão, o que não acrescenta nada, nem mesmo no epílogo.

Hilárias sim, são todas as participações de Crispin Glover no passado, na tentativa desesperada de vermos seu braço ser decepado. Como os personagens sabem que o braço do cara foi cortado exatamente naquele dia em que voltam ao passado é um mistério e um dos vários furos do roteiro, que verdadeiramente - e com razão - não se importa com isso.


Hot Tub não quer ser uma comédia nos moldes de Se Beber Não Case (a verdadeira "Ressaca" que o título nacional destruiu) e apela para o sentimentalismo das comédias americanas, que apostam num happy end no final de uma hora e meia de diversão leve e descompromissada. Funciona para os nostálgicos.

(Obs: listei aqui alguns dos elementos oitentistas e de cultura pop que o filme apresenta - Family Guy, Iluminado, Poison - esse é quase homenageado -, I Wanna My MTV, Miami Vice - a série -, Celulares Gigantes, muita roupa colorida, ALF, Super Mario, Walkman, a cor de Michael Jackson, Hunter Thompson, Stargate, Exterminador do Futuro, Timecop, Efeito Borboleta, Amanhecer Violento, Miley Cirus, Twitter, Viagra - e sua combinação o Twittagra - , Zac Efron, Shia Lebouf, Enrique Iglesias, Motley Crue e Google).

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Inimigo Público nº 1 - O Instinto da Morte
(L'Instinct de Mort, 2008)
Thriller - 113 min.

Direção: Jean-François Richet
Roteiro: Abdel Raoufi Dafri e Jean-François Richet

Com: Vincente Cassel, Cécile de France, Gérard Depardieu

Vincent Cassell (de Senhores do Crime, Irreversivel, Á Deriva entre muitos outros) estrela essa cine-biografia do mais famoso bandido francês, o "mítico" Jacques Mesrine, morto numa ação policial em 1979, após anos de buscas, fugas espetaculares, disfarces, amores, roubos e um rastro de violência que passou pelo país natal, Canadá, Estados Unidos, Espanha e Venezuela.

Nesse primeiro - de dois filmes dirigidos por Jean François-Richet (do remake de Assalto ao 13º DP) - é contada a origem, os primeiros crimes e o auge da "bandidagem" do personagem. O roteiro é baseado no livro do próprio Mesrine, intitulado "L'Instinct de Mort", adaptado pelo próprio diretor e Abdel Raouf Dafri.


Na verdade, Inimigo Público é mais do que um cine-biografia tradicional, mas um filme de gangster americano tradicional emoldurado por essa história. Muito de Brian de Palma, Martin Scorsese de os Bons Companheiros, John Frankenheimer e até Steven Spielberg de Munique podem ser notados como influencia para a construção do filme de Richet, que também volta a apresentar características de seu trabalho americano - o já citado Assalto - como cortes secos, movimentação de câmera sutil, muitos planos diferentes da mesma situação (alguns até mostrados no filme), um "olho" muito bom para a construção de seqüência de ação e uma excelente noção do espaço onde monta seus filmes. Em Assalto tínhamos um espaço fechado que o diretor usou muito bem para contar sua história. Aqui, Richet usa as diferentes características dos diversos cenários para construir seqüências inteligentes, que mesclam o “americanismo” típico desse tipo de obra, com a questão mais artística - na falta de palavra melhor - contida nos policiais franceses.

A narrativa segue os mesmos passos das boas biografias de criminosos, para o bem e para o mal. Existe a óbvia romantização do crime, e nesse ainda existe o exagero de mostrar diversas situações que "forçaram" Mesrine a seguir o caminho da bandidagem. Seja uma demissão após sua primeira prisão, um contato criminoso durante um trabalho numa obra ou um rico de cadeiras de roda que se invoca com a companheira do personagem. Richet, e seu roteiro, dizem que: esse homem tentou, mas a vida o forçou, ou melhor, apresentou melhores condições de sobreviver indo nesse caminho. Um simplismo exagerado, que os grandes filmes sobre crime evitam. Em Os Bons Companheiros por exemplo, por mais que o crime seja atraente e desejável para quem assiste, Scorsese jamais tenta amenizar a condição daqueles homens. São bandidos, caras ruins, pessoas que você não gostaria de dever favores ou mesmo cultivar amizades.

Richet prefere mostrar seu bandido, como um produto do meio, alguém que foi forjado nas ruas e na necessidade. As motivações para isso - a guerra na Argélia e o desprezo a submissão de seu pai - não funcionam, e nos dão a impressão nítida de que a biografia foi editada por Mesrine, para que ele aparecesse "bem na fita".


Richet assume essa condição, quando antes de qualquer cena, apresenta um texto na tela onde diz que o filme não se trata de uma biografia literal pois resumir a vida de alguém num filme é impossível - o que concordo - e que alguns eventos são fictícios. Diante da pluralidade de eventos, o espectador se pergunta aonde está o fictício e onde está o real. Tudo se mistura, e isso não é um demérito, já que a coesão da narrativa, por mais que a motivação do personagem seja muito questionável, é visível. Os eventos se amarram e seguem uma coerência do que quer ser dito.

O problema é que na ânsia de mostrar muito, os 113 minutos parecem pouco para a pujança de informações e eventos. Talvez um pouco mais de "tesoura” na edição ajudasse o ritmo do filme, que cambaleia na metade final.

Existem alguns grandes momentos, em especial nas seqüências de ação, como a sensacional - e quase irreal - fuga de Mesrine da cadeia. Uma mistura de Um Sonho de Liberdade, com os gadgets de Onze Homens e um Segredo com o "fator furtivo" dos games da série Metal Gear. Um colosso de seqüência, que prende o espectador na cadeira, roendo as unhas no aguardo da conclusão da cena.


Méritos não só a Richet, mas ao editor Serve Schneid, que montou todas as seqüências com grande competência, fugindo do "piscou perdeu", mas ainda sim com cortes o suficiente para que o diretor pudesse manter o ritmo acelerado de seu filme. Robert Gantz, o fotografo, também merece uma fatia generosa do bolo. Excelente noção de posicionamento de câmera, alguns bastante artísticos - a cena de Cassel nu na cadeia é brilhante - mas sempre de acordo com a proposta do filme. Câmera na mão, muitos ângulos diferentes e acertando no tom das passagens de tempo, apesar de não ter havido preocupação de iluminar cada período de forma diferente, dando uma sensação de fluidez - é verdade - mas causando estranheza para quem "perde" a legenda mostrando a passagem de tempo da primeira parte - anos 50 - para a segunda - início dos 60.

Cassel parece muito à vontade no papel de Mesrine. Abusando do gestual e da expressão corporal para compor a máquina criminosa, mas derrapando ao não apresentar mudanças em seu personagem com a passagem de tempo. Cassel preferiu - e pode ter sido orientado pelo diretor - manter Mesrine inconseqüente por quase a totalidade do filme. A emoção mais exacerbada que permeia o filme todo, ajuda essa constatação. Mesrine parece um garoto mimado berrando com todos de que a bola é sua. Nem mesmo o apelo "Robin Hood" ou anti-herói é bem explorado. Novamente, parece que Mesrine - espiritualmente - "abençoou" o projeto, editando secretamente tudo que pudesse mudar a imagem de máquina do crime.


Quem está muito bem é Gerard Depardieu, num papel muito diferente do que o grande público está habituado a ver. Um velho gângster, uma espécie de mentor do personagem de Cassel. Mesmo não tendo tanto tempo assim de tela, consegue sair-se bem no que lhe foi pedido. Demonstrar ser a "asa negra", aquele que põe Mesrine no caminho sem volta da ruína. Notem que seu personagem sempre é acompanhado de algum detalhe em preto no quadro. Ou é sua roupa, ou óculos escuros ou a iluminação noturna que preenche a tela de sombras. Funciona apesar de ser batido.

Tratando-se de uma parte um, o filme tenta ser uma introdução e um aprofundamento das características do personagem. Talvez funcione melhor numa sessão dupla com o segundo. Sozinho, analisado como tal, é falho na condução dos personagens. Faltou tempo para seu personagem crescer emocionalmente como deveria. Se Richet guardou tudo para o segundo filme, falhou, pois enfraqueceu sua primeira "hora" com uma sucessão de cenas de ação - boas é verdade - e esqueceu do homem por trás do mito.



terça-feira, 27 de julho de 2010

Anvil: The Story of Anvil
(Anvil: The Story of Anvil, 2008)
Documentário - 80 min.

Direção: Sacha Gervasi

Se existe alguém que merecia reclamar com todas as forças que deveria ter sido incluído na festa do Oscar desse ano, esse alguém é Sacha Gervasi. O homem por trás da força de natureza chamada Anvil: The Story of Anvil. Um dos documentários mais emocionantes e cruéis sobre o show business e os reflexos que essa vida tem sobre os que nele militam.

Gervasi aponta suas câmeras para a banda de thrash metal canadense Anvil, uma das mais importantes na criação do estilo e influência para muitos artistas e bandas hoje consagradas, como o próprio documentário mostra em sua abertura. Por lá desfilam Scott Ian (do Anthrax), Lemmy Kilminster (Motorhead), Lars Ulrich (Metallica), Slash (ex- Guns'n'Roses e Velvet Revolver), Tom Araya (Slayer) entre outros. Lendas falando sobre como a banda de Rob Reinner e Lips os influenciou e os fez repensar o som que fazia a época.


O contraste que o filme propõe a seguir é "chocante", principalmente para aqueles que ainda acham que pelo fato da pessoa estar envolvida com arte em algum aspecto, ela é "diferente" ou "especial". Muita gente ainda acha que o fato de lidar com alguma expressão artística faz do cidadão um bon vivant, alguém que vive a vida na "flauta". Anvil conta, a partir da história da banda, a história de diversos de nós (esse que escreve inclusive) que lidam com a cultura pelo amor. Amor por lidar com alguma coisa que as transfira para longe da realidade patética da nossa sociedade bi-dimensional e castrada, muitas vezes - na maioria delas - sem receber os méritos devidos ao esforço gasto.

No caso do Anvil, a situação é a seguinte: Lips trabalha como motorista num serviço de Buffet para crianças de escolas públicas canadenses e Robb é um pedreiro. Conseguem imaginar profissões mais dicotômicas para artistas? Talvez se um deles fosse cobaia em experimentos científicos, ou algo do tipo, mas a questão levantada aqui é a que ponto o homem consegue se manter otimista e crente em seu sonho, mesmo quando todas as portas a sua frente parecem lacradas.


Lips mostra-se otimista e lutador. Reinner é a âncora, aquele que trás a terra o amigo - de mais de trinta anos - e o coloca dentro da realidade que vive. Mas ambos amam com todas as forças o que fazem.

Gervasi começa seu documentário apostando na síndrome da montanha-russa (que diz: tudo que atinge o auge, tende a cair de forma vertiginosa) para contar - e isso é raro num documentário - uma história, com arcos dramáticos durante a filmagem.

Os arcos envolvem uma tour bizarra pela Europa, onde de grandes festivais (como o Sweden Rock Fest) a banda passa a enfrentar problemas estranhos e patéticos, como uma discussão acalorada com um promotor tcheco, o descontrole da agente italiana da banda, brigas entre membros da banda, sucessivos atrasos entre outros. Para quem tem contato com bandas underground sabe que a vida real é assim mesmo, e que uma ínfima parcela consegue se manter apenas com o que faz. A mesma realidade pode ser encontrada no futebol, por exemplo, que também sofre com a generalização. Nem todos os músicos, escritores, pintores e afins são ricos e vivem de arte. Muitos precisam da arte, como o advogado precisa de clientes e o engenheiro de prédios para construir. Não é só prazer e diversão, mas trabalho, e sério.


O mais bonito nisso tudo é como Lips - o mais otimista dos otimistas, digamos assim - consegue encontrar alegria em quase tudo. Durante o festival sueco ele parece uma criança pequena numa loja de doces, tal seu encantamento ao encontrar alguns de seus ídolos, como Michael Schenker (ex-Scorpions e UFO), Robbo Robertson (Motorhead), J J French (Twisted Sister) e Tommy Aldridge (ex- Whistesnake, Ozzy entre outros).

Não bastasse a tour estranhíssima, Gervasi ainda mostra o drama da banda para conseguir gravar um novo álbum. Sem dinheiro, tendo de recorrer aos familiares para apoiarem seus sonhos, é emocionante e honesto a cada frame a disposição desses homens na tentativa de conseguirem atingir o máximo. A partir daí o documentário aborda as dificuldades e a relação da banda com aqueles que os amam, mas que temem pela realização de tais sonhos.

Gervasi ainda guarda algumas surpresas inteligentes na manga e arma uma apoteose final grandiosa e digna de tirar lágrimas dos olhos dos mais sensíveis.


Muitos podem criticar o "realismo" de algumas imagens, em especial as discussões acaloradas, minando o grau de mundo real visto ali. Mas, honestamente, mesmo que cada frame fosse montado e uma tremenda mentira, a história dessa banda e desses homens é um tratado sobre amizade, dedicação a sua paixão, fé e esperança em seus sonhos.

Uma mensagem linda e atemporal.




segunda-feira, 26 de julho de 2010

Peppermint Candy
(Bakha satang, 1999)
Drama - 130 min.

Direção: Chang-dong Lee
Roteiro: Chang-dong Lee

Com: Kyung-gu Sol e Yeo-jin Kim

Um homem surge na beirada de um rio, vestindo um terno cinzento bem cortado. Ele caminha em direção a um grupo que faz um piquenique. Descobrimos então que aquele homem é Yong-Ho e que aquelas pessoas comemoravam os vinte anos da última reunião do grupo que pertenciam. Por uma coincidência - ou não - Yong-Ho também fazia parte daquele grupo. Yong-Ho aparenta instabilidade e embriaguez. No momento de maior insanidade, o homem parte para a linha do trem e lá aguarda até ser atropelado.

Esses são os primeiros cinco minutos do filme sul-coreano Peppermint Candy, do diretor e roteirista Chang-dong Lee (o mesmo de Oasis) que em flashbacks poéticos e com muita sensibilidade busca contar a história de vida desse homem, e o que o levou a essa decisão extrema.

Ao mesmo tempo, o diretor/roteirista insere o personagem durante diversos acontecimentos importantes na vida de seu país e mostra como a história foi moldando o caráter desse homem. Ao final da obra, a conclusão mais clara que podemos chegar é que Chang dong-Lee quis contar a história de uma vida que murcha ou apodrece ao entrar em contato com a realidade dolorosa do mundo a seu redor. No caso, a história da Coréia do Sul e como os diversos eventos políticos e sociais que o país passou influenciaram o homem e seu destino.


Quando o filme começa Yong-Ho é um homem triste e infeliz que aparece sendo seguidamente "pisado" pelo seu ambiente e sem saber como reagir aos problemas que enfrenta.

Chang-dong Lee mostra a passagem do tempo pelas inserções poéticas do trilho do trem sempre seguindo rumo ao desconhecido, enquanto tudo ao seu redor é mostrado indo para trás. É como se estivéssemos dentro de um túnel, onde o diretor pretende mostrar - poeticamente - que o tempo transformou-o no que ele é hoje. Gaspar Noé, com muito mais agressividade, tentou o mesmo em Irreversível, por exemplo. Contar uma história do fim para o começo tentando apresentar motivações para os atos de seus personagens. No caso do filme de Noé, a passagem de tempo era fluida, no caso de Peppermint ela acontece com a inserção de vinhetas com título e data indicando o que o espectador verá.

Não são todas que funcionam bem, é verdade. Em especial, as duas primeiras soam lentas e muito arrastadas em seu ritmo, porém a história de Yong-Ho é interessante a ponto de nem essa sonolência narrativa impedir que o espectador fique interessado em saber os motivos que o levaram ao suicídio.


E durante esse caminho é que vamos descobrindo e relacionando o que vemos a realidade. Desde o crash dos países asiáticos no final do século XX, passando pelo crescimento violento da economia do país na metade dos anos noventa, a ditadura do general Park Chung-hee nos anos setenta, o período de instabilidade política dos anos 80, a revolta dos estudantes em 1987 - brilhantemente retratada no melhor dos flashbacks. Elementos narrativos que influenciariam qualquer um de nós, e que Chang-dong Lee gosta de mostrar, como se ele quisesse mostrar o que um "cara comum" sofreria - em termos de transformações, quanto a seus gostos, sonhos, ideais e personalidade - se tivesse envolvido em tantos eventos.

Ao mesmo tempo, Chang-dong Lee usa e abusa da poesia visual que é característica dos filmes asiáticos para dar essas respostas, que nunca vem de forma mecanizada mas em forma de beleza e compreensão. Os silêncios e a trilha sonora auxiliam o diretor a conseguir esse efeito.


O diretor demonstra um cuidado especial com a fotografia, que não surge gratuita, nem pedante. Os elementos mostrados em quadro são elementos da narração, e os personagens que cruzam o filme vão ser revisitados com importância - a maioria - no futuro/passado. Destaque para a seqüência no início dos anos noventa que se interliga diretamente pela frase "a vida é bonita" com elementos cruéis no final dos anos oitenta vividos pelo protagonista.

E não existe melhor forma para encerrar sua tour pela transformação humana, do que o final elíptico e complexo e cheio de interpretações posteriores que ele nos dá. Além da óbvia sensação de nostalgia e de pena que sentimos pelos personagens, as coisas ditas e mostradas fazem o espectador pensar em diversas possibilidades ainda mais se as relacionamos a seqüência inicial.

Infelizmente Peppermint Candy - título inglês interessante - não vai agradar a todos os públicos. Além da história que funciona como pano de fundo não ter a universalidade que as produções mainstrem "pedem", a condução é pausada e o silêncio é valorizado, mesmo durante as falas dos personagens. As palavras ditas têm um peso menor do que a compreensão que os interlocutores têm da conversa, as imagens dos rostos e as ações que surgem a partir dos diálogos. Se junta a isso o fato do filme ser recheado de inserções musicais dos personagens, que cantam em bares, karaokês, em volta de fogueiras, em família e afins, o que causa mais estranheza a quem não está acostumado ao cinema oriental. E finalmente seu protagonista.


O ator Kyung-gu Sol retratou Yong Ho como um homem que vai sendo fracionado pelas situações que enfrenta. Não é difícil que o espectador desgoste dele, ou em determinado ponto, o deteste. Geralmente o público não consegue "entrar" na história, quando seu protagonista - e elo entre aquela realidade apresentada e o espectador - não inspira admiração, carinho, respeito, amor ou ódio. Yong Ho inspira pena e sua vida tola e cheia de falhas é o maior trunfo do filme. Ao usar um homem partido e morto - tanto física quanto espiritualmente - o diretor teve liberdade suficiente para explorar cada espaço da mente desse homem, compondo os motivos para que o público tenha essa sensação de desgosto por seu "guia". Proposital é verdade, mas para o público ocidental, acostumado com protagonistas vibrantes e que transformam a narrativa em uma jornada, acompanhar esse homem fraco é complicado. Nossa percepção é diferente - por razões culturais óbvias - da coreana, ou mesmo asiática.

Isso se reflete em outras manifestações culturais, que não são bem aceitas pelo grande público, entrando ai filmes de arte japoneses (Ozu, Oshima, Mizoguchi, Teshigahara entre muitos outros), a cultura do mangá e do anime (de mestres como Tesuka, Miyazaki, Oshii, Otomo entre outros), do tokusatsu, da música produzida por lá (seja o k-pop ou o j-pop) e mesmo quando grandes artistas conseguem reconhecimento, como Bruce Lee, Akira Kurosawa e o já citado Hayao Miyazaki, somente suas obras "ocidentalizadas" são conhecidas por aqui.


Por isso, além do filme de dong-Lee não ser de fácil compreensão, Peppermint Candy é mais uma daquelas jóias do cinema que ficam escondidas por ai. Quando, e se, tiver acesso, aproveite a sensibilidade desse grande realizador.

 





domingo, 25 de julho de 2010

Predadores
(Predators, 2010)
Ação/Sci Fi - 107 min.

Direção: Nimrod Antal
Roteiro: Alex Litvak e Michael Finch

Com: Adrien Brody, Topher Grace, Alice Braga, Laurence Fishburne e Danny Trejo

Em 1987, o cinema de ação estava caminhando ao auge. Astros como Schwarzenegger, Sylvester Stallone e Dolph Lundgren estavam no centro do mercado dos filmes blockbuster típicos da época. Após o boom dos blockbusters (que hoje são o carro-chefe dos estúdios e com orçamentos exorbitantes), chegaram as produções mais baratas do cinema, principalmente envolvendo heróis de guerra em conflito com ameaças ao espírito americano (sendo elas vietnamitas, como em Comando para Matar ou alienígenas, como Predador). Após Rambo consagrar Stallone, Schwarzenegger se consagrava com Predador, interessante suspense de ficção-científica, que colocava um time de super mercenários contra uma figura em comum, o Predador, numa floresta na Guatemala. Com o sucesso do filme, vários outros o copiaram nessa fórmula de "carnificina viva", como Doom, Resident Evil e até o derivado Alien vs Predador. Mesmo com Predador sendo um filme original até hoje, apesar de sua previsibilidade de roteiro, o gênero dos action-guys não teve um destino tão generoso, sendo hoje encontrado em apenas produções de orçamento ridículo e lançadas direto em DVD (como os filmes de Wesley Snipes e Steven Seagal).

Em Predador, o diretor John McTiernen esbanjou todo o estilo que tinha e ainda se aproveitou de todos os clichês de ação que tinham (herói escondido na lama virou um clássico) pra criar um filme que marcou época por explicitar a forma irônica de cinema de ação, a que se assume descartável. E ainda criou um invocado personagem icônico. Agora, o conceituado produtor Robert Rodriguez trouxe o Predador de volta aos cinemas, depois de tentativas lastimáveis como Alien vs Predador 1 e 2. E com bastante estilo, diga-se de passagem.


A trama, parecidíssima com o longa de 87, segue Royce (Adrien Brody), um mercenário que cai de pára-quedas em um lugar desconhecido e armado. Enquanto vasculha a selva em busca de respostas, Royce vê que vários outros mercenários também estão na ilha e todos, quando se juntam, tentam achar respostas do porquê de eles estarem ali, enquanto enfrentam uma perigosa raça ali presente: a dos Predadores, que estão em guerra com seus semelhantes e ainda arrumam tempo pra fazer sua "temporada de caça". Aos humanos.

O roteiro, escrito pela dupla Michael Finch e Alex Litvak, é vencedor desde o início em constatar que o icônico Predador tem que voltar ás origens pra encontrar a glória novamente. Enquanto as sequências e crossovers com o personagem flertavam com novos horizontes (muito ruins e que tiravam a identidade do personagem), Predadores resgata a trama pra que o século 21 conheça o espírito de caça do filme de 87. Aqui, o roteiro dá novos toques á franquia (a ausência de um Scwarzenegger, a quantidade enorme de Predadores, a inversão de papéis de caça e caçador) sem se esquecer do passado, trazendo uma continuação-reboot que funciona bem demais. E as falas caricatas fazem parte do pacote. Quando um preocupado Danny Trejo exclama "This is Hell" ou quando Adrien Brody exclama a já famosa frase do trailer "Isso é uma reserva de caça e nós somos a caça", constata-se que Predadores não se leva mesmo a sério, criando um produto que se importa em entreter e nada mais.


Reforçando o lado caricatual, temos a construção de personagens e situações. Temos o homem que "trabalha melhor sozinho" mas que vira líder, o engraçadinho, o asiático, o covarde e até a heroína bad-ass (algo novo e excelente pra franquia). Nas situações, temos o duelo no fogo, o herói escondido na lama (outra homenagem explícita ao primeiro), o homem que conseguiu sobreviver naquele lugar, responsável por explicar o que está acontecendo aos novos habitantes e etc.

Isso poderia soar um tanto ridículo e até mesmo trash, mas Rodriguez e os roteiristas dosam de uma forma em que o filme homenageie o original e não saia datado. Pras platéias de multiplexes, a ação também é bem escrita e tem passagens ótimas, como a fuga na água dos mercenários. E o melhor: tendo a completa ciência de que aquilo é um filme de ação e terror. Mesmo esse sendo o primeiro filme e sendo responsável pela criação de um novo mundo, Predadores se sai bem em recolocar a franquia nos trilhos e ainda propor novas sequências áquele ambiente bem construído.


Já que não cuidaria da direção, Rodriguez deveria chamar um diretor que compartilhasse de seu amor ao filme original. E a escolha de Nimród Antal não poderia ter sido melhor. O diretor, responsável por filmes melhores e de locadoras, como Assalto ao Carro Blindado e Temos Vagas, já mostrava um pouco de talento nesses filmes. Porém, a liberdade criativa, sem pressão de estúdio, que Antal teve aqui favoreceu muito á sua direção, competente e ágil. Mesmo sem cortar um milhão de vezes, Antal impõe agilidade na direção e ainda organiza planos interessantes, como na já citada fuga dos mercenários na água. Fora isso, sua direção de atores e diálogos é boa, sem fazer grandes takes, mas enquadrando bem os atores. Além disso, extrai boas atuações de todos os presentes.

A edição de Dan Zimmerman compreende a direção de Antal e corta com calma, dando a fluência necessária pras cenas. A fotografia de Gyula Pados também é interessante, pois cria um clima como o do Predador original, mas com tons mais escuros e que dão a estranheza necessária ao planeta desconhecido. E a homenagem se intensifica na gloriosa trilha de um John Debney influenciado por Alan Silvestri. Usando uma trilha extremamente oitentista e com instrumentos tradicionais (harpas, trompetes), Debney não copia a trilha do original, mas capta o modo como ela foi feita e a reinventa de forma interessante.



Porém, é nas atuações que o filme se distancia mais do original. Enquanto no longínquo 87 tínhamos um halterofilista carismático e brucutu de ação e um time de super mercenários (que de super não tinham nada, todos apenas servem de corpos pra carnificina), aqui temos um Adrien Brody inspirado comandando um time mais humano, sem deixar a caricatura de lado. Brody é mais imprevisível que Schwarzenegger, pois tem um biotipo bem mais contido e uma vulnerabilidade maior. Quem tem mais chance de morrer? Um franzino pianista ou um nato exterminador? Logo, Brody tem liberdade de ser um anti-herói mais real e menos ameaçador, sem deixar as frases icônicas de efeito de lado. Alice Braga, quase uma co-protagonista, também atua muito bem e dando o frescor novo feminino a franquia, sem ser o mero par romântico do herói. Das outras atuações, nada além do bom, com exceção do instável Topher Grace, que faz o papel do médico covarde que tem um final que exigia alguma competência artística do ator, que infelizmente carece dela.

Logo, há de se admirar (mas não muito) esse Predadores. Além de trazer a iniciativa oitentista de ação barata, algo que Rodriguez é mestre, o filme serve de diversão como é sempre bom ver no cinema. E traz um icônico personagem de volta ao reinado que o pertence, após os crossovers anteriores com o Alien de Ridley Scott. Sem dúvida, um deleite aos olhos dos fãs originais (a sequência de citação aos eventos na Guatemala é sensacional) e um gás a um mundo tão interessante (a guerra civil dos Predadores diferentes pode ser explorada num confirmado segundo filme). É diversão descerebrada? Sim. Mas foi isso que ela nos propôs a dar. E é incrível e brilhante ver como Rodriguez usou 40 Milhões num filme de criação de mundo e com florestas, enquanto outros cineastas gastam 237 Milhões em mesmos cenários, mas em CGI. Um brinde ao saudosista Rodriguez, que traz os cenários reais e a maquiagem de volta.


sábado, 24 de julho de 2010


Left Bank
(Linkeroever, 2008)
Suspense/Terror - 102 min.

Direção: Pieter Van Hees
Roteiro: Christophe Dirickx, Dimitri Karakatsanis e Pieter Van Hees

Com: Eline Kuppens

Marie é uma jovem atleta com uma futura carreira esportiva brilhante que ao sofrer um sangramento violento, tem seu sonho de disputar o Campeonato Europeu de Atletismo interrompido. Ao mesmo tempo, ela conhece Bobby, um arqueiro que treina no mesmo clube que ela. A magia do cinema prega, e o diretor Pieter Van Hees comunga com ela, e obviamente Marie e Bobby começam a sair.

Para se recuperar de seu problema - que descobre-se tem a ver com seu sistema imunológico -  ela se muda para o prédio de Bobby, deixando sua mãe sozinha na casa/mercadinho que a solitária mulher cuida sozinha desde que se separou.

O prédio, e mais especificamente o apartamento de Bobby é recheado de mistérios já que uma mulher que ali morava sumiu misteriosamente há quase um ano. Com o sumiço da mulher, Bobby se mudou para o lugar que é administrado por sua avó.



Marie não é uma personagem tradicional dos filmes de terror (sim, o filme é um terror europeu "clássico") pois suas angústias e infelicidade não são esmiuçadas. Van Hees apenas diz ao espectador e demonstra durante a narrativa os motivos - alguns bem ruins - para toda a angústia da personagem. A interpretação da quase novata Eline Kuppens é razoável, a menina não tentou inventar demais - mesmo porque o texto não causa impacto - e saiu-se bem. Os demais coadjuvantes são fracos ou tem pouco a dizer, resultado da opção de Van Hees em centralizar tudo em cima dos ombros de sua protagonista.

Left Bank - título inglês desse filme belga, já que o filme não saiu por aqui - tenta ser uma mistura de suspense psicológico com terror europeu de bruxaria. Ao abordar Marie como o elo principal do filme com o espectador, Van Hees brinca com a sanidade da personagem, que ao adentrar no mundo misterioso daquele prédio começa a questionar tudo - como em todo filme de terror - e a sentir-se deslocada. Em determinado momento a personagem não sabe exatamente o que está procurando ou mesmo se existe algo a ser descoberto.

O terror europeu de bruxaria e afins é representado por toda a questão mitológica que vai vindo à tona por meio do personagem de Dirk, o namorado da mulher que sumira. Ele serve como "professor" da personagem e do público tentando dar base mitológica ao que o filme apresenta. Num paralelo, o filme emula Bebê de Rosemary - na questão psicológica e por usar uma mulher como condutora da trama - e The Wickerman - pelo clima de mistério em que parece que todos sabem de alguma coisa e não querem contar.



É claro que Left Bank não pode ser comparado ao impacto, e mesmo a qualidade das duas obras que citei, já apresenta alguns problemas estruturais sérios. A inserção - forçada - de um personagem professoral é uma delas, já que é um recurso canhestro que o roteirista (no caso três: Christophe Diricx, Dimitri Karakatsanis e o próprio diretor) usa para tentar explicar pelo viés do texto falado o que sua própria história não é capaz de mostrar ao público. Outro erro cabal é a "aparição" dos vizinhos gentis que apresentam a personagem elementos sobre a história de forma - novamente - professoral, e nesse caso juvenil. Sem me estender quanto ao enredo e correndo riscos de dar spoilers, digo que num determinado ponto da história, surge na porta do apartamento de Bobby uma vizinha, com a estapafúrdia justificativa de "fiz suco de fruta a mais e não quis jogar fora". Marie a recebe e a partir daí, ela apresenta uma caixa deixada pela vizinha anterior (aquela que sumiu) contendo fotos e recortes que ilustram uma espécie de investigação que ela vinha fazendo sobre o prédio e seus mistérios antes de sumir.

É um recurso válido claro, mas conduzido de forma muito abrupta e infeliz. Soa exagerado e forçado, ainda mais quando os atores não conseguem exprimir nada na cena. É tudo artificial e plástico demais.



Outro aspecto que a narrativa aborda é a sexualidade de sua personagem, e por estarmos no mundo dos filmes europeus, a censura é muito mais branda. Caso Left Bank vier a ser "remekado" - o que duvido muito - com certeza a liberdade sexual da personagem será mutilada. Não vejo como demérito nem como acréscimo, já que não existe gratuidade nas imagens, porém se elas não aparecessem não faria falta, já que a intenção das cenas poderiam ser mostradas de outra forma.

Van Hees erra em um quesito técnico básico, inserir imagens desconexas sem o menor sentido apenas com a intenção de causar choque. Propositalmente ainda por cima. O efeito é causado, sem dúvida, mas soa gratuito e banal. Talvez na ânsia de dar maiores nuances a sua obra, o diretor tenha errado a mão e exagerado nas camadas de significado.

Porém, e aqui cabe um elogio, Van Hees não cai no clichê óbvio de emocionar seu público por meio da trilha sonora. Ela passa quase despercebida porque seu diretor aposta suas fichas nas imagens que conta. É um filme de silêncios e de eventuais sons, que são bem funcionais.



A edição de Nico Leunen apesar de ser clássica durante quase todo o filme - fugindo apenas nas cenas em que vemos uma festa, onde os recursos videoclipticos são usados a exaustão - também ajuda a história. A tensão das imagens é intensificada com a edição, em especial numa seqüência de corrida pela floresta e na seqüência final.

Aliás a seqüência final é bizarra, na falta de um termo melhor. Liga-se diretamente a algumas falas que os personagens trocaram durante o início do filme - referenciado durante toda a projeção - e tenta fazer o público olhar para toda aquela situação de maneira diferente. A idéia foi bem realizada, em termos técnicos, mas narrativamente pareceu muito artificial e até óbvia, já que Van Hees não fez questão de esconder a intenções dos personagens durante o filme. A questão que precisava ser respondida era: seria isso verdade? Van Hees disse sim. O público não precisa concordar com ele e comprar sua idéia.

Left Bank não chega a ser ruim como filme de terror, mas ao querer dizer muito, soou fajuto e não conseguiu ser mais do que uma diversão passageira, que causa alguns - poucos - sustos.