domingo, 27 de novembro de 2011

Dawson Ilha 10
(Dawson Isla 10, 2009)
Drama - 117 min.

Direção: Miguel Littin
Roteiro: Miguel Littin e Segio Bitar

Com: Sergio Allard, Cristián de la Fuente e Luis Dubó

Ao início da entrevista, o militar está tenso. Várias perguntas são direcionadas para ele, que tem um linguajar limitado e evidentemente preso. Tudo isso é registrado numa contrastada fotografia em preto-e-branco, com uma inquieta câmera que dá uma aura documental para a cena. Quando uma pergunta é direcionada a um habitante da tal Ilha Dawson do título, a retórica parece mais elaborada, mesmo que a pessoa fale pouco. E a câmera, se espremendo entre diversos jornalistas, acaba glamourizando o documento. No fundo, é sobre isso que se trata Dawson - Ilha 10, drama representante do Chile no Oscar 2010. Uma visão imparcial, ainda que fiel, aos fatos ali apresentados.

Os agressivos violinos de Juan Cristóbal Meza ditam bem a atmosfera pesada que o diretor Miguel Littín tenta propor desde o início. Visivelmente apaixonado pelo evento que ali retrata (o que torna o filme mais nacionalista do que deveria), o chileno tenta causar o desconforto em diversos momentos, com o intuito de colocar o espectador na mesma situação dos personagens. A metástase desse jogo ocorre nos takes em primeira pessoa na chegada dos prisioneiros na ilha de Dawson. Littín assume o ponto de vista de Sergio Bitar, o Ilha 10, que foi o autor do livro que originou o filme, o que acaba sendo um tanto previsível, ainda que eficaz.

O problema é que, com o tempo, o truque cansa. Tentando ao máximo entrar na mesma condição dos prisioneiros, Littín pesa a mão e soa repetitivo. A cada tratamento animalesco que um militar concede ao seu subalterno, o filme mostra um revolucionário debatendo sobre algum assunto relevante sobre o país. Isso seria bom para ambientar e delinear o caráter dos dois lados, se não fosse martelado por toda a projeção.


O foco nos detalhes, para o bem e para o mal, são fractais ao filmes. A morte de ícones como Pablo Neruda são detalhadas com pesar, as memórias do 11 de Setembro (dia do golpe que derrubou Allende no Chile) são lembradas com melancolia. As imagens de arquivo de Salvador Allende são mostradas em câmera lenta, com pesar, com uma dor patriótica que fica muito bonita em tela, ainda que torne o projeto restrito ao povo chileno. Pela riqueza de imagens e discussões ali retratadas, Dawson é eficaz. Porém, como obra fechada, acaba tendo diversos problemas, que vão do desenvolvimento de personagens até a estrutura que a trama adota.

Semelhante a filmes como Ensaio sobre a Cegueira, Dawson procura contar os detalhes de um confinamento desesperador. Mas se Ensaio tinha várias vertentes filosóficas, bons personagens e arcos narrativos, o filme chileno se restringe apenas a contar os fatos, o que o torna bem fiel historicamente, mas opaco como obra de arte. Visto por esse lado, é até um milagre que o filme passe seus 100 minutos sem perda de ritmo ou foco, já que pouca coisa parece acontecer em tela.

É comum a filmes históricos serem bem ideológicos, mas a atmosfera dos anos 70 é algo que compensa a falta de significado do projeto. Passagens ótimas como a canção dos países americanos, que é interrompida quando Cuba é citada, valem a visita. As conversas dos exilados no dormitório são sempre relevantes, ainda que previsíveis. O fato de o roteiro ter se baseado no livro de um desses presos acaba sendo explícito, já que tanto a carta narrada na abertura quanto os arroubos nacionalistas nos diálogos são, verídicos ou não, bem inocentes. Seria fácil condenar o filme por "vista grossa" no desenvolvimento dos liberais se liberais em essência não fossem tão parecidos. Não por acaso, o filme, ainda que tenha um protagonista, não opta pela exclusiva visão deste, preferindo investir no ensemble cast. Mas o que em teoria funciona, não tem o mesmo sucesso em tela. Littín não é o melhor dos roteiristas e muito menos o melhor dos diretores, então fica bem difícil de apresentar bem cada peça do quebra-cabeça.


O que nos leva a falta de apego emocional aos cidadãos dali. Ciente de que desenvolve mal seus personagens, o diretor investe na montagem ao reutilizar (dessa vez, em preto-e-branco) um take para relembrar-nos quem é tal personagem depois que este morre. Ainda assim, dilata sua narrativa com a construção da igreja afim de criar maiores laços com o arquiteto preso, o que gera também na humanização do militar. Não é de se espantar que seja complicado lembrar dos nomes de cada prisioneiro, já que a individualidade não dá as cartas aqui. Em suma, não sentimos pena por ninguém em Dawson; sentimos, sim, por todo mundo. Sendo um manifesto pró-passado comunista do país, o filme tem até bastante unidade em não privilegiar ninguém.

Ainda que soe leve na abordagem mesmo não querendo (nem os violinos nem os maus tratos foram suficientemente fortes para o apego que o diretor propôs), Littín tem certa competência. É didático em excesso ("Você teve um pesadelo!"), ideológico em excesso (as frases motivadoras escritas por "A"), mas conhece o necessário para uma boa abordagem visual. Empregando uma câmera tremida nas cenas dos presos, o diretor investe em ângulos observadores e estáticos ao mostrar os militares, o que dá uma boa ideia do contraste das situações sem soar forçado. Dirigindo bem seus atores, todos convincentes, Littín até perde as rédeas de seu filme com certa frequência, mas sempre as toma novamente quando o projeto corre perigo de se tornar enfadonho (como quando introduz as cenas dos presos com um oficial de alta patente, em um escritório).

Utilizando uma fotografia com retenção do prateado, a técnica do Bleach bypass realizada por Roger Deakins em 1984, o diretor (também o fotógrafo) torna sua película muito bonita visualmente, com uma direção de arte que assusta pela veracidade. Retratando com eficiência a atmosfera solitária e depressiva da ilha do título, o filme ainda é humanista suficiente para emocionar em algumas partes, como nas já citadas mortes dos ídolos dos presos e no contato com o habitante de uma cidade vizinha á ilha.


Mas o zelo com os presos e o patriotismo evidente acaba revelando outro truque de Littín. Certo de que o público não conhece os militares e o tratamento quase inumano que os mesmos exercem (contra os inimigos e contra si mesmos), o diretor e roteirista força a barra ao mostrar os carrascos. Enfocando em duas oportunidades as mãos juntas (para trás) de um militar, com o objetivo de estabelecer a personalidade metódica e ferrenha do mesmo, Littín constrói TODAS as interações militar-liberal com o maior conflito possível, justamente para vilanizar ao máximo todos os integrantes do exército. E até mesmo quando um militar fala com outro, o chefe manda ele pagar flexões, por puro exercício de poder. Obviamente, então, o único militar bonzinho tem que ser um alívio cômico. Se o tratamento militar não fosse tão unidimensional por natureza, seria até complicado acompanhar um produto tão crente em um reducionismo. Não se espante se você sair odiando a instituição de defesa armada do país após assistir Dawson.

Fechado e modesto em sua pretensão artística, Dawson não ofende e nem encanta, ficando em um meio termo exato, que encaixa o filme mais do que nunca na categoria "histórico". Se diferenciando apenas no amor exacerbado pela própria h(H)istória, Littín realiza um bom filme, fiel aos fatos, que só escapa da fidelidade quando um fato discutível se torna simples demais (na verdade, Allende se suicidou de maneira discutível, mas para o filme, não há dúvidas sobre o assassinato).

Não que os lados não estejam bem claros (é difícil ser a favor de Pinochet e seus militares), mas utilizar uma narrativa pobre para um discurso histórico tão seguro e centralizado não é a melhor solução. Mas há méritos nisso. Para o bem ou para o mal, limitar uma revolução nacional ao amor ao mocinho e ao ódio ao bandido é um feito notável.



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