sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cabeça a Prêmio
(Cabeça a Prêmio, 2009)
Thriller/Drama - 104 min.

Direção: Marco Ricca
Roteiro: Marco Ricca e Felipe Braga

Com: Fúlvio Stefanini, Alice Braga, Daniel Hendler, Eduardo Moscovis, Otávio Muller e Cássio Gabus Mendes


Filme de gangster feito no Brasil é tão difícil quanto filmes sobre futebol realizados no Canadá. São realidades que simplesmente não combinam, por mais que saibamos que a máfia (apesar de não ter esse nome por aqui) existe no Brasil. Leia-se máfia, todo e qualquer cartel responsável por alguma falcatrua, alguma ligeira contravenção, algum ato corrupto. Uma realidade nada comum por aqui, certo?

No entanto é difícil ver no cinema nacional os meandros dessa sociedade a parte. Fora arroubos esporádicos aqui e ali, organizações criminosas geralmente surgem de forma caricata na tela grande, como se não fossem pessoas que comandassem as ações de cada passo de uma organização, mas robôs irascíveis e sem nenhum traço de sentimento. Por outro lado, muitas vezes o cinema nacional cai na vala do "humanismo marginal" que tenta antropologicamente explicar os motivos para que o criminoso seja criminoso, culpando invariavelmente a sociedade.


Cabeça a Premio, no entanto, é um caso raro de filme que apresenta os humanos por trás da bandidagem sem no entanto transformá-los em vitimas de uma sociedade cruel que os força a seguir o caminho do "mal". A partir do micro-cosmo de uma família que mantém um negocio licito como fachada para práticas criminosas, o diretor (e ator) Marco Ricca fez aqui o seu "Poderoso Chefão". Longe de querer comparar as duas obras, mas sim suas estruturas já que ambos falam de famílias criminosas, ambos têm filhos que não se envolvem nos crimes dos pais, ambos tem agentes externos que modificam a realidade até então imaculada de suas vidas, ambos tem abutres infiltrados e ambos têm a noção de que o filho superará o pai, embora aqui isso fique para nossa imaginação.

O filme de Ricca no entanto tem uma camada a mais nessa salada. Apresenta a visão de quem põe a mão na massa, dos matadores contratados para dar cabo aos inimigos da "famiglia". Tal qual um filme de máfia de qualidade, Cabeça começa com uma excelente sequencia que marca a participação do lendário David Cardoso, que é sumariamente executado durante a transmissão de seu programa de rádio. Brilhantemente fotografado, deixando a câmera como um voyeur privilegiado da ação, distante o bastante para não ser "visto" mas próximo o suficiente para apreciar todo o quadro.


A história segue apresentando os personagens principais: Miro é o chefão. Um obeso homem beirando aos sessenta anos, mais que ainda tem força o suficiente para impor-se sobre sua família, agindo verdadeiramente como um membro da Cosa Nostra. Fúlvio Stefanini, em grande interpretação, vive dividido entre os negócios da família e a percepção de que está ficando velho, teme ser preso e ainda tem de conviver com uma filha "rebelde" e que não conhece seus verdadeiros negócios. Alice Braga vive Elaine, a filha de Miro, uma garota que abusa dos prazeres de uma boa vida, embora desconheça de onde venha o dinheiro que a sustenta. Essa situação começa a mudar quando ela começa a se envolver com o piloto Dênis (Daniel Hendler) um paraguaio que serve de transportador para o contrabando de Miro. Quando os dois se envolvem, decidem fugir do cabresto do mafioso, ao mesmo tempo em que são usados como estopim para um golpe engendrado pelo irmão de Miro, Abílio (Otávio Muller), um homem viscoso e sereno, que aproveita da situação para tomar o poder de seu irmão mais sentimental.

Cabeça a Prêmio não esquece de falar sobre o baixo clero, o mundo cruel e real dos matadores , aqui representados por Cássio Gabus Mendes e Eduardo Moscovis. Enquanto Gabus Mendes é o falastrão e insensível matador que não tem pudor em matar e se colocar em uma posição de anti-herói, enquanto Brito (Moscovis) é o sujeito silencioso que diz tudo o que precisa com o olhar. Sexualizado, viril e profundamente perdido, Brito usa de sua presença para tentar encontrar alguma espécie de ligação emocional com as pessoas a sua volta.


Quando as histórias convergem percebemos as semelhanças entre Elaine e Brito, duas pessoas que vagam pela vida sem saber exatamente para onde vão. Como andarilhos, vivem entre suas dúvidas, códigos de ética e uma dificuldade para se impor diante da vida. Quando Brito se impõe, dá a chance de Elaine se impor, o que culmina em um dos finais mais intensos do cinema nacional na última década. Ricca nos deixa pensar no que vai acontecer depois do filme acabar, um caso raro em um momento no cinema em que pensar dentro da sala de exibição parece uma tarefa cada vez mais difícil.

Ricca estreou com o pé direito. Fugiu do óbvio, construiu uma bela e tensa história, que usa do tédio e da falta de ação de seus personagens como mola para um estudo mais atento sobre o crime organizado visto de dentro, sem se ater aos prejulgamentos mais sensacionalistas.

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