Escritor Fantasma
(The Ghost Writer, 2010)Thriller/Drama - 128 min.
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Robert Harris e Roman Polanski
Com: Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Olivia Williams, Kim Catrall e Tom Wilkinson
Escritor Fantasma pretende ser muitas coisas. Podemos vê-lo como um belo exemplo de thriller de suspense, uma homenagem ao mestre Hitchcock (que usava o plot do homem inocente acusado injustamente) e uma forma de expulsar os demônios interiores de Polanski por meio da ligação óbvia entre sua história pessoal e a do primeiro ministro Adam Lang
Lang, assim como Polanski, é um homem assombrado por seu passado que tenta viver uma vida normal apesar dos inúmeros problemas que enfrenta. Em determinado ponto da história, o ministro fica em uma espécie de prisão domiciliar o que é uma óbvia referência ao fato do próprio diretor ter estado nessa situação durante a produção desse filme.
Se Polanski merece a punição não interessa nesse momento, mas ele usa seu personagem para fazer essa pergunta ao espectador ao mesmo tempo em que envolve todos os elementos numa atmosfera de tensão e mistério como um grande exemplar do gênero.
A trama básica fala desse "escritor fantasma" que é o responsável por escrever as memórias do ex primeiro ministro da Inglaterra (o já citado Adam Lang) em meio a acusações de tortura que podem levar Lang a prisão. Ao mesmo tempo, em que o escritor passa a ser perseguido e se vê envolvido numa trilha de mentiras, traições e dúvidas (como todo grande thriller).
Escritor Fantasma funciona deliciosamente bem por conseguir inserir seus personagens e situações de forma orgânica dentro dessa atmosfera de idas e vindas, plot twists e personagens nebulosos. Muito disso é mérito de Polanski que consegue transformar uma história, que nas mãos de um Ron Howard da vida, tinha tudo para ser insossa e sem a menor graça em um dos grandes exemplares do gênero no século vinte um.
Polanski está em cada frame do filme, usando e abusando de sua inesgotável capacidade de re-invenção artística e de estilo (notem as seqüências de caminhada na praia, o início do filme com o carro abandonado e a seqüência tensa e visceral que envolve o passar de um bilhete) e a capacidade de não confundir o espectador com as viradas da trama e sem usar recursos "idiotizantes". Ele trata seu espectador com inteligência e julga que quem assistir seu filme tem a capacidade necessária para compreender aquilo que ele quer.
Sem revelar muita coisa, Polanski ainda se referencia (com muita classe) ao usar o mesmo tipo de final que foi visto em Chinatown, o que deixa o espectador boquiaberto e faz com que o filme tenha aquele burburinho pós-sessão que sempre indica que a obra mexeu (de alguma forma) com quem vê.
Polanski ainda transforma seu filme americano - passado nessa ilha americana - num thriller com cheiro e gosto europeus. O diretor faz de cada cenário americano uma ode ao cinzento, ao nevoeiro e ao negativismo. Tudo é sombra, tudo é gélido e tudo é misterioso. Palmas efusivas ao fotografo Pawel Edelman (o mesmo de O Pianista e Ray) que conseguiu de forma sutil deixar o clima do filme mais propício a história narrada. O clima lúgubre das imagens auxilia de forma clara o texto de Robert Harris (baseado em seu próprio livro) e do próprio Polanski, que é quase perfeito. Talvez uma determinada seqüência num café pudesse ser um pouco mais lenta e a seqüência do avião de Lang pudesse ser mais "esticada", mas no geral as pontas soltas são amarradas e a suspensão de crença não precisa ser evocada, já que aqueles elementos e história não carecem de desprendimento da realidade do espectador.
Outro grande exemplo da caracterização dos cenários e fotografia é a casa de Lang, encravada nessa ilha silenciosa. Translúcida e moderna, cheia de quartos robustos, é a personificação de uma fortaleza que está alijada do contato externo, funcionando bem como uma prisão. Destaque para o design de produção de Albrecht Konrad e harmonizando com o clima de todo o filme, os figurinos sóbrios de Dinah Collin.
Parece "frescura" citar esses elementos num filme que não é de época ou mesmo que não dá grande atenção a eles, deixando-os a margem de primeiras interpretações, mas para mim é necessário jogar luz sobre eles para demonstrar como cada detalhe da produção foi pensado para amplificar a história contada e inserir de forma objetiva o cinéfilo naquela realidade. Uma vez que todos esses elementos funcionam, o espectador está apto a "comprar" aquela idéia.
Quem compra a idéia com grande prazer são os interpretes do filme. Impossível não começar citando Pierce Brosnan que constrói um de seus melhores personagens com sua visão do "proto-Tony Blair". Seguro de si, ao mesmo tempo em que demonstra o charme que já era marca registrada na cine-série 007, o ator inglês talvez tenha aqui seu grande momento nos últimos anos (rivalizando com a auto-paródia de O Grande Matador).
McGregor, um ator que dificilmente embarca em projetos furados, é ao mesmo tempo o elo de ligação entre o espectador e o filme, como funciona como narrador e objeto de estudo da produção. Apesar de Lang ser sempre colocado em primeiro plano quando é visto, é no escritor que as mudanças e a "jornada" terão impacto. Nesse intento McGregor se sai muito bem, e mantém a qualidade habitual vista em outros trabalhos do ator. Contido a principio, assim como seu personagem, o ator parece que se desprende da persona cinematográfica e adentra a mente desse homem que parece sempre estar procurando algo (física e metaforicamente). Alguém que parece não se adequar a realidade que vive e talvez por isso opte por ser um "fantasma".
Os coadjuvantes estão todos em grandes momentos. A bela Olivia Williams é o retrato da fúria contida e da depressão. Sua personagem, Ruth - a mulher de Adam - parece remoer seu passado e suas escolhas. Uma personagem intrigante e que após surgir como uma insuportável mulher mimada, vai revelando ser muito mais importante para Adam e para a narrativa. Kim Catrall, tendo chance de ser mais do que a fútil Samantha da série Sex & the City, é a rocha emocional de Lang, a rival pelo afeto para Ruth e a grande "roda" que faz as engrenagens da equipe do ministro funcionar. Fechando os coadjuvantes de peso, temos Tom Wilkinson, outro ator que dificilmente erra, que mesmo com pouco tempo de tela (e na verdade apenas uma cena relevante) desfila sua competência e consegue inserir no público o sentimento de dubiedade que seu personagem quer passar. Em nenhum momento duvidamos que aquele homem sabe mais do que diz, mas também não conseguimos dizer exatamente o que isso possa significar.
É uma pena então comprovar que Robert Pugh (que vive Rycart, uma espécie de antagonista de Lang) não consegue apresentar o mesmo trabalho de Wilkinson. Talvez por surgir em tela quando as peças do jogo já estão no tabuleiro, seu personagem é quase um narrador que surge para informar e sai de cena. Queria ver mais do envolvimento desse personagem e a repercussão disso.
Ainda sobre personagens, interessante notar o sumido Timothy Hutton e um quase irreconhecível James Belushi entre a "fauna" dos demais coadjuvantes.
Polanski demonstra com Escritor Fantasma que apesar de sua vida pessoal ser um prato cheio para todo tipo de análise continua sabendo como poucos (cada vez menos, infelizmente) saber contar uma bela história, entreter o espectador e ainda ter conteúdo para estimular uma discussão mais "cabeça". Predicados mais do que suficientes para fazer Escritor Fantasma um dos grandes filmes de 2010.
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