quinta-feira, 5 de abril de 2012

Xingu

Xingu
(Xingu, 2012)
Drama - 102 min.

Direção: Cao Hamburger
Roteiro: Helena Soarez, Cao Hamburger e Anna Muylaert

Com: João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat

É raro (pra não dizer inédito, mas aí é exigir demais da memória) vermos um épico nacional. Quando o cinema brasileiro tentou criar grandiosidade, esbarrou em problemas claros de produção, ou - com maior frequência - problemas financeiros. Para quem não se lembra, o cinema nacional tentou - sem muito sucesso - criar narrativas históricas que apelavam para essa agenda, culminando no até hoje inédito Chatô, que consumiu muito dinheiro, gerou processos, ameaças de prisão e um filme até hoje inédito.

Por isso, quando vemos na tela a opulência e a realização altamente profissional de Xingu é motivo sim para orgulho. Longe de afirmar que não fazemos bons trabalhos nas telas, mas é muito mais fácil realizarmos - por razões óbvias - filmes menores e que se destacam por boas ideias, historias humanas e que tem um apelo emocional mais claro, do que criarmos um filme opulento e cheio de locações externas e muitos figurantes, como é o caso dessa produção.

Xingu é o oposto disso. Seus méritos não são os "humanos", mas os frios e técnicos da pura realização cinematográfica. Solene em sua construção da narrativa dos irmãos Villas Boas e sua conquista da Amazônia, partindo da expedição Roncador-Xingu, com rumo ao desbravar da mata e o contato com índios até então desconhecidos para o homem branco. Filmado com grandiosidade, a aventura mostra todos os percalços dos irmãos Orlando, Leonardo e Cláudio em sua tentativa de conhecer os índios e atrasar o máximo possível, a assimilação dos povos indígenas pela cultura do homem branco. Segundo os irmãos, quanto mais "civilizado" o índio se tornar, menos índio ele será. Um pensamento que hoje é plenamente corroborado, mas que na época do filme - que começa no final de Segunda Guerra Mundial, passa pelo período pós-Getúlio, pelos "50 anos em 5" e culmina no gigantismo pregado pelos militares de primeira hora - era trocado pela ideia do progresso a qualquer preço.


A própria ideia da expedição não era a de conhecer a mata, mas de mapeá-la e plantar diversos campos de pouso e bases militares com função de segurar as fronteiras nacionais. São os Villas Boas - sujeitos estudados e que partem de São Paulo em busca de aventura, embora a motivação nunca fique clara de forma convincente - que decidem matreiramente incutir a ideia de que aqueles habitantes da floresta, além de serem os reais donos daquelas terras, mereciam ser protegidos da influência externa do homem branco. Uma ideia ousada e que deu origem ao Parque Nacional do Xingu, anos após o início da história.

O filme de Cao Hamburger (do ótimo O Dia em que Meus Pais Saíram de Férias) é mais distante de seus personagens e aposta em mostrar as ações dos irmãos em um nível mais global. Entre mostrar eventuais problemas e duvidas que permeiam a historia e a consciência dos irmãos e contar cada passo na consolidação do parque, opta-se por esse segundo caminho.

Isso prejudica a visão mais íntima daqueles que fizeram acontecer. Leonardo, por exemplo, é o personagem mais complexo e talvez mais interessante da historia. Diferente de Orlando - retratado por Felipe Camargo, surpreendentemente parecido com o personagem real, como um estudioso e verdadeiro líder e condutor de negociações políticas intrincadas - ou de Cláudio - que João Miguel transforma em um sujeito de poucas palavras, mas muito emotivo e justo, o verdadeiro "coração" do filme - Leonardo nunca foi um verdadeiro "xinguísta", já que nunca conseguiu se desligar de suas origens paulistanas. Isso fica claro quando o personagem é o primeiro a não encarar os índios como figuras angelicais, sem sensualidade e apelo. Enquanto Orlando se apaixona por Marina (a médica que acompanha o grupo) e Cláudio vive para a causa, como um verdadeiro revolucionário do sertão, Leonardo percebe que se terá de fazer sua vida naquele canto do país, por que não criar uma família? E por que não unir-se a uma local? E que mal a nisso, ele deve ter se perguntado.


Mas, para a causa quase utópica apresentada, isso representaria uma complicação difícil de superar, e portanto Leonardo perde seu espaço. Nesse momento, seria muito interessante acompanharmos o desenrolar de tudo o que cercou o retorno do irmão mais novo a civilização branca.

Ao optar pela narrativa idealista, e não no retrato "humano", perde-se a chance de acompanhar os conflitos que aqueles homens - os peões que acompanham os Villas Boas - devem ter sofrido durante os anos de exploração da terra. O mesmo vale para as dificuldades encontradas. Se os fazendeiros exploram a região como pasto, onde estão os conflitos diretos entre eles e os irmãos? A exceção de uma única cena, em que Cláudio discute com um fazendeiro, não existem conflitos diretos. Mesmo no ataque idealizado a uma fazenda que explora e matam os índios, a coisa perde o impacto por tudo acontecer muito rápido. A impressão que o filme passa é que tudo foi uma questão de tempo e persistência. Que pouco foi necessário além de fixar-se, organizar-se e ter paciência e jogo de cintura. Mesmo que a realidade tenha sido próxima disso, onde estão refletidos os problemas decorrentes de uma expedição que não tem fim? A exceção de uma cena - um pouco gratuita - em que Cláudio "surta", grita com um dos índios e passa uma noite atirando a esmo enquanto bebe, nada mais é visto.

Porém, essa opção do diretor apresenta outro caminho - incomum - ao cinema nacional. A grandiosidade da produção (que durou cerca de cinco anos para ser finalizada) proporciona uma sensação de imponência retumbante. São imagens maravilhosas dos primeiros contatos com os índios, da mata fechada em meio a muito verde, das muitas peregrinações pelo leito dos rios em canoas e barcos a motor, e da cultura, engenharia e rituais indígenas. Momentos de enorme competência, que catapultam o filme a um patamar elevado dentro do que produzimos com esse apelo.


Uma coisa me incomodou demais, principalmente pelo esmero que a produção atinge em diversos outros aspectos do filme. O uso de documentos produzidos pela equipe - que ilustram passagens de tempo ou situam historicamente os eventos retratados - em vez do verdadeiro material de época é algo que não faz muito sentido, principalmente quando o próprio filme aposta em imagens reais de arquivo dos biografados para ilustrar determinado momento da narrativa. O mesmo vale para a narração em off, desnecessária, já que limita a perspectiva da historia a uma só personagem, o que também é invalidado pela ação retratada, que em momento algum é personalizada em apenas um dos irmãos, embora claramente Cláudio seja - digamos - o protagonista do filme.

Xingu é um raro exemplar de filme grandioso em termos de requintes de produção. Rodado em diversas etapas, com muito tempo e um apuro técnico realmente notável, é um filme lindo aos olhos, embora frio ao coração. Uma aventura monumental, ricamente documentada e que certamente merece reconhecimento por todo o trabalho realizado, mas que perde um componente emocional fundamental a qualquer cinebiografia: o conflito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário