Redenção
(Machine Gun Preacher, 2011)
Drama/Ação - 129 min.
Direção: Marc Forster
Roteiro: Jason Keller
Com: Gerard Butler, Michelle Monaghan e Michael Shannon
Sam Childers está em um quarto, na África, com seu amigo Deng. Sabemos de sua causa comunitária ali, mas ali ainda não dá pra prever com certeza os caminhos que isso irá tomar. Sam sabe da terra de ninguém que é o Sudão e sabe, também, que a luta de Deng é pesada, violenta. Então, ele vê a arma do lado do amigo com certa casualidade. Pede para pegá-la nas mãos. Questiona sobre qual o problema dela. E o identifica de imediato. O sudanês pergunta, intrigado, como Sam sabe tanto sobre a Ak-47.
“Gosto de armas", diz o americano do Minnesota. Não necessariamente "entendo" ou "conheço", ele "gosta" de armas.
Emblemática, a passagem poderia ser descrita como a cena-chave de Redenção, o novo filme de Marc Forster, sobre o tal pastor da metralhadora do título original. Uma opção de simplificar (seja por incompetência ou por preguiça) um personagem que tende a ser bem vasto em suas facetas, o que não poderia ser pior em uma película que exige um apego emocional grande aos envolvidos. Se o Sam Childers da vida real é um caipira que usa o conhecimento das armas para lutar pelo que, certo ou não, acredita, o de Gerard Butler é um redneck White trash (com direito a moto invocada e tatuagem da Harley-Davidson).
Inclusive, a decisão da Imagem Filmes de encaixar um título edificante e genérico aqui pode funcionar como estratégia de marketing, mas é péssimo no contexto. "Redenção" é mais convidativo, mas já entra errado por apontar, de imediato, uma falha do projeto. O mais honesto, O Pastor de Metralhadora, poderia soar como um Grindhouse dos mais cultuados, mas representaria mais o que é passado aqui. E falha se caracteriza porque de "redenção", o filme de Forster tem muito pouco.
Logo após o prólogo (que, em teoria, serviria para estabelecer a violência no Sudão, mas não causa impacto suficiente), somos introduzidos aos créditos iniciais. Os reducionismos começam, ainda que tímidos. O preso, devidamente vestido de colete preto, sai para encontrar sua mulher, com maquiagem meio borrada. Ao final dos créditos, eles transam dentro do carro, de maneira exclusivamente carnal. Depois do sexo (um mero prazer que Sam havia perdido na prisão), ele pede um cigarro, em busca de outro prazer. Não há dúvida: Lynn não foi ali porque é a sua esposa, mas porque Sam precisava tirar o atraso. Essa tendência unidimensional no desenvolvimento de personagens atinge a metástase logo em seguida. Na cozinha de casa, quando descobre que sua mulher trabalha em uma fábrica agora, Sam grita "Por que largou a dança?! Você é só uma dançarina viciada!". Chega a ser inacreditável a passagem do roteiro pifiamente escrito por Jason Keller.
Se a preguiça em apresentar seus personagens já é tamanha, as elipses de Keller também são igualmente equivocadas. A história é daquelas absurdas demais para ser uma ficção, que soam realistas justamente pelo seu caráter surpreendente. Já no filme, a tal redenção parece só um passe de mágica. Cada evento importante da construção da virada do personagem é observado com pressa, sem ser absorvido. Sam mostra que não sofreu transformação nenhuma na prisão, afinal volta a cometer todos os erros que tinha em sua vida. Droga-se, assalta, vai ao bar para arranjar briga. E, após a passagem do morador de rua, parece que se cansou. Porém, não parece que é a primeira vez que Sam mata alguém. Logo, não há impacto. A cena do batismo, que em teoria seria a mais importante do filme, acaba sendo mal realizada justamente porque nenhum desconforto, impacto ou laço afetivo aconteceu na meia hora anterior de projeção.
E se já é uma pena acompanhar as desperdiçadas situações criadas pelo roteiro, pior ainda é ver o personagem de o título ser reduzido a um senso comum. Premeditada ou não, a canastrice de Gerard Butler acaba reforçando mais ainda a limitação de Childers. A ira espartana do escocês acaba funcionando (e nas partes emocionantes, Butler não compromete), mas ao debater as implicações políticas e ideológicas do que está lutando, o protagonista acaba reduzido. É como tentar encaixar o cinema oitentista raso de ação a um discurso moral que se acha relevante. Mas no final, é equivocado tentar debater, sobre algo já difícil, de maneira rasa.
Utilizar de um fundo político para produções de ação não é novidade. Redenção, desde o trailer, parecia usar disso como Diamante de Sangue fez com a exploração dos diamantes. É a mania do thriller de ação que almeja soar "contemporâneo" apenas por dar razão á pancadaria. Nesse caso, Redenção só piora. Não almeja ser só um filme de ação; almeja ser um estudo de personagem, um drama de situação, uma história revigorante, um debate sociológico e um manifesto manjado anti-Guerra Civil ("Fomos esquecidos pelo mundo!"). Num apanhado geral, o título trash Pastor de Metralhadora faz mais sentido que tudo: no fundo, Redenção acaba sendo um Grindhouse "de arte" dos mais involuntários. Chega a ser cômico quando Forster, demonstrando ter dirigido a película enquanto dormia, encaixa o quadro de Butler atirando com um lança - mísseis, logo após uma cena dramática.
Não satisfeitos em conduzir com desleixo a história, Keller e Forster ainda unidimensionaliza Childers de tal forma que o transformam em um idiota. Exímio estrategista, fã incondicional de armas, o americano não consegue prever armadilhas óbvias, como a das duas crianças inertes, que permaneciam assim mesmo depois de chamadas. Não é um mero detalhe. Confesso que previ o perigo assim que entrou a cena (e não foi porque a fraca trilha de Ascher & Spencer avisou). Childers está em uma guerra civil há anos; eu só joguei Call of Duty.
Fora isso, ainda retratam o protagonista como um homem desatento, já que o mesmo só percebe as implicações erradas do que faz depois que alguém o avisa. Childers só questiona sua violência depois que a médica inglesa o atenta para isso; só pensa em reconstruir a igreja depois que a mulher o liga; o americano só percebe que está exagerando na violência depois de bater em uma criança e esbravejar em um culto. É indubitável que o Sam Childers real é muito mais complexo. Seria simplesmente impossível um ser tão bem intencionado ser tão unidimensional na vida real.
Forster, por sinal, mais uma vez encaixa um bom olhar estético a história, devido à fotografia hiper-granulada do sempre competente Roberto Schaeffer. Porém, se a estética é bonita, não se pode dizer o mesmo das escolhas dramáticas do alemão. Decupando seus quadros com uma falta de cuidado surpreendente, o diretor cria incompetentes cenas de impacto, que diminuem a força do já fraco roteiro. O batismo é filmado com preguiça; o ataque ao mendigo é glamourizado e estilizado, quando deveria focar na emoção do protagonista ao ataque; as cenas de ação são caóticas e mal coordenadas. Forster só acerta quando investe em travellings manjados (como o bonito take de Butler na cruz da igreja) e quando conduz de maneira evasiva (como no raro momento de genuína emoção da película, a cena com o africano com a cicatriz no final). O impacto que Redenção poderia causar é imenso. Cenas como a da filha de Childers, chorando e falando "você ama mais suas crianças africanas que a mim", poderiam ser esplêndidas. Podendo ser ousado, questionador, o filme se limita ao primeiro patamar.
Pelo menos, o projeto ganha ritmo quando se concentra na tensão passada no Sudão. A cada vez que tenta ganhar dimensão dramática, Redenção fica pior. O que dizer da ridícula passagem em que Childers, quando já sabíamos do afastamento com a família, SE ESQUECE da data do aniversário da filha apenas para martelar a mensagem? E a coisa piora: era uma senha de cofre. Mas cada vez que a fotografia granulada se funde à paisagem árida dos desertos sudaneses, o filme se torna passável, já que na superfície ao menos funciona. Inclusive, sem a besteira do politicamente correto, o que sempre ajuda. Já como debate e retrato de uma figura curiosa e interessante, soa apenas imbecil.
Childers real pode ser o caipira caricato por natureza (o orgulho com que exibe a destreza ao atirar com uma mão só a shotgun é a síntese disso), mas é um caricato tridimensional. Pertence mais a um O Vencedor e O Poder e a Lei do que a um Redenção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário