sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Cisne Negro
(Black Swan, 2010)
Drama - 108 min.

Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz e John McLaughlin

Com: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Winona Ryder e Barbara Hershey



Escrever qualquer coisa sobre um filme extremamente bom é, talvez, a coisa mais complicada para alguém que decide abraçar essa carreira. Por mais que me esforce para traçar em palavras, sentenças e frases os mais belos elogios e palavras de incentivo e glorificação a obra vista, ainda assim é pouco para traduzir as impressões e análises que uma obra poderosa consegue alcançar.


De longe, a mais impressionante obra cinematográfica do ano, combina todos os elementos de "fundação" da chamada sétima arte com incrível felicidade. A obra prima de Darren Aronofsky não encontra paralelo com o que foi produzido no ano que passou. Visualmente um assombro, narrativamente densa e sem fazer concessões ao público, tecnicamente notável e apresentando interpretações viscerais de todo o elenco.


Cisne Negro é um caso raro em que qualquer comentário que se faça posteriormente é incapaz de resumir sua experiência. O que Darren Aronofsky conseguiu aqui, lhe garante um lugar entre os maiores diretores da década. Se ele já havia resvalado na absoluta genialidade com os provocantes Pi e Requiem para um Sonho e feito uma obra hermética e belíssima em Fonte da Vida, foi apenas com O Lutador - um retrato sujo e muito humano da decadência - que o grande público (nem tão grande assim) teve contato com a sensibilidade desse criador.



Cisne Negro consegue misturar elementos de todas as obras pregressas do diretor e ainda assim apresentar um frescor e uma qualidade que fazem a obra se destacar por seus próprios méritos. Temos a inquietude dos temas complexos de Pi e Requiem para um Sonho, a profunda beleza visual de Fonte da Vida e a humanidade latente e estampada vista em O Lutador.


O filme é um grau acima de tudo o que o diretor apresentara anteriormente, conseguindo superar cada aspecto de suas produções anteriores.


Acompanhamos com tensão e interesse a história da bailarina Nina, obcecada com a perfeição e castrada emocionalmente por uma vida de sacrifícios pela arte e amordaçada pela mãe controladora (Barbara Hershey inspiradíssima). Ela deseja ser a primeira bailarina do balé de Nova Iorque e para isso precisa da aprovação de Thomas Leroy (Vincent Cassel), o produtor da companhia, ao mesmo tempo em que vê uma nova e mais solta bailarina (Lily, interpretada por Mila Kunis) ameaçar seu "reinado" como óbvia escolha para o protagonismo de O Lago dos Cisnes, juntamente com O Quebra-Nozes o espetáculo de dança mais famoso da história.



E ai é que Aronofsky começa a brincar. Ele constrói as agruras e sofrimento físico e emocional de sua protagonista quase como um sádico. Das quase duas horas da produção, Nina (vivida por Natalie Portman) está em cena em quase toda a produção. E é nesse tour de force que vemos sua mutação e desmoronamento mental diante das pressões da profissão e de sua própria consciência.


Demolida, a personagem passa a ver o que não existe e sentir o que não faz sentido, e logo sua mente passa a pregar peças. Uma mistura soturna de Rosemary - pela pureza inicial e pela neurose adquirida pela personagem - com a frieza emocional de um filme de Kubrick, que fica claro - para mim - nas escolhas visuais (lembrando mais especificamente De Olhos bem Fechados) que tentam deixar o espectador ausente de um envolvimento emocional com aquela história. Aronofsky não tenta transformar Nina num mártir das causas das pobres bailarinas, mas como um exemplo - um espécime capturado e colocado em exposição para o olhar dos visitantes - de como o calor das luzes do palco (e das telas) pode subjulgar a alma. E como vemos tudo a partir de seu ponto de vista, é natural que seu mundo - e por consequencia sua visão - seja exagerado e "over". O que podemos entender como significância dessa escolha é que, Aronofsky não pretendia falar sobre ballet, ou contar a saga dessa personagem, mas estudar o impacto da perturbação mental na vida de alguém, que foi exposto as pressões doentias (segundo o filme) de uma profissão desgastante.


Ao vermos Nina despedaçada como um espelho quebrado (uma metáfora óbvia, que o diretor usa) não deixamos de pensar em quantas outras vidas foram esmigalhadas pela paixão e pelo desejo de "brilhar", não importando a que custo. Os holofotes cintilam e os homens se encantam, parece dizer o diretor.



Natalie Portman tem todo o trabalho de segurar emocionalmente o desbunde visual e sonoro preparado em Cisne Negro. É nela que estão todos os componentes emocionais, é nela que tudo gira, e é nela que tudo vai terminar. Logo, esse é o trabalho da vida da atriz. Mesmo jovem, imagino que seja difícil vermos outra vez uma interpretação tão perturbadora da atriz, que vai dos picos de pureza virginal a insanidade sombria na mesma sequencia. Um trabalho notável, e que merece ser visto e estudado.


E porque será difícil revermos essa performance?


Pelo material aqui mostrado. Cisne Negro não lembra em nada o que o quase engessado cinema americano vem reciclando - incluindo os chamados "indies". Apesar de estarmos vendo uma jornada rumo à loucura já mostrada em dezenas de outros filmes, é o frescor do uso de elementos simples, como iluminação, trilha sonora, montagem e fotografia além de uma direção impecável que fazem do "filme do pássaro" realmente se destacar entre a multidão.


Notem como Darren constrói seus planos de maneira a inserir o espectador - como um voyeur privilegiado - dentro de cada gota de suor de seus personagens. As seqüências de dança são um assombro, e a metafórica transformação de Rainha dos Cisnes em Cisne Negro já é uma das mais impressionantes da última década. Há meia hora final - basicamente uma recriação de dentro do palco do espetáculo Lago dos Cisnes - é de tirar o fôlego. Um desses casos em que os eventuais defeitos anteriores (Wynona Rider que não convence como Beth, apesar de ser a responsável pela cena mais "rude" do filme) são subjugados pela perfeição do que vemos na tela.



Matthew Libatique, o fotógrafo, é genial, em sua paleta de cores - escuras mais não a ponto de fazer o espectador "perder" a cena - e muito feliz ao usar da saturação para fazer destacar a excelente maquiagem e a direção de arte espetacular de David Stein. E chegamos a Clint Mansell, que demonstra estar no auge de sua carreira, partindo da raiz da peça e jogando Tchaikovsky num poço escuro e retirando com um balde enferrujado a trilha musical mais poderosa do ano (num ano em que tivemos algumas excelentes trilhas). Dramática e sombria consegue um equilíbrio entre o histrionismo e a melancolia que combina com perfeição simbiótica com o trabalho da direção de Aronofsky.


Aronofsky atinge aqui um novo patamar. O que virá a seguir? Wolverine em suas mãos é desde já um dos filmes mais interessante a ser visto em 2011 (rivalizando com Árvore da Vida do mestre Terence Malick e da reunião de amigos de Scorsese em Irishman). A mistura entre o mutante da Marvel e a sensibilidade do diretor pode render um filme inesquecível para os fãs de quadrinhos.



Quanto a Cisne Negro, não existe muito a dizer além do que agradecer ao diretor por apresentar um trabalho tão impressionante. Sua carreira é marcada por filmes complexos, ditos "pequenos" e pessoais e não será diferente com Cisne Negro. Um verdadeiro diamante que - infelizmente - poucos verão e que talvez venha a ser descoberto apenas depois que tiver saído de cartaz. Nem mesmo na premiação da indústria creio que se saia tão bem, afinal enfrenta David Fincher do excelente Rede Social, e que perdeu há dois anos para Danny Boyle e seu ridículo Quem quer ser um Milionário. A Academia adora esse tipo de compensação. Poderá dar os louros para o filme de Fincher (embora hoje aposte na vitória de Discurso do Rei) e renegará Aronofsky ao hall dos grandes diretores que não ganharam nada em seus trabalhos mais importantes.


Mas a história - espero - julgará os méritos do vôo de seu Cisne Negro. Para mim, já tem lugar entre os mais incríveis filmes já realizados nesse novo século.










Uma bailarina vestida de branco começa a se movimentar num palco escuro. Ela não pode ser identificada inicialmente, apesar de a iluminação contemplá-la quase divinamente. Então, a paixão da personagem, a dança, é filmada através de seus pés, com movimentos milimétricos, sem um completo erro. Logo, surge um segundo participante, um estranho ser vestido de preto, que dança de forma sincronizada com a bailarina. Porém, a coreografia é diferente. Ela é complicada e imprevisível, espetacular e plástica ao extremo, mas o tal ser parceiro da bailarina se transforma num cisne com cifres. Mas o mais estranho é a naturalidade com que a bailarina encara o parceiro transformado. Era até mesmo desnecessário que a bailarina comentasse depois que a tal coreografia era diferente das que foram ensaiadas. Os ensaios demonstram depois que os erros fazem parte do show. E naquela estranheza escura, dividida pelos dois participantes, a perfeição foi alcançada. Então, Nina Sayers acorda. O sonho não é o bastante. Ela quer a perfeição real.



Sem ao menos precisar saber do que se trata a película, Darren Aronofsky nos entrega tudo o que a personagem quer, de forma objetiva em dois minutos. E isso é apenas o primeiro elemento do êxtase de emoções que é Cisne Negro.


Desenvolvimento, aliás, é algo facilmente conduzido pelo diretor. Desde seu debute na direção, o alucinado Pi, o cineasta trabalha com isso. Porém, é normal dizer que o desenvolvimento de um personagem de forma lenta é genial e todo o tempo do mundo deve ser gasto para desenvolve-los assim como as situações em que eles se envolvem. Em várias películas, como na obra de arte 2001, é exatamente assim e isso é digno de aplausos, sim. Mas é preciso ser um profundo conhecedor da sétima arte para dizer o que um personagem é e o que sua história pretende contar em apenas poucos minutos. Assim como o sonho inicial, fundamental para a ambientação de Nina, tudo em Cisne Negro é conciso e bem desenvolvido. Paradoxo, diriam os críticos adeptos do desenvolvimento lento. Mas aqui, é notável a capacidade que o roteiro de Mark Heyman, Andrés Heinz e John McLaughlin e a direção de Aronofsky de serem diretos, sem nunca soarem apressados. Não só o sonho de Nina é exemplo disso, como também seu arranhão nas costas ser apresentado rapidamente na trama. Essa concisão é recorrente a Aronofsky. O início de sua obra-prima, Réquiem para um Sonho, já começa com uma discussão simples, mas que determina todo o ritmo aterrador da narrativa.


E se Nina não estranha o visual diabólico/bizarro que seu parceiro tem, é fácil constatar que estamos no seu subconsciente. E dele não saímos em nenhum momento do roteiro de Heyman, Heinz e McLaughlin, que não faz concessões a respostas fáceis e nunca entrega ao público soluções triviais para as complexas relações emocionais retratadas por Nina e os coadjuvantes. Dando apenas sinais da possível falta de realidade na qual Nina está, como sombras e a aparente falta de comunicação entre a bailarina e uma outra pessoa, Cisne Negro é repleto de simbolismos. Nina tem sua paixão ao balé retratada dessa mesma forma. Se diálogos e situações são desnecessários nessa concisão que os realizadores impuseram, nada melhor que usar vários elementos de cena para determinar o jeito de sua protagonista. Os simbolismos aqui servem não só como meras sacadas visuais, mas como "determinantes chave" para a compreensão da personagem. Sabemos que Nina é infantilizada por seus bichos de pelúcia no quarto. Entendemos a importância de uma tora de madeira apenas quando uma briga ocorre. Nada está ali por acaso ou de forma desnecessária.


Os simbolismos, aliás, são expandidos e aprimorados pelo gênio contemporâneo que é Darren Aronofsky. Se esses mesmos são recorrentes na carreira do diretor, que implodiu Fonte da Vida perante o público justamente por abusar dos simbolismos que afastam quem procura respostas fáceis numa narrativa, aqui ele insiste neles sem medo da reação, respondendo visualmente questões que o roteiro deixa em aberto, o que é uma demonstração legítima de coragem. Mesmo depois de ter seu segundo melhor filme, o belíssimo poema de amor e vida que é Fonte, massacrado pelo público, ele continua a fazer cinema de arte.


A complexidade de emoções é potencializada com a chegada de um inspetor, um mediador que determina a perfeição, que tanto Nina procura. Thomas Leroy, vivido com uma surpreendente presença de cena do excelente Vincent Cassel, é peça fundamental pro quebra-cabeça que Nina pretende construir. Seu professor de balé, extremamente rígido, impõe uma rotina de treinamentos que Nina não consegue balancear. Mesmo sendo totalmente dedicada, Thomas sempre está exigindo que a bailarina saiba interpretar o Cisne Negro, o extremo oposto do Cisne Branco, no qual Nina é perfeita. E é nesse momento que a bailarina começa a ter dúvidas de sua sanidade, quando entra nesse vácuo mental que pode destruí-la.



E é nisso que Aronofsky volta aos simbolismos. Se Nina é perfeita, porque então Thomas não a aceita? A resposta é implícita e apenas ANALISANDO o comportamento do professor, atentando ao seu olhar clínico e cheio de respostas, reproduzido pela complexa interpretação de Cassel. E essa análise não é jogada na tela á toa. Aos que não desvendarem a resposta, ficará um buraco. Os roteiristas e o diretor arriscam a compreensão de seu filme em nome da confiança no espectador. Não há uma representação mais apaixonada do que essa de um cineasta ao seu público, respeitando completamente sua inteligência. Tanto emocionalmente como fisicamente (existem cenas que ecoam o lado mais sombrio de David Cronenberg, como a retirada da unha), Cisne Negro não é uma experiência para fracos.


Essa dualidade presente durante todo o filme, em que estamos claramente dentro da mente de Nina (com exceção de raros contra-planos, como no clímax, em que Aronofsky nos tira, sem avisar, desse estado), é personificada por um personagem: Lily, interpretada com competência impressionante de Mila Kunis. A atriz, que merece todos os prêmios a que poderia ser indicada, demonstra com uma naturalidade espantosa todo o cerne de Lily. A perfeita candidata a Cisne Negro, ela exibe uma sensualidade e imperfeição em seus movimentos que atraem Thomas. E sendo a preferida do mediador para o papel de Odile, Lily é o que Nina queria ser: O lado obscuro da perfeição. Quando Nina tenta ser como Lily fracassa - é doída a cena que ela vai falar com Thomas em busca do papel de Swan Queen. Com seu jeito tímido e contido, com uma doçura incomensurável, Nina tenta representar a sensualidade de Odile do jeito que sabe. O simbolismo? Um desajeitado batom rosa. A simples cena determina o insucesso de Nina em ser adulta. Aí se abre o tal vácuo mental que pode destruir cada pedaço da pobre bailarina, vítima de suas altíssimas ambições.


E de onde vêm essas ambições? Há um núcleo específico pra isso, o que explora a mãe de Nina, Erica, interpretada por Barbara Hershey. Como a personagem de Cecília Roth em Ninho Vazio, Erica é complexa por não aparentar o que sente realmente de forma explícita. E Barbara Hershey, em atuação poderosa, transmite toda a incerteza de Erica. Os pequenos símbolos que a representam, como o genial coque preso no cabelo, fazem metade da construção da personagem, que tem uma rigidez ácida com Nina, talvez por alguma frustração passada que tenha a atingido. E o coque é a resposta crua que os realizadores nos dão.



Observando o núcleo dramático pesado que nos é apresentado, vemos que o filme percorre o caminho do filme-delírio, como em Pi. Mas Cisne Negro é uma evolução nítida em Aronofsky como contador de histórias, em relação ao debute, já que o mesmo explorava bem menos a dramaticidade que Cisne tem. E essa dramaticidade é uma verdadeira carrasca de Nina, que está no papel que foi de Sara Goldfarb, em Réquiem. Com a melhor atuação do ano, Natalie Portman capta toda a essência de Nina Sayers e entrega a interpretação mais fabulosa de sua carreira.


Não se deve subestimar a parte técnica do filme perante a narrativa. A fotografia de Matthew Libatique é granulada e lindíssima, dando um ar de realismo mesclado com onírico, nunca trocando os tons, fazendo com que nunca se saiba quando Nina está realmente sonhando. A trilha sonora do igualmente genial Clint Mansell pega trechos do balé de Tchaikovsky e utiliza uma orquestra á moda antiga, com instrumentos dificilmente utilizados em trilhas contemporâneas como tambor e trompete. Fora isso, utiliza o seu habitual violino com uma beleza de tirar o fôlego. Aliados á trilha sonora angustiante, a mixagem e edição de som são igualmente bem-sucedidos ao implantar elementos que emulam ruídos na cabeça de Nina, o que é aterrador e apavorante em diversas cenas. A edição de Andrew Weisburn é precisa e, apesar da competência, é o quesito mais apagado do filme.


E se Darren Aronofsky evolui a cada segundo como contador de histórias, sua direção é de um apuro estético de fazer inveja a veteranos. Seus cortes rápidos de "hip-hop montage", presentes em Pi e Réquiem, são substituídos pelos planos-sequência gigantes de Cisne Negro, como a cena em que Nina dança como Odile, o que merecia uma resenha á parte. Momentos de pura genialidade, como a dança de Natalie Portman representada pelo espelho atrás de Vincent Cassel, são recorrentes e têm pelo menos mais 3 exemplos a serem citados: O clímax, a cena no metrô e a cena do hospital, perto do final.



Um espetáculo da sétima arte, Cisne Negro é ambicioso como qualquer filme de Aronofsky e entrega uma qualidade quase igualável aos dois melhores filmes do diretor. Com a marca do realizador em abordar diversos temas em apenas uma trama, Cisne é uma fábula contemporânea sobre a perda da inocência, a perda da castidade do Cisne Branco (como o espetacular plano que o diretor acompanha Natalie caminhando quase num êxtase sexual), o amadurecimento e a metalinguagem com o Lago dos Cisnes e a própria indústria cinematográfica (como a transformação física de Natalie e Mila denunciam). Uma experiência como poucas. Um monstro de cinematografia. Um retrato cru e melancólico da obsessão de um artista por sua paixão. A derrocada do ser humano é, mais uma vez, retratada por Darren Aronofsky. E com mais um filme que merece figurar no Panteão nos filmes mais importantes da história.





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