quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Abutres
(Carancho, 2010)
Drama - 107 min.

Direção: Pablo Trapero
Roteiro: Pablo Trapero, Alejandro Fadel, Martín Mauregui e Santiago Mitre

Com: Ricardo Darin e Martina Gusman

(obs: essa crítica foi divida em duas partes. É a primeira e talvez única vez que isso ocorrerá no Fotograma, mas achei válido apresentar alguns pensamentos meus sobre a eterna briga Brasil/Argentina no cinema, antes de falar diretamente de Abutres. Espero que gostem).



Por que os hermanos tem um cinema tão plural e tão acessível?

Quando escrevi sobre O Segredo de seus Olhos lembro que disse que o cinema brasileiro poderia aprender com os hermanos a contar boas histórias. Simples assim. O que difere a volúpia do cinema argentino tem para o tupiniquim, é que, apesar de nossa produção ser gigantesca - em termos de números perto da argentina - nossos filmes (aqueles que conseguem vagas nas salas de cinema) são esquemáticos e renderam-se a fórmula: novela na tela grande - filmes de "Deus".

Antes que alguém vocifere - "mas isso é um absurdo, você não pode generalizar" - faço o mea culpa. É claro que essa não é a verdade absoluta, nem a realidade geral de toda a produção do país. Mas é claro, que é nesses conceitos que a grande - não, a imensa - maioria dos filmes nacionais que chegam aos cinemas são produzidos.


"E qual a diferença para os Estados Unidos, onde 95% do que é produzido é uma porcaria?"


A diferença é que lá, existem muito mais salas de cinema, e se o espectador quiser MESMO encontrar aquele filme indie, ele vai conseguir. Claro, que falamos de uma cidade grande com cinemas que apostam no que é diferente. As pequenas cidades americanas apostam no que as nossas redes de cinema apostam. No que funciona, e dá dinheiro.


Isso não é negativo. Pelo contrário, são os milhões de produções grandes que bancam parte dos "estúdios de arte" dentro das majors nos Estados Unidos.

O problema é que fora as duas megalópoles brasileiras (leia-se São Paulo e Rio) o espectador brasileiro não consegue, por exemplo, ver Scott Pilgrim, que nem é um filme de arte/cult/ “estrangeiro", pois não existem salas de cinema fora os grandes complexos de shoppings, que por sua vez (e com razão) visam aquilo que funciona e que dá lucro e arriscam muito pouco.


"E onde entra Abutres nisso tudo?"


Abutres é um exemplo de como o cinema argentino consegue exportar qualidade e ser prestigiado em seu país e fora dele. O Brasil também consegue, mas para cada Tropa de Elite, Cidade de Deus, Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Cinema, Aspirinas e Urubus, Amarelo Manga e etc (coloque outros aqui leitor) o brasileiro encara - e gosta, já que ele está vendo na tela grande o que ele já conhece - Se eu Fosse Você, Divã, comédias "engraçadas" mil, e Xuxa e Renato Aragão.


A questão é que o dinheiro de Xuxa não é revertido em um estúdio menor onde além de gerar lucro, você pode apostar no diferente, no prestígio que uma obra interessante vai lhe render. Não, a conta de um novo filme da Xuxa, gera... outro filme da Xuxa, e apenas legítimos heróis conseguem passar pela doentia burocracia para obtenção de capital de patrocínio e lançar seu filme... em duas salas, por uma semana, na pior semana do ano. Essa é a regra.


Existem alguns produtores que tentam fugir desse estereótipo buscando recursos e apresentando resultados e lucro, mas também apostando no cinema "underground".


Os hermanos não têm a burocratização como entrave e tem a consciência de que não é apenas de milhões que é feita uma cinematografia e que o público precisa ter acesso e ser informado sobre mais do que a "TV na tela grande".


O Filme

Abutres é um thriller quase noir sobre um homem perdido em seu emprego detestável que se envolve com uma mulher que simboliza sua fuga e salvação de uma realidade dura e desgraçada. Ricardo Darin é o interprete desse homem amargurado e entorpecido pela condição de seu trabalho. Ele é Sosa, um "Abutre", um advogado que procura vítimas de acidentes de transito para aproveitar de sua dor e tentar transformá-los em clientes e com isso garantir boas indenizações, que acabam liquefazendo bons rendimentos para ele. A mulher com que ele se envolve é Luján (Martina Gusman) uma jovem médica que divide sua perturbadora rotina entre plantões na unidade de resgate e horas agoniantes no hospital.


Sosa se apaixona por Luján quando um de seus "esquemas" acaba dando muito errado e precisa salvar sua pele e a da jovem médica que acaba se envolvendo com ele.


O diretor Pablo Trapero aposta na crueza de sua história e abusa da câmera na mão, nos improvisos dos diálogos e na ambigüidade moral presente em quase todos os personagens para apontar ao espectador que tudo pode acontecer a qualquer momento. Apenas Luján é poupada e ela é tratada como a inocência que Sosa não tem mais e que tenta reconstruir a partir de seu relacionamento com a médica.


A história acontece numa Buenos Aires escurecida e apodrecida pela gente que nela vive. Não existe luz do sol em boa parte do filme, e quando ela surge é apenas para reforçar que a escuridão é parte integral daqueles personagens.


Escuridão que é reforçada pelo monumental e acidentalmente cômico final onde tudo que é possível acontecer, acontece e como em todo grande filme noir (que Abutres flerta sem piedade) de maneira trágica e dolorosa.


O grande destaque são os dois atores, em especial Martina, que exala credibilidade em suas ações e desaba de maneira doce e realista quando suas emoções (que a personagem tanto tem de camuflar) são vertidas em lágrimas doloridas. E Darin, é um ator de extrema competência, capaz de se transformar em diferentes tipos, diferentes homens em cada um de seus filmes. Se em Segredo de seus Olhos víamos a inocência e o olhar resignado e toda a dificuldade para se expor, sempre pisando em muitos ovos, em Abutres vemos o desespero, vemos o fracassado e a cada minuto este fracasso torna-se mais latente e inevitável. Sosa é antes de tudo um homem de ação, por mais que suas palavras façam dele um Abutre, são seus atos que reforçam e sacramentam essa condição. A cada novo passo dado, Sosa transforma-se no pássaro comedor de carniça, tentando sair da lama, mas fadado a terminar sua existência se alimentando dos restos dos demais.



Abutres funciona muito bem, porque consegue apresentar uma fauna de personagens rica, e tridimensional, gente que podemos ter cruzado em diferentes momentos de nossa vida, que no filme são Abutres... ou carniça.


O público ávido pela virulência e pelas gotas de sangue de um confronto e capturado pela intensidade de cada nova ação, inicia a projeção como Abutres sedentos pela carniça, e ao fechar a íris do último frame do filme, toma noção de que durante pouco mais de uma hora e meia foi sendo digerido pelos Abutres de verdade: a humanidade e sua capacidade inerente de destruir-se pela ganância e transformar cada um de seus dias em ofensas ao destino.


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