Intocáveis
(Intouchables, 2011)
Drama/Comédia - 112 min.
Direção: Olivier Nakache e Eric Toledano
Roteiro: Olivier Nakache e Eric Toledano
Com: François Cluzet, Omar Sy
Como descrever Intocáveis? Uma comédia de humor politicamente
incorreto, sem nenhuma piedade em brincar com a condição de um ser humano
tolhido de suas liberdades decorrente de uma deficiência? Um conto sobre mundos
que se encontram, se tocam e se modificam? Um "buddy movie" com
aquele toque fabulesco? Tudo isso, ainda amparado por um trabalho técnico de
qualidade, mas principalmente por uma dupla de atores muito especial.
Intocáveis diz a que veio e o que pretende, já em sua cena
inicial, quando vemos um homem negro e forte dirigir um belo carro esporte,
acompanhado por um homem de meia idade de feições doloridas, barbado e perdido
em seus pensamentos. O homem negro acelera forte ultrapassando sem dó diversos
veículos em sua corrida sem nenhum objetivo claro. De repente são perseguidos
pela polícia e depois de uma tentativa de fuga, forçados a parar. O homem negro
sai do carro e vocifera que precisa levar o outro homem ao hospital, pois ele
está convulsionando ao seu lado. O homem de meia idade, ao mesmo tempo, começa
a babar simulando essa condição. Para piorar a situação, o homem de meia idade
está numa cadeira de rodas, o que amplia ainda mais a piedade dos policiais.
Pronto, eles são liberados e os dois homens podem voltar a sua diversão.
Essa descrição detalhada que fiz (e que vocês que acompanham os
textos por aqui, sabem que não costumo fazer) é importante para situar o leitor
sobre o que vai ver. Ao enganar os policiais com uma desculpa das mais
"ofensivas" o filme logo diz que o politicamente incorreto dará o tom
da historia. Não espere uma historia edificante tradicional, e apesar da ideia
ser até se enquadrar no ideal de superação de dificuldades, é dessa forma
"diferente" que o filme vai seguir em frente.
O sujeito na cadeira de rodas é tetraplégico (ou seja, não sente
nada do pescoço para baixo) e se chama Philippe. O motorista é o homem negro e
forte chamado Driss. Quando o filme realmente começa após esse prólogo que é
genial ao rapidamente dar as coordenadas do que veremos a seguir, Philippe está
em busca de um novo cuidador, alguém para vesti-lo, conduzir sua cadeira,
dar-lhe banho, dar-lhe de comer, beber, lhe passar o telefone, abrir sua correspondência
entre muitas outras responsabilidades. Driss acaba de sair da cadeia depois de
meses presos por um furto, e está - ao lado de muitos homens teoricamente mais
bem preparados que ele - diante de uma entrevista de emprego, que para ele
apenas serve como subterfúgio para conseguir garantir seu seguro desemprego
(algo assim) por mais trinta dias.
Porém, Philippe encanta-se com o jeito sem rodeios, sem piedade, irônico
e muito honesto de Driss e resolve contratá-lo. A partir daí o filme vai nos
mostrar como a relação de empregado e patrão evolui para uma amizade verdadeira
e muito forte.
Não existem vilões em Intocáveis, além das próprias limitações de
Phillipe. Seus inimigos estão em sua própria mente e em seu próprio corpo. Por
outro lado, Driss tem uma historia em seu passado, uma família muito numerosa
que tem uma serie de problemas para manter-se. Esse talvez seja o único
demérito do filme, já que essa linha narrativa é pouco explorada de forma mais
intensa dando lugar a historia principal, embora em determinado momento da
trama as duas narrativas acabem se cruzando, interferindo uma na outra.
Intocáveis é um filme profundamente humano e por isso não é
politicamente correto. Não trata o deficiente como um aleijado social, alguém
que não tem capacidade emocional para ouvir uma brincadeira e que não consegue
lidar com seus próprios fantasmas. Tratar o deficiente como mais um cidadão,
sem piedade e sem meias palavras é um dos grandes méritos do filme, que não tem
medo de fazer piada com a condição de Philippe. Porém, é bom avisar o leitor,
que quando falo de "fazer graça" não estou apontando a baixaria de
produções escatológicas, mas de observações cotidianas sobre Philippe. Por
exemplo, Driss fica curioso sobre como sexualmente o seu novo amigo funciona.
Ao receber a noticia de que o amigo não sente nada do pescoço pra baixo fica
curioso em saber como ele faz sexo. "Existem outras zona erógenas no
corpo", diz Philippe. "Por exemplo?" retruca Driss. "Os
lóbulos das orelhas" complementa o homem atado à cadeira de rodas.
"Quer dizer que quando suas orelhas ficam duras é sinal que está excitado?"
diz com todo o bom humor, o gigante africano.
Compreendem? É assim que Intocáveis trata seus personagens. Sem
"dó", sem "passar a mão na cabeça" e dizer: "que
coitadinho", mas fazendo graça de uma condição humana, colocando o
deficiente como membro ativo da sociedade, alguém que deve ser tratado com
igualdade assim como todos os demais seres vivos.
Isso não significa que o filme seja uma comédia rasgada, pelo
contrário. Como estamos próximos ao ambiente de fábula, onde além de ser rico,
Philippe mora quase em um castelo encravado em Paris, personagens coadjuvantes
acabam se apaixonando quase beirando o cartoon, a doçura equilibra com muita
sabedoria as observações ácidas e irônicas. Se Driss se esquece que seu patrão
não consegue atender ao telefone e apenas "entrega" o aparelho ao
homem, é também aquele que o incentiva a viver mais profundamente. Se ele tem
uma paixão, ele o incentiva a seguir em frente, se ele quer praticar algum
esporte é ele que o acompanha, e logo Philippe também ensina Driss o quão ele é
competente e pode ser importante.
O filme de Olivier Nakache e Eric Toledano consegue essa proeza. Fazer graça de algo que
a sociedade nos ensina a não brincar ao mesmo tempo em que é profundamente
emocionante e leve. François Cluzet está reluzente. Philippe é um homem muito
complexo que aparenta uma leveza que não condiz com suas reais emoções. Claro
que se sente enfraquecido e deprimido com sua condição. Claro que sente falta
de caminhar sozinho, de sua independência, mas mesmo assim, tenta encontrar
ajuda exatamente em alguém que "se esquece" de suas deficiências,
alguém que o trate nem pior, nem melhor, apenas igual a todos os outros. São
nos olhos de Cluzet que vemos ele se entregar completamente ao papel. São nos
pequenos movimentos de sua boca e em seu franzir de testa que tudo está
contido. Obviamente limitado, é com a voz e seu rosto que o ator consegue nos
convencer e identificar facilmente quando aquela alegria é falsa e quando Driss
consegue tocá-lo de forma real, transformando-o em uma pessoa melhor.
Omar Sy - anote esse nome. Esse é um legitimo representante daquele
chavão do cinema: força da natureza. Enorme, quase bronco, cheio de trejeitos
que podem indicar uma agressividade, é leve, inteligente, sagaz e cheio de
fibra moral. Sy é intenso, cheio de energia e dono de um carisma maior que o
próprio filme. Sua química, com todos os demais interpretes, é assustadora e em
especial com Cluzet, que parecem amigos de longa data, tamanha facilidade que
os dois têm para conversar e convencer. Realmente um trabalho notável.
Intocáveis é um dos grandes filmes do ano. Uma aula de como tocar
em temas complexos de uma forma profundamente inteligente e emocional, sem no
entanto, esbarrar no pedantismo, no melodrama (no pior dos sentidos) ou na falta
de respeito e na ofensa gratuita. Caminha sobre uma finíssima corda de forma
elegante, com resultados exultantes.
Estou ansioso para assistir a esse filme. Primeiro, não havia nada que me interessasse de verdade, mas tenho lido boas resenhas sobre ele e fiquei bastante animado em vê-lo. Parece se tratar de uma obra de caráter ideológico bastante válido de se observar.
ResponderExcluirCara, passa no novo blog sobre o Oscar e confira: http://eooscarfoipara.blogspot.com.br/
otima crítica! Eu só adicionaria um comentário sobre a trilha sonora. A simplicidade das linha melódicas do piano, sem exageros e que unidas as belas imagens, comovem...
ResponderExcluirOtima critica!! A trilha sonora também é excelente... sem exageros... dá o tom certo para o filme
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