quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Histórias Cruzadas

Histórias Cruzadas
(The Help, 2011)
Drama - 146 min.

Direção: Tate Taylor
Roteiro: Tate Taylor

Com: Viola Davis, Octavia Spencer, Emma Stone, Bryce Dallas Howard e Jessica Chastain

Para angariar prêmios, principalmente aqueles estadunidenses, um filme muita das vezes precisa ter mais do que "apenas" qualidades técnicas e narrativas. É preciso ter uma mensagem, uma lição de moral, e ajuda muito se esta for "sentimentalóide", com um cunho de crítica social e política. Funciona para ganhar admiradores ao redor do mundo, e também para faturar alguns mui bem vindos carecas dourados. Sempre foi assim em Hollywood, e a tendência é continuar - não necessariamente o melhor filme ganha, mas aquele que cativa mais os jurados. Afinal de contas, o Oscar nada mais é que uma grande eleição. Deste modo, criar uma produção com apelo emocional, anexada de um pseudo-ativismo político por direitos humanitários é um passo enorme para atrair a atenção para si.  Se a vitória não vem, pelo menos as indicações chegam aos montes.

Neste aspecto, Histórias Cruzadas é uma falha de proporções épicas, pois compromete sua desde já intenção clichê inicial, de criar um manifesto apelativo pela luta contra o racismo, através de uma narrativa que vergonhosamente pinta os negros como seres acovardados e sem força própria na árdua tarefa de ter seus direitos reconhecidos. No entanto, se há alguém que pode bater de frente com o racismo e ainda de quebra ser a "mocinha" da história, essa pessoa é uma menina loira , de olhos azuis, interpretada pela bela Emma Stone.

Pode até ser involuntário, mas a mensagem que o filme de Tate Taylor transmite é completamente oposta a qualquer princípio de libertação dos negros - as empregadas negras não são agentes ativos em sua jornada de encontro à civilidade reconhecida; são criaturas amedrontadas que acham sua "salvadora" em Eugenia "Skeeter" Phelan (Stone), uma moça que retorna ao Mississipi depois de estudar em outro estado, e não está acostumada mais aos hábitos discriminatórios de sua região natal. Ou seja, a personagem interpretada por Stone nada mais é que uma versão estrangeira da nossa já conhecida Sinhá Moça, e se no Brasil a protagonista é branca para facilitar a "venda" da personagem para o público - leia-se: discriminação - não parece ser muito diferente no longa norte-americano.


Na trama, somos introduzidos a uma destas empregadas negras chamadas de maids ou helpers - daí o título original The Help. Aibileen Clark (Viola Davis) é uma empregada de meia idade com uma história de vida sofrida e que passou toda a vida criando os filhos brancos de seus patrões. A atenção dedicada ás crianças é tamanha que elas enxergam em Aibileen uma mãe, já que a negra é quem educa e dispensa a maior parte do tempo com os pequenos. Ela e Minny (Octavia Spencer) são duas amigas de profissão que sofrem com o racismo extremo de socialites como Hilly Holbrook (Bryce Dallas Howard). Depois de eventos mais explícitos e cruéis de discriminação racial, as duas negras decidem ajudar na reportagem de Skeeter sobre a vivência das maids de Mississipi: relatam o que presenciaram, o que fizeram, e o que sofreram trabalhando para os brancos.

O principal problema do roteiro adaptado de Tate Taylor - não li o livro "The Help" em que ele se baseia - é sua gritante hipocrisia quanto ao seu principal tema: a questão racial. Obviamente ele tem em sua proposta mostrar o combate à discriminação - porém se o seu objetivo é esse, seu discurso cinematográfico, na prática, soa diferente: quem precisa ser a voz de expressão e de salvação para as afro-americanas é uma escritora branca. Não importa se a intenção é essa, mas a mensagem que fica é "Pessoas brancas resolvem o racismo", denotando uma suposta incapacidade por parte dos negros em resolverem seus próprios problemas. Julgá-los como incapazes é, ironicamente, de um racismo tão grande quanto aquele que o filme “julga” combater.

Além disso, a atitude um tanto covarde das negras do filme não parece se encaixar com nenhum dos princípios de resistência à segregação: nem o confronto direto defendido por Malcolm X, nem a atitude de convivência pacífica, mas mantendo seu ativismo, de Martin Luther King Jr. A postura das negras parece acomodada, sem ímpeto, necessitando da "boa vontade" de uma jovem de olhos claros para tirá-las de seu lugar. Em uma análise detalhada, Histórias Cruzadas tem muito de um discurso misógino - afinal, tanto Martin Luther King Jr. e J.F Kennedy, que têm suas mortes apontadas no filme, foram homens que se mantiveram contra o sistema segregatório vigente; eles sim, foram ativistas, lutaram, e viraram mártires.


Não só isso retrata o contexto misógino presente no longa; a boa moça Skeeter, que aparece no início como um despontar de vigor da força feminina, disposta a trabalhar, fumar, mas sem se preocupar pela ausência de um namorado - status exigido naquela época para um provável futuro casamento - demonstra sua hipocrisia quando chamada para sair com um homem: muda de humor, fica animada, arruma uma bela roupa, alisa o cabelo e corre para o carro. Onde estava a forte moça independente? São várias rachaduras que se apresentam aos poucos nos discursos de The Help, que demonstram toda a sua falsidade; no fundo, é uma história feita para a elite caucasiana, que subestima as minorias e acredita na "boa ação" dos ricos e brancos para com os pobres negros.

E tudo piora com a presença de personagens unidimensionais que podem ser rotulados com facilidade extrema. Basta um olhar direcionado a Emma Stone para ver nela a protagonista boazinha - note, uma protagonista branca num filme sobre negros - , e não demora também para enxergarmos na personagem de Dallas Howard uma "vilã" típica. As personas aqui são falsas como o cabelo cheio de laquê das dondocas retratadas.

Entretanto, essa proposta cheia de estereótipos funciona em determinadas situações, e embora cause momentos constrangedores - a negra viciada em frango frito; Aibileen falando "You is smart", é o ápice do senso comum sobre os afro americanos - gera personagens interessantes, como a deslocada Celia Foote (Jessica Chastain) socialite que não é aceita por suas companheiras de classe. Celia é o estereótipo da patricinha voluptuosa, cheia de chiliques, mas que você vê no primeiro instante que tem "bom coração". A performance de Jessica Chastain em cima da persona evoca toda a verdade que é inerente ao personagem estereotipado, e leva todos os trejeitos e caras e bocas a um patamar elevado, dando literalmente vida ao estereótipo. Dessa forma, é interessante que numa determinada cena-chave, Celia esteja embriagada - é possível hiperbolizar ainda mais a personagem, notando o estudo atencioso da atriz para captar este exagero e transmiti-lo, mostrando um pouco de verossimilhança brotando do arquétipo.


E se Jessica Chastain auxilia na modelagem de sua personagem, Viola Davis também contribui vigorosamente para a construção de Aibileen. Apesar da mensagem do filme subestimar o poder de sua etnia, Aibileen nunca demonstra ser uma mulher frágil, apesar de transparecer seu sofrimento e suas emoções apenas com um olhar. Davis mostra cada sentimento da persona que encarna, mas sua face reluta em sorrir, ou chorar, tentando manter a expressão séria: o velho hábito de sentir dor ás escondidas, tendo que tocar a vida mesmo com o coração partido. Aliás, a cena em que Aibileen conta sobre a morte de seu filho - como uma mulher forte que suporta a dor -, deve ser a sequência que foi possivelmente responsável por suas indicações em tantos prêmios. Octavia Spencer faz bem o seu trabalho, é uma boa coadjuvante e retrata com veracidade Minny Jackson, mas não justifica ser a franca favorita em tantas premiações.

Com um design de produção primoroso, que remonta à época com perfeição, e uma direção de arte caprichosa, Histórias Cruzadas peca muito também por não possuir um diretor experiente: um cidadão com traquejo atrás das câmeras talvez soubesse onde não pesar tanto a mão, para não soarem tão apelativas certas cenas. Taylor não interfere no filme, não tenta dar sua colaboração como autor, ou tentar transmitir algo com seus takes. Pouco também influenciaria no discurso incorreto que Histórias Cruzadas têm, e que quase o implode como produção.

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