quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Invenção de Hugo Cabret


A Invenção de Hugo Cabret
(Hugo, 2011)
Aventura/Drama - 126 min.


Direção: Martin Scorsese
Roteiro: John Logan


Com: Asa Butterfield, Chloe Moretz, Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Christopher Lee, Emily Mortimer, Michael Stuhlbarg, Helen McCroy e Jude Law


Muito antes de se tornar cineasta, Martin Scorsese sempre foi um cinéfilo inveterado. Pode parecer o caminho natural das coisas - um apaixonado por cinema seguir a carreira de diretor - mas a verdade é que existe muita gente por trás das câmeras que não conhece de fato a história do cinema. Scorsese sempre foi um devoto da Sétima Arte, e possui cultura cinéfila suficiente para esbanjar em seus diversos filmes . Não a toa é o cineasta das referências, que tem ciência do percurso da arte ao longo dos anos, além de contribuir fazendo parte dela como um dos expoentes mais talentosos da cinematografia norte-americana de todos os tempos.

Considerado por muitos o melhor cineasta vivo, sem dúvida não havia opção mais sábia para a direção d'A Invenção de Hugo Cabret do que o talentosíssimo nova-iorquino nascido no Queens. Mais do que traquejo no manuseio das câmeras, o filme baseado no livro homônimo de Brian Selznick precisava de alguém que verdadeiramente respirasse cinema para coordená-lo. Sem conhecer a obra original , confesso que assim que Scorsese comprou os direitos de adaptação do livro para o cinema, pairou sobre mim e outros colegas uma grande nuvem de desconfiança. Afinal , por mais aficionado que um sujeito seja por sua arte, há naturalmente limites para trafegar sobre gêneros - e se existe alguém com gênero bastante definido em sua carreira, esse alguém é Martin Scorsese.

Mean Streets, Taxi Driver, Touro Indomável, Bons Companheiros, Gangues de Nova York e Os Infiltrados são exemplos fortes da nada leve lista de filmes que compuseram a respeitosa carreira de Scorsese. A brutalidade se tornou inerente as suas composições nas telas, muito porque Scorsese a vivenciou durante seu crescimento na violenta região conhecida como Little Italy. Como um diretor tão brutal e ''censura R'' poderia aceitar dirigir um longa teoricamente infantil? E, ainda por cima, utilizando uma tecnologia muito controversa nos dias de hoje - o 3D. Afinal, Scorsese representa uma entidade clássica , e se render a uma experiência que gerou tantos subprodutos fúteis e caça-níqueis nos últimos anos era algo , no mínimo, questionável.




Mas a verdade é que não se pode julgar nada antes da hora. A Invenção de Hugo Cabret revela-se mais um marco emocionante e desde já inesquecível da estupenda cinematografia de Martin Scorsese. Uma película simples, porém jamais rasa, que trata das origens da história do cinema, ao contar a paixão de um menino pela mágica sala escura que revela histórias - e se a narrativa de Hugo Cabret, a princípio, não tinha nada que combinasse com Scorsese, já podemos ver por aqui que semelhanças existem, e ao longo da projeção, amontoam-se.

Roteirizado pelo hábil John Logan - mente responsável por Rango, outro filme que soube lidar de maneira sutil e eficaz com referências ao cinema - A Invenção de Hugo Cabret narra a história de Hugo (Asa Butterfield), um menino que vive entre as paredes da estação de trem de Paris, tratando para que os relógios daquele lugar não parem. Ele tem o propósito de consertar um misterioso autômato encontrado por seu falecido pai, e para isso, faz pequenos roubos na loja de Georges (Ben Kingsley). Determinado a cumprir seu objetivo, ele é ajudado pela afilhada de Georges, Isabelle (Chloe Moretz) que possui ,curiosamente, uma chave que se encaixa perfeitamente na fechadura do autômato.

O script do longa certamente não é seu ponto alto, repleto de situações já conhecidas e com uma narrativa esquematizada, mas não era possível sair desse sistema: Hugo é, antes de mais nada, um filme de homenagem aos antigos clássicos, tendo assim seu foco não em reinventar a roda, mas em analisá-la da maneira mais saudosista e interessante, conseguindo trazer para as novas gerações a história da origem da Sétima Arte de maneira tocante, emocional e sutil. Diferente de outro longa desta temporada que remonta a clássicos, como O Artista, Hugo não utiliza das técnicas da época para reforçar sua nostalgia e escancarar suas referências. Usa uma história paralela, para contar sobre os acontecimentos da vida de Georges Mélies, por exemplo. Não apela, por tanto, nem aponta setas luminosas para sua "ousadia". Apenas trata com carinho os entraves reais da vida dos pioneiros do cinema, utilizando de outra narrativa tocante para tanto.




Aliás, esse paralelo traçado entre o cinema antigo e a narrativa contada pelo próprio filme é bastante chamativo. Há personagens coadjuvantes aos montes que servem de link direto ou indireto à personas e situações do cinema do final do século XIX e das décadas de 10, 20 e 30. O personagem de Sacha Baron Cohen, por si só, é a encarnação do humor físico desempenhado na época de Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd; todo o esquema de atuações do elenco de apoio suporta as referências aos primórdios do Cinema, onde o humor e os trejeitos quase teatrais eram considerados fundamentais.

Mas talvez o que mais mexa com o espectador seja a noção da paixão que Scorsese possui por sua profissão. Quando citei que era de se estranhar alguém como o diretor realizar um filme "destinado ao público infantil", era porque simplesmente não havia assistido ao longa. A Invenção de Hugo Cabret tem muito em comum com a vida de Scorsese, ligações que vão desde sua infância até sua vida recente. Hugo, afinal, é um menino deslumbrado por cinema, que ficava encantado quando seu pai o levava a uma sala de exibição. Ora, a conexão que isto tem, não só com amantes de cinema ao redor do mundo, mas principalmente com  Martin Scorsese aprimorando sua cinefilia ainda jovem, é claríssima, e gera uma força emotiva incrível, que se origina desse belo subtexto.

Ainda temos também, a história de Georges Méliès. Aqueles que viveram com tamanha paixão e dedicação ao cinema como Méliès, são pertencentes a um grupo seleto de artistas. O homem foi testemunha e agente importantíssimo nos primórdios da Sétima Arte, realizador de centenas de filmes, passando por uma fase negra quando vendeu as películas de suas produções para empresas que as derreteram para a criação de calçados. Não cabe a mim dizer se Scorsese é tão inclinado como Méliès foi para o cinema; comparações do tipo sempre serão nascentes de polêmicas desnecessárias. O que fica claro para nós, entretanto, quando vemos Méliès trabalhando em seu estúdio construído com paredes de vidro, é a imagem de um artista inebriado com sua obra - e é inevitável não ter um insight neste momento que nos remeta a Scorsese, que deixa um manifesto de amor à  hoje subestimada Sétima Arte, tratada como comércio por tantos pseudo-diretores".




No geral, é isso que o filme é: uma grande mensagem de afeto ao cinema. Tal mensagem é representada pelo amor de personagem a personagem; pelo carinho de Hugo com seu autômato; pela persistência de cada um por seu objetivo - assim como nunca Hugo desiste de reaver seu caderno, os verdadeiros cineastas nunca desistiram do verdadeiro valor do cinema. Por vezes, nos enxergamos  em mero exercício sensorial durante a projeção: analisando as referências metalingüísticas inspiradas - como nas cenas onde Hugo está prestes a ser atropelado por um trem, remetendo à primeira exibição dos irmãos Lumière - ou pelos gracejos simples de um ou outro personagem .

Nos perdemos também pelas belas imagens que o 3D primoroso do filme exibe: Scorsese realiza aqui seu primeiro trabalho com o 3D estereoscópico, e logo de cara faz uma das melhores apresentações tridimensionais que o cinema já viu. Sabe como passar as noções de profundidade, revelando que parece mesmo ter se dedicado a estudar a técnica, e consegue aplicar a tridimensionalidade até para realçar o drama de seus personagens - a neve contínua, a fumaça aparecendo em momentos oportunos - demonstrando que Hugo é, mais do que Avatar ou qualquer outro filme, um projeto realmente pensado para o 3D. Há passagens na trama que têm seu potencial dramático atingido apenas se assistidas com a tecnologia. Momentos singelos, que não devem ter sua surpresa estragada sendo contados aqui. Tudo isso, aliado a um design de produção soberbo, produz fotogramas de beleza surpreendente. Note também a inteligência da direção de arte ao aliar todos os cenários/instrumentos antigos com uma paleta de cores vivas que transmitem o "sonho" dentro da cabeça de uma criança.

Outro aspecto que nos deixa completamente extasiados na projeção são suas atuações.  Se Asa Butterfield consegue prender toda a atenção dos espectadores a si, revelando ter uma presença de cena admirável, principalmente para um ator de sua idade, as coisas ainda melhoram com sua química nada forçada com a talentosa  Chloe Moretz. Os dois levam suas cenas adiante com fluidez invejável, o que torna a experiência do filme ainda mais orgânica. Aliás, outro que se revela completamente entregue a seu papel - o mais delicado, já que trata de uma figura histórica - é Ben Kingsley, que exibe seu carisma costumeiro, encarnando o turbilhão de emoções que seu personagem se submete, mas tendo êxito, principalmente, ao trazer à vida a paixão que este tinha por sua arte.




A Invenção de Hugo Cabret é uma homenagem sem precedentes, filme que se revela extremamente vistoso e sentimental à primeira vista, porém se torna mais terno e importante depois de certo tempo. É uma daquelas apresentações que nos lembram do que a Sétima Arte realmente é feita - de idéias e de trabalho duro. Inspiração e transpiração nos trazem a um limiar de sucesso no cinema, que é o patamar no qual qualquer realizador deveria querer chegar: o de sonho. Não estou dizendo aqui que Scorsese é arrogante o bastante para ter a audácia de ensinar a alguém como transmitir a magia do cinema; mas fazê-la ficar eternizada é um bom e bem-vindo lembrete.


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