quarta-feira, 3 de agosto de 2011


A grande diferença entre um grande clássico e um filme cult é simples: Cult é aquele filme que você gosta e não necessariamente é tão bom assim (alguns até são), mas que por algum motivo você adora, se diverte e indica aos amigos. O caso é que na ânsia de encaixar esses filmes em alguma sessão, o Fotograma resolveu criar essa nova sessão, onde aqueles filmes amados e cultuados serão aqui comentados. Sempre de maneira leve e divertida, como pede um filme cult.

Miami Vice
(Miami Vice, 2006)



Diretor arrojado de filmes policiais, Michael Mann raramente se entrega a outros gêneros. Se O Último dos Moicanos e Ali são filmes históricos, Profissão Ladrão, Inimigos Públicos e Colateral são policiais desde sua essência. Tendo realizado apenas um filme realmente ruim, o inexplicável The Keep, Mann é bem subestimado nas premiações em geral. Esquecido pelo Oscar em 1995 por sua obra-prima Fogo contra Fogo - assim como ocorreu com Cassino no mesmo ano - Mann foi indicado apenas uma vez por O Informante. É uma pena, porém, que essa subestimação sobre o diretor ocorra também com Miami Vice, seu nono filme.


Tubbs e Sonny estão numa boate de noite. Sendo cuidadosos desde o princípio, estudando cada pessoa do ambiente, eles estão ali para pegar um criminoso, não necessariamente alguém importante. Com Linkin Park tocando ao fundo, os policiais conseguem seguir seu modus operandi mesmo no meio daquele caos. A partir dali, o caos se instala de vez e algo dá errado. No meio da ação, o telefone de Sonny toca. É Alonzo Stevens, seu informante, vivido por um ótimo John Hawkes. Muitas palavras desconexas, com um desespero crescente em sua voz, Alonzo pede a ajuda de Sonny e o encarrega de cuidar de Leonetta pois ele está fugindo da cidade. Não tarda para que a dupla saia imediatamente da boate para cuidar do possível caso que eles têm ali. E ao longo da projeção, a admiração por essa cena inicial só cresce pois, além de apresentada de maneira competente, ela é a porta para o espectador entrar no filme. Tubbs e Sonny saem do caso do cafetão para investigar o caso de Alonzo por pura conveniência do momento, por ser mais importante. E isso é algo que ocorre durante toda a projeção, diversas vezes. A sensação de impotência dá as cartas em Miami Vice.


O realismo com que Mann trata a trama policial é o fator que mais chama atenção no filme. O espectador é jogado no meio dos casos, no meio da ação, sendo localizado da mesma forma que os protagonistas. Uma passagem que prova isso é a conversa com o agente do FBI John Fujima, que os chama para a missão da mesma forma que o público fica sabendo, sem uma passagem prévia do agente teorizando com seus subordinados sobre o seu plano. Em algumas cenas, aliás, o público é apresentado à situação sem saber nada, com os protagonistas conversando normalmente sem explicar nada. Uma grande antítese aos filmes policiais onde tudo é explicado: se naqueles projetos sempre temos alguém novato para ser nosso representante em tela, aqui somos desafiados por Mann. Um respeito admirável a capacidade intelectual do espectador. E mais interessante ainda é ver que, ao longo da projeção, o espectador pode se ver aprendendo o trabalho dos detetives para acompanhá-los, como prova a excelente cena que Tubbs elabora datas falsas pra descobrir qual é a agência que possui um informante interno, apenas um exemplo dos vários que demonstram o perfeito raciocínio dos detetives.

Pouco antes da conversa, a crua cena da morte dos agentes do FBI após uma transação com os da Supremacia Brancos, neonazistas dos quais Sonny e Tubbs foram encarregados de prender, é o início do tratamento da violência que Mann trabalha. Diferente do caricatural exagero de um Bad Boys II e da censura PG-13 de um blockbuster comum, Miami Vice entrega um duro realismo em cada bala disparada. A urgência dos tiroteios, registrados pela soberba câmera do fotógrafo Dion Beebe, dá a sensação de que algo ruim vai acontecer. Sendo um projeto policial mais técnico e pesado, o filme submete os detetives aos testes mais impressionantes ao introduzir uma trama cruel e impiedosa. Nada de meros disfarces e identidades falsas (ou grampos telefônicos). A dupla pula de caso em caso e não sabe onde vai dar. Antes eram os "Supremacistas", depois Jose Yero. E agora? Quem será o bandido? Em pensar que tudo começou com um cafetão numa boate.

A imersão na infiltração é completa, complexa, intrincada. A brilhante cena de introdução de Jose Yero, em que Tubbs e Sonny se apresentam como transportadores de drogas é impressionante de tão real. A confiança no disfarce e no poder de suas palavras faz Tubbs inclusive acusar o traficante de agente do FBI, questionando se ele está disfarçado para pegar o esquema dos ditos transportadores. A ameaça final (envolvendo uma boa referência a Jackson Pollock, até) é arrasadora por mostrar quão habituados ao crime aqueles detetives estão. Essa competência incrível de Tubbs e Sonny é levada as últimas conseqüências. Sabemos que eles são capazes, mas o peso da investigação é tão grande que é fácil pensar que a maioria iria sucumbir ao Vício de Miami do título. E sobre competência, é dito profissionalmente. Emocionalmente, o grau é mais elevado ainda.

O desenvolvimento de personagens é a chave quando o roteiro toma os rumos mais dramáticos. Enquanto Tubbs é definido como um homem decidido, responsável, centrado, Sonny é o elo mais fraco da dupla. Mais emotivo e impulsivo, é Sonny que acabará se envolvendo mais do que deveria. E Colin Farrell capta com perfeição essas características de Sonny. Repare como Sonny parece ser um menino irresponsável perto de figuras mais imponentes como Isabella e o próprio Tubbs. Quando Isabella seca o cabelo de Sonny com a toalha, parece até a mãe dele. As cenas no chuveiro, tanto de Tubbs quanto de Sonny, mostram bem a diferença entre os dois. Enquanto a de Tubbs mostra seu amor e carinho pela namorada (não por acaso, uma policial, o que retrata a fidelidade de Tubbs pela polícia e pela amada), a cena de Sonny mostra a dúvida, a falta de decisão, o conflito, tudo pelo olhar. Nada mais natural, portanto, que Sonny seja o infiltrado que tem dúvidas sobre qual o caminho certo. E essa perigosa decisão do roteiro, que poderia soar clichê como Avatar ou Velozes e Furiosos, é trabalhada com brilhantismo por Mann.

O caminho que os detetives trilham é tão imprevisível que é natural como a gravidade que um deles acabe sucumbindo. Com Sonny sendo desenvolvido como mais imaturo, é normal a dúvida. Só por isso, o clichê já seria amenizado. Porém, Mann vai além ao subverter o clichê ao alterar o desfecho da jornada. Enquanto numa trama comum o infiltrado iria para o outro lado, em Miami Vice, Sonny não se deixa levar. Fora que, provando estar dirigindo um policial adulto como poucos, Mann abraça a emoção visceral sem medo. Não é pelos milhões e pela vida fácil de criminoso que Sonny se apaixona. É por Isabella. A cena de sexo dos dois é mais libertadora que prazerosa. O choro tem explicação. É o choro de saber que dificilmente ficarão juntos, desde quando se viram pela primeira vez. E a dor de saber que o desfecho pode não ser mesmo recompensador é o que torna o filme mais fascinante.

A angústia de estar solitário, sozinho no fogo, move os personagens. Não podendo confiar em nenhuma agência (o FBI precisou consultar a Miami-Dade para executar a ação federal), Tubbs e Sonny andam em carros de barões de drogas, os encontram e saem sem a mínima cobertura. E a eficiência do roteiro de Mann se nota até aí, nas sutilezas. Sabemos tanto que as agências são corruptas como Arcángel (o barão das drogas) é poderoso porque Tubbs viu que o sistema de cobertura de sinal do criminoso é coisa de alta inteligência, como a CIA. O desenvolvimento dos traficantes também é magistralmente realizado. Se Jose Yero é alguém em conflito contra os métodos dos protagonistas, Arcángel é um homem frio e enigmático. Por isso, quando chega o único momento de fúria, Mann o registra de costas, representando o autocontrole incrível que o traficante exerce em não deixar transparecer suas falhas e emoções.

Emoções, aliás, que é algo tão presente nos vívidos Tubbs e Sonny, é o que falta em Arcángel. A reveladora conversa do traficante com Isabella em seu quarto mostra bem o contraste entre os protagonistas e o antagonista. Esquematizando de maneira distante e incisiva um plano, Arcángel é objetivo ao dizer que ao fim do serviço, os transportadores devem morrer. O protesto da antes fria Isabella demonstra que ela se sentiu mexida (e também se apaixonou) por Sonny. Ao convencê-lo do contrário, Isabella pensa não ter deixado aparecer suas emoções, mas esse é um trunfo apenas de Arcángel, que capta pelo olhar (com a câmera de Mann fixa em seus olhos) a possível mentira. A dúvida que o traficante tem na relação perigosa com Isabella se concretiza, junto com o público, já que Mann é perfeito em não demonstrar com clareza se é amor ou ganância que movem a determinada personagem vivida pela excelente Gong Li.

A trilha sonora de John Murphy contribui muito para o clima de melancolia do filme. Investindo bastante no rock progressivo para pontuar a tensão durante os diálogos e segmentos mais cadenciados, Murphy utiliza desde Mogwai até Moby para aumentar a angústia. E se outro compositor escolheria uma trilha mais agitada para a ação, Murphy é feliz ao utilizar um piano mais agressivo e pausado, que só potencializa a gravidade das situações. Soberbo.

Esse pesar se reflete na fotografia. Ao fotografar os personagens de Mann sempre no escuro, sempre com um ambiente azulado, frio, Dion Beebe cria um ambiente triste e que, ao mesmo tempo, é extremamente realista. Utilizando um grão muito grosso, Beebe auxilia a direção frenética e quase-documental de Mann a estabelecer um policial de verdade. Momentos de puro primor técnico, como o tiroteio final, que possui um take em particular que é notável: quando um bandido é morto, o sangue espirra na câmera. Esta se levanta e aponta em direção á luz, mostrando com clareza o granulado da câmera e a selvageria do confronto, ao mesmo tempo em que contempla a luz de forma divina. Impecável.

E se Miami Vice é um triunfo narrativo e de desenvolvimento de personagens, quase um estudo, tecnicamente é um desbunde visual. Com a direção mais espetacular da carreira de Michael Mann, o filme se consolida como um belo exemplo de projeto incompreendido em sua época de lançamento. Agressivo, implacável, emocionante, Miami Vice ainda termina com uma tristeza desoladora. No epílogo, a carga emocional do encontro de Sonny e Isabella é de cortar o coração. A sensação de impotência diante da situação é notável de tão realista. O abraço é a chave do choro. Desde que Neil McCauley largou sua namorada para fugir de Vincent Hanna em Fogo contra Fogo, Michael Mann nunca deu um fim fácil a seus personagens. Ele sempre soube o poder de uma boa história. No clímax em especial, perfeito no ponto de vista técnico e narrativo, a melancolia é sentida pela maneira mais estranha que já se fez num filme policial de ação. Nunca ninguém ficaria triste porque um bandido morreu. Não por pena do bandido.

Mas porque o caso, que quase consumiu nossos heróis ao longo da projeção, foi perdido.




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