A grande diferença entre um grande clássico e um filme cult é simples: Cult é aquele filme que você gosta e não necessariamente é tão bom assim (alguns até são), mas que por algum motivo você adora, se diverte e indica aos amigos. O caso é que na ânsia de encaixar esses filmes em alguma sessão, o Fotograma resolveu criar essa nova sessão, onde aqueles filmes amados e cultuados serão aqui comentados. Sempre de maneira leve e divertida, como pede um filme cult.
Quero Ser John Malkovich
(Being John Malkovich, 1999)
Escritor imaginativo e incrivelmente inventivo, Charlie Kaufman é um dos roteiristas mais inteligentes que atuam em Hollywood. Suas tramas são sempre intrincadas, com desafios intelectuais e propostas de tramas sempre ousadas. Ao mesmo tempo, mesmo com essa mão boa para trabalhar com a racionalidade e com verdadeiros desafios mentais, Kaufman revela grande tendência emotiva em suas histórias. Para conseguir mesclar de maneira tão suave essas duas vertentes, de fato, é necessário um algo a mais, ser verdadeiramente genial. No seu trabalho de estréia, Quero Ser John Malkovich (1999), podemos encontrar quase todas as suas qualidades que viriam a ser mais exploradas no decorrer de sua vindoura carreira. E todas essas qualidades cristalinas, foram exibidas, pela primeira vez, numa narrativa verdadeiramente inovadora, intrigante e brilhante.
E Quero Ser John Malkovich, pode ser considerado, sem exageros, um verdadeiro clássico. Com muitas interpretações e detalhes sem paralelo existente em nenhuma outra obra de outro roteirista, é um filme que marca por ser singular em vários aspectos, e também por ser um espetáculo que estimula nossas mentes a ir a lugares nunca antes imaginados.
A trama imaginada por Kaufman desabrocha gradativamente como uma flor. Acompanhamos a princípio Craig Schwartz (John Cusack) um titereiro (o homem que manipulas as marionetes) profissional que está desempregado por não haver procura por seu trabalho no mercado. Até que um dia, Schwartz encontra um emprego no arquivo de papéis em um estranho prédio, e vai trabalhar no andar 7 1/2, um andar com teto menor, para empresas que precisam ''cortar custos''. Ali, Schwartz começa a se interessar por Maxine (Catherine Keener) - apesar de ele ser casado com Lotte (Cameron Diaz) - e faz uma descoberta impressionante: em uma parede do andar, há um tipo de portal, que permite àquele que o passa, 15 minutos na mente e no corpo de John Malkovich (este último interpretando uma versão ficcional de si mesmo). Tal fato incrível será a engrenagem central e fundamental para as reações sensacionais entre os personagens ao longo do filme.
Os roteiros escritos por Charlie Kaufman possuem um diferencial por estabelecerem um universo semelhante ao que vivemos, mas com detalhes absurdos que fazem tudo - absolutamente tudo - mudar de figura. Em Quero Ser John Malkovich, obviamente não é diferente. O que o escritor faz aqui é um estudo muito interessante sobre o ser humano - estudo esse que seria prolongado em seus projetos posteriores, como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, por exemplo, com caráter mais romântico. Esse debruçar sobre o homem vem de maneira quase científica: introduzir, no meio de uma sociedade dita ''normal'' um detalhe irreal e catastrófico, e absorver a reação de todos. No caso deste filme, o detalhe é simples, mas cruel: expor a mente de uma pessoa ao domínio público, e exercer, em diferentes escalas, um dos artifícios que os seres humanos menos gostam de ser submetidos - a manipulação.
Por isso o subtexto do titereiro com suas marionetes é tão importante e crucial para a obra. Vemos os personagens cobiçando a mente de John Malkovich, querendo ser ele pelo menos por 15 minutos que seja. Ora, o lema do titereiro é esse ''ver pelos olhos de outra pessoa, viver pelos olhos de outra pessoa''. Talvez a vontade de viver a vida de outro ser - uma celebridade - seja uma alfinetada aos acomodados e insatisfeitos com a própria vida. Quantos não se amontoam em frente ao sofá para ver Reality Shows ou fofocas diárias? Mas paralelamente a isso, repare no furacão que passa pelas vidas dos personagens principais após começarem a explorar o portal. Com detalhes imprevisíveis, as reações humanas são extremas e também inesperadas. Uma deseja a troca de sexo; outra cobiça poder e mais poder sobre a descoberta; alguns querem viver mais e mais; e outro tem o desejo mais primário: conquistar o amor de quem ele ama.
E o grande dilema que rodeia nossas mentes e nosso coração ao desenrolar da trama - que vai num crescente rumo à obliteração como Clube da Luta, ou Magnólia - é o da dinâmica entre titereiro e marionete, afinal. Aquele que se apossa do corpo de outro, não terá a própria identidade, e viverá pelo corpo de outro ser. Aquele que tem o corpo apossado, simplesmente existirá, mas não VIVERÁ efetivamente. Uma relação dolorosa para ambas as partes, mas que nos revela algo a mais: até mesmo aqueles que dominam o corpo alheio, que seriam os denominados ''titereiros'' de humanos, são na verdade meras marionetes, controlados por seus desejos irracionais e irrefreáveis (aqueles que citei no fim do parágrafo anterior). Alguns, tomam a racionalidade e abandonam seus desejos, se livrando dos fios que os comandam. Outros, entretanto, dão poder completo a seus desejos, e permanecem como meras marionetes, sem expressar vontade própria, pela eternidade.
Diante disso, é preciso grifar um momento ápice de genialidade presente no longa. John Malkovich, personagem do filme, é, afinal, a pessoa mais manipulada e mais ''violada mentalmente '' da trama. Todos adentram seu corpo, tomam atitudes por ele, vivem sua vida. É a marionete em pessoa. Então, tomando parte do ser que ele é - um famoso ator, que vive muitas vidas e sofre tanto assédio - , o próprio filme formula a pergunta '' O que acontece a um homem que adentra o próprio portal?'' Ora, a resposta transposta em tela é caótica. E não seria diferente: um ser que é manipulado constantemente, quando encontra o seu eu interior, toma um choque. O resultado não seria outro além do caos. Brilhante sacada captada pelas lentes de Jonze com sucesso.
Aliás, sem sua equipe preciosa, Quero Ser John Malkovich não teria tanta força. Seu elenco é excelente, com destaque para a competente Catherine Keener, imersa completamente no papel, e uma ovação para o Malkovich ator. Interpretar a si mesmo já não deve ser fácil - repare nas variações delicadas da interpretação, quando Malkovich está entre populares, e entre pessoas do seu meio - e ainda mais interpretar um terceiro incorporado ao seu corpo. Gênio da atuação, é o que se sai melhor no filme que carrega seu nome.
Na parte técnica, temos sucesso em todas as partes. A trilha do mestre Carter Burwell é precisa ao montar, através de notas singulares de piano, verdadeiras sinfonias, que despertam desespero e aflição nos momentos certos, sem perder em nenhum ponto a originalidade de sua composição. Também é válido dizer que em meio a um filme complexo, com muitos pontos de vista e conceitos inéditos e inexplorados que brotaram da mente fértil de Charlie Kaufman, é imprescindível a presença de um bom montador, papel que Eric Zumbrunnen exerce formidavelmente, sabendo cortar velozmente nos momentos certos, dando ao filme um ar enxuto que só auxilia no produto final. Por fim, é impossível não saudar Spike Jonze, diretor que tem um olhar tão peculiar e dado a estranhezas quanto à imaginação e roteiro de Kaufman. Uma dupla perfeita, onde Jonze consegue captar em tela com excelência todas as emoções propostas no papel por Kaufman.
Uma obra de arte exuberante e um marco no cinema em geral, Quero Ser John Malkovich é um filme que aborda temas com sutileza e adequação, e estimula a mente dos espectadores com conceitos inteligentíssimos, intrigantes e completamente originais. Para finalizar, analisemos a bela cena de abertura que, além de esteticamente deslumbrante, possui muito significado para a obra: Uma dança com música alta e tensa, de uma marionete. Ela salta, corre, e então percebe algo que não esperava. Esperneia, desespera-se, quebra seus pertences e cai no chão, aos prantos. Tudo isso, pois ''vê'' que estava sendo manuseado por um titereiro. E não há tormenta maior, para qualquer ser, do que ser manipulado.
Diante disso, é preciso grifar um momento ápice de genialidade presente no longa. John Malkovich, personagem do filme, é, afinal, a pessoa mais manipulada e mais ''violada mentalmente '' da trama. Todos adentram seu corpo, tomam atitudes por ele, vivem sua vida. É a marionete em pessoa. Então, tomando parte do ser que ele é - um famoso ator, que vive muitas vidas e sofre tanto assédio - , o próprio filme formula a pergunta '' O que acontece a um homem que adentra o próprio portal?'' Ora, a resposta transposta em tela é caótica. E não seria diferente: um ser que é manipulado constantemente, quando encontra o seu eu interior, toma um choque. O resultado não seria outro além do caos. Brilhante sacada captada pelas lentes de Jonze com sucesso.
Aliás, sem sua equipe preciosa, Quero Ser John Malkovich não teria tanta força. Seu elenco é excelente, com destaque para a competente Catherine Keener, imersa completamente no papel, e uma ovação para o Malkovich ator. Interpretar a si mesmo já não deve ser fácil - repare nas variações delicadas da interpretação, quando Malkovich está entre populares, e entre pessoas do seu meio - e ainda mais interpretar um terceiro incorporado ao seu corpo. Gênio da atuação, é o que se sai melhor no filme que carrega seu nome.
Na parte técnica, temos sucesso em todas as partes. A trilha do mestre Carter Burwell é precisa ao montar, através de notas singulares de piano, verdadeiras sinfonias, que despertam desespero e aflição nos momentos certos, sem perder em nenhum ponto a originalidade de sua composição. Também é válido dizer que em meio a um filme complexo, com muitos pontos de vista e conceitos inéditos e inexplorados que brotaram da mente fértil de Charlie Kaufman, é imprescindível a presença de um bom montador, papel que Eric Zumbrunnen exerce formidavelmente, sabendo cortar velozmente nos momentos certos, dando ao filme um ar enxuto que só auxilia no produto final. Por fim, é impossível não saudar Spike Jonze, diretor que tem um olhar tão peculiar e dado a estranhezas quanto à imaginação e roteiro de Kaufman. Uma dupla perfeita, onde Jonze consegue captar em tela com excelência todas as emoções propostas no papel por Kaufman.
Uma obra de arte exuberante e um marco no cinema em geral, Quero Ser John Malkovich é um filme que aborda temas com sutileza e adequação, e estimula a mente dos espectadores com conceitos inteligentíssimos, intrigantes e completamente originais. Para finalizar, analisemos a bela cena de abertura que, além de esteticamente deslumbrante, possui muito significado para a obra: Uma dança com música alta e tensa, de uma marionete. Ela salta, corre, e então percebe algo que não esperava. Esperneia, desespera-se, quebra seus pertences e cai no chão, aos prantos. Tudo isso, pois ''vê'' que estava sendo manuseado por um titereiro. E não há tormenta maior, para qualquer ser, do que ser manipulado.
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