Entretanto, Badlands não se passava na Era Medieval, e sim na década de 50, no meio-oeste dos Estados Unidos. Uma história de contos de fadas não envelhece, é atemporal - outro objetivo explicitado pelo diretor, de fazer o filme ser ''suspenso'' no tempo - e nesse sentido Badlands parece perfeito. Longe de ser um filme de época anacrônico, é um produto que nasceu no meio da Nova Hollywood, um momento revolucionário para o cinema norte-americano, e que por se desenhar como mais um belo estudo da mentalidade humana, se revela um verdadeiro marco. Marco esse, que, como muitos outros longas alternativos de sua época, teve orçamento diminuto - apenas 500 mil dólares foram disponibilizados para a produção, valor que foi estourado antes do fim das filmagens, levando Malick a pedir auxílio de amigos (!) para encerrar a produção - mas qualidades vitais para qualquer longa, muito vistosas.
Narrado pela personagem de Spacek, o roteiro de Malick tem uma agilidade correta para um filme sobre jovens, e consegue otimizar cada linha do script ao utilizar sua estrutura a seu favor. Por ser um longa narrado, é possível transbordar a tela de imagens variadas, que geram oportunas elipses temporais - afinal, o jovem casal fica fugindo por um bom tempo - sem perder sentido, graças á pontual narração da personagem Holly. Esse aspecto de narrações em off - de modo geral - causam uma sensação contínua de explicação de roteiro - algo que não ocorre aqui, e nem nos filmes de Malick que vieram depois - já que cada frase possui sutileza e sensibilidade, sem parecer didático, mas sim um informe mais milimétrico dos personagens.
Personagens esses , que são o coração do longa. É através deles que o roteiro se permite realizar o estudo de mentalidade humana, e sua comparação Homem X Natureza. É irônico perceber, aliás, o contraste que permeia todo o filme, e que ilustra essa mensagem de dualidade tão bem. A natureza, representada de maneira belíssima pelos ''Badlands'' - regiões montanhosas recheadas de canyons e modulada agressivamente pela erosão - é considerada, no âmbito geral, selvagem: um local onde animais perigosos vivem, sem a proteção de um teto, um lugar sem lei. Sarcasticamente, esse local, na produção, é um ambiente calmo, bonito e que exala perfeita harmonia. Já os homens, ditos ''civilizados'' são aqueles que aderem á mais pura selvageria. Kit é a demonstração mais perfeita disso: é tão animalesco, psicopata, que mata uma fileira de pessoas por onde passa, e de maneira tão incompreensível e sem sentido, que gera risos nervosos na platéia.
E ele não carrega o fardo e emblema de psicopata sozinho. Holly o acompanha realizar barbaridades de diferentes tamanhos, e demonstra uma perfeita complacência, aceitação, comodidade. Talvez seja a mais doente dos dois - afinal, pior do que o louco, é aquele que dá razão a ele. Perdidos nesse espírito pueril, jovem e tresloucado, é um reflexo da juventude de quase todas as gerações: pessoas que metem o pé na estrada, cometem loucuras, se amam, e acham que aquela situação momentânea, claramente passageira, pode - num devaneio - ser eterna. Ora, só são eternas em contos de fadas - e justamente por isso, Badlands é um conto de fadas clássico, com direito a mortes, execuções e palavrões, destinado, na nossa era, não a educar criancinhas para não adentrar florestas, mas divulgar ao mundo uma crítica e um estudo sobre a mentalidade distorcida do homem, e sua disparidade negativa frente ao equilíbrio perfeito da natureza.
E se a psicopatia era vital para esboçar a desnaturada essência humana, Martin Sheen e Sissy Spacek incorporam a doença mental do casal de forma complementar e engrenada, encarnado cada um, diferentes características da patologia: Kit é a emoção jovial, a violência irracional, a adrenalina e a raiva animal; Holly é a frieza, a ausência de sentimentos, o fator que não se espanta, que admite como natural o absurdo. A exposição dessas emoções é tão chocantemente realista e crível, que chegamos à conclusão de que não haveria atores melhores para os papéis. Perfeitos. Outro que transmite perfeição, é Terrence Malick como diretor. Combinada com uma fotografia precisa, perfeita, e que capta takes abertos de paisagens deslumbrantes, a direção de Malick transpira vasta experiência - que Malick certamente não possuía em seu trabalho de estréia - uma exatidão nas horas de comandar closes, coordenar cenas que vão da pura absorção da atuação, até perseguições mais elaboradas. Além disso, sabe o momento de apreciar um acontecimento na duração certa, e de contemplar nas horas certas. Gênio é gênio, e ele não precisa muito mais do que 95 minutos pra mostrar que sabe muito da arte que comanda.
Badlands leva sua mensagem e sua perfeição até no título. Badlands é o nome dado a formações rochosas erodidas, que formam montanhas, vales e canyons. Recebeu esse nome por se tratarem de terras desgarradas, duras de se atravessar por serem selvagens e irregulares, no filme, já poderia ser ''badlands'' simplesmente pelo fato da dupla assassina passar por ali. Se no Brasil vemos ''Terra de Ninguém'' no título, essa terra pode muito bem ser nosso planeta, e o ''Ninguém'', por ser habitada por humanos que se revelam tão anárquicos,violentos e doentes, em diversos momentos.
FICHA TÉCNICA:
Terra de Ninguém (Badlands, 1973) 94 min.
roteiro: Terrence Malick
fotografia: Tak Fujimoto, Stevan Larner e Brian Probyn
trilha sonora: George Tipton
direção de arte: Jack Fisk
montagem: Robert Estrin
estrelando: Martin Sheen, Sissy Spack, Warren Oates
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