terça-feira, 9 de agosto de 2011


Terrence Malick realizou seu segundo filme com parcimônia. Depois dos problemas na filmagem de seu debut, Badlands, Malick ganhou uma equipe mais profissional e mais tempo. Ao ser bem recebido pela crítica pelo primeiro trabalho, o diretor conseguiu um bom orçamento, 3 milhões de dólares, e teve maior visibilidade para o público em geral, já que contava com Bert Schneider (lendário produtor nos anos setenta) na produção. Porém, em Cinzas no Paraíso, os produtores conheceram mais o perfeccionismo do diretor. Se Edward Pressman (produtor de Badlands) tinha dado controle criativo total para Malick em 1973, Schneider não fez diferente. Resultado: Malick começou um trabalho diferente, experimentando imagens avulsas da natureza e rebuscando mais ainda o complicado trabalho de narração em off já realizado em seu primeiro longa. E demorou dois anos na pós-produção do filme. Porém, se do ponto de vista técnico e comercial Malick estava deixando seus produtores enfurecidos, não se podia dizer o mesmo na forma artística.


O cuidado excessivo com a montagem do filme, a inserção da trilha sonora de maneira diferente da ordem na qual foi composta e o complicado processo de mixagem de som tornavam o filme mais e mais complexo visto pelos olhos de dentro da Paramount (empresa produtora do filme). Se durante as filmagens o ritmo era lento e Malick constantemente refazia cenas e reescrevia diálogos, na sala de edição a obsessão pela perfeição era maior ainda. Como disse Schneider no livro Easy Riders, Raging Bulls: "Richard Brooks escolheu Gere, montou e lançou Mr. Goodbar enquanto Malick ainda estava na pós-produção. Porque Terry não conseguia resolver o filme".

Sim, Cinzas no Paraíso tem sua boa parcela de narração e imagens que não são fundamentais a trama. Porém, quando se analisa o brilhante subtexto que Malick trabalha no filme, percebe-se que cada segundo dos dois anos valeram a pena. Cada take tem um significado maior do que aparenta, tornando o filme uma experiência surpreendente. É na mensagem que a trama, um tanto convencional, se destaca. A lentidão do diretor é perfeitamente justificada quando se analisa a proposta.








Desde o início, Malick já mostra um aprimoramento desde sua estréia. A narração que determinou Badlands como um conto de fadas está presente também, com um preciso tom de voz fabulesco imposto pela menina Linda Manz. A consciência no metafísico também surge mais decidida ("Deus sequer nos ouve..."). E se a direção de Badlands era mais contida e apenas acompanhava os personagens, sem floreios, aqui em Cinzas no Paraíso uma evolução estilística visível é notada. No início do filme, na fábrica, Malick inclusive introduz takes com câmera na mão, o que voltaria a ocorrer em uma das belíssimas sequências no campo de trigo. A utilização da grua também é visível e sutil, precisa. E justamente esse take com grua, dos bóias-frias no trem, é o que precede a apresentação da casa do fazendeiro vivido por Sam Shepard.

O take solene, introduzido por um cross-fade lento, ostenta a aura mítica da belíssima casa no meio do campo de trigo, foi imortalizada como a capa do DVD deste filme lançado pela Criterion. Em nosso primeiro contato, já sabemos que aquele será o palco dos conflitos humanos que o trio protagonista irá vivenciar. Gênio é assim, provoca isso no espectador, o avisa com sutileza sua proposta, com respeito pela intelectualidade de quem está do outro lado.

E se um upgrade de direção é visível, há também uma reinvenção de postura no roteiro. Em Badlands, Malick era ácido em estabelecer uma atmosfera fria, decadente, em torno de seus personagens. A psicopatia do ser humano era retratada de forma visceral, tanto ativa (por Kit) quanto passiva (por Holly). E em Cinzas, somos apresentados a Bill logo com um momento de explosão de fúria do mesmo. Porém, a diferença se dá ao longo da narrativa, quando vemos os humanos ali presentes com qualidades contagiantes. A voz de Linda também embala esses sentimentos bonitos, mostrando as qualidades das pessoas trabalhadoras do campo, que já haviam ganhado uma bela homenagem nos créditos iniciais, que demonstram todo o amor de Malick por eles. O diretor ainda realiza um competente plano gêmeo para mostrar a alegria de um sapateador, em torno de uma fogueira festiva. Ternura e amizade, pura e simples, com um violinista divertido embalando a trilha. Os problemas, porém, continuam. O humano continua irracional e a balança que o diretor usa para medir o destempero do homem é a natureza.








Se em Badlands a Natureza era apenas um mero pano de fundo para a fuga do casal protagonista, em Cinzas ela se torna uma personagem vívida, um organismo que dita a narrativa. E Malick registra esses momentos como ninguém. A cena-chave é a da colheita. Quando a colheitadeira passa por cima do trigo, com Abby retirando os excessos, Malick mostra a reação dos animais em relação aquilo. E essa sensação da natureza observando o ser humano se instala em diversas cenas. Bill e Abby estão se divertindo na água, andando e pulando, mas Malick faz questão de nos mostrar que há jacarés assistindo tudo, de longe. Claramente, é a Natureza que manda ali, é a força em equilíbrio que reina o local. E se nos futuros filmes o diretor analisa o quanto o ser humano pode aprender com o Ambiente, é aqui que o início da complexa análise é realizado.

O equilíbrio lindíssimo entre Homem e Natureza é o necessário para se viver no Paraíso. O belíssimo campo de trigo, o tal Paraíso do título, é um lugar fundamental para esse equilíbrio. Seria impossível viver sem a Natureza em lugar tão vasto e rico para a mesma. Para registrá-lo de maneira divina, Malick buscou inspiração nas pinturas de grandes artistas. O Crepuscular campo é, na verdade, o Mundo de Christina (http://migre.me/5pW6o). Richard Gere olhando triste a janela do patrão é a Janela da Noite de Hopper (http://migre.me/5pW7q) e a casa majestosa do Fazendeiro, na verdade, é a Rail Road (http://migre.me/5pW9F). Nada mais justo que arrancar, do excelente Néstor Almendros, uma das melhores fotografias da história do Cinema. Transportar o Paraíso para as telas não é fácil e Malick e Almendros constroem um, particular.
E essa tarefa complexa de equilibrar duas forças tão distintas chega a se concretizar em tela. E, no fundo, quando analisamos a trama (um tanto trivial, um drama romântico), é sobre esse subtexto inteiro que o filme trata. Um dos homens consegue estabelecer esse contato direto. Aproveita a Natureza, compreende-a (claro que tudo interpretativo, Malick nunca é didático). E a retribuição é imediata. Malick filma planos inteiros dos campos esvoaçantes, dos animais em paz. Tendo seu ápice na belíssima tomada da planta crescendo, germinando, o equilíbrio é lindo e Malick fica claramente feliz com sua narrativa, afinal os personagens realmente aprenderam o que o diretor sempre almejou. Mas não dura muito tempo.








A trama do filme depende bastante do desenvolvimento dos personagens. E, mesmo distante e apresentando ainda resquícios da frieza de sua estréia, Malick é extremamente bem sucedido ao gastar todos os primeiros trinta minutos com um tom atmosférico incrível que insere o espectador no drama dos personagens. Nisso, é desnecessário dizer que o diretor arranca performances memoráveis de todos os envolvidos. Repare como Gere olha distante e apreensivo, numa clara reflexão de Malick para a natureza selvagem de seu caráter. Brooke Adams também oferece instantes sublimes, como aquele que o diretor registra o rosto apreensivo da indecisa mulher que agora se vê numa encruzilhada emocional. Sam Shepard também realiza seu trabalho com exímia competência e até mesmo os coadjuvantes, como Linda Manz e Robert J. Wilke, estão soberbos.


As interiorizações dos personagens são fundamentais, mas é quando a tensão se explicita que a união dos temas Homem vs Natureza se instala de vez. Quando vão caçar pássaros, interferir na Natureza, Bill e o Fazendeiro vão empunhando espingardas. O olhar perdido de Gere e a ternura no olhar de Shepard são registrados com clareza. O tiro é ouvido e quando Bill dispara no chão, a raiva contida é denunciada em seus olhos, ao passo que a ternura do Fazendeiro vira apreensão de imediato. O homem tem sim suas virtudes, mas aqui ele continua sendo aquele Kit Carruthers vivido por Martin Sheen. A cena inteira remete a um duelo e é fácil se lembrar da atmosfera de faroeste de fuga que Badlands tinha, que era visível na aparição de figuras tensas como o senhor vivido pelo próprio Malick no filme de 73. Em comum, há o registro. Os olhos serem a janela da alma nunca fez tanto sentido quanto nos filmes de Terrence Malick.


Analisando esse caráter do duelo, a escolha da menina Linda como narradora não poderia ser mais acertada. Sendo uma mediadora, não tomando um partido, ela faz com que o espectador tire suas próprias conclusões no meio do fogo. Ainda dando o já citado tom fabulesco para história, a narração em off não tem um papel tão vital quanto em Badlands, mas se demonstra igualmente acertada e tão impressionante quanto em níveis simbólicos para a narrativa e as interpretações perante a mesma.








E as Cinzas no Paraíso se instalam no momento exato. O amor que o Fazendeiro sentia no coração era puro, incrível. Tímido, o homem enfermo se reservava a adorar aqueles cabelos negros e esvoaçantes de Abby. Ainda que explorando a sua terra (e, por consequência, a Natureza), o homem é bom, como a própria narradora imparcial reconhece. E é sublime e desolador o momento que Sam Shepard olha para a câmera após observar Gere e Brooke de longe. É uma estrada para o inferno, consciente, mas incontrolável. Sam olha no fundo dos olhos do espectador, por um breve instante (que acaba com um imponente cross-fade), como se perguntasse á natureza selvagem humana dentro de cada um de nós: Vocês reagiriam diferente? Vocês não fariam o que eu estou prestes a fazer? O momento é tão poderoso que é necessário ver. E essa incursão no lado mais cru de nós mesmos nunca foi tão dura.


Como a cena da caça aos pássaros denunciava, claramente o impasse não poderia acabar de outra forma. E a vergonha daquele olhar de Sam para o espectador é tão grande que a própria Natureza se manifesta. Se Ela gosta tanto de se sentir equilibrada com o ser humano, quando o fio se rompe nada mais claro que um ato inexplicável acontecer. Um estopim. O tempo de equilíbrio acabou. E o resultado do fim do impasse é tão cruel e visceral que a força maior, a Natureza, faz o que pode para não compactuar com isso. O cavalo simplesmente sai. A repulsa é maior que tudo e não há como um animal tão distinto e belo se submeter a um ser retrógrado e infantil como o tal Ser Humano.


E quando a Natureza está muito acima de nós para tomar uma decisão definitiva, que seja então o Homem. Cinzas no Paraíso até dá a impressão de se estender demais, mas demonstrando imenso respeito a seus personagens, fecha o seu arco de maneira satisfatória para conferir dignidade a quem merece. Aquela altura, naquele longínquo 1916, Terrence Malick aprendeu que o ser humano tem suas imensas virtudes, como a amizade do trilho do trem. A carismática Linda é a prova disso e Abby se demonstra vítima das circunstâncias e de seu próprio espírito. Ainda temos muito a aprender com a Natureza.








O equilíbrio entre as forças é o necessário. E nada foi alcançado ainda. Falta a humildade, a busca pelo conhecimento, a racionalidade. Esse debate só seria visto novamente em Além da Linha Vermelha, quando o ser humano melhora a postura. Porém aqui, quando vemos o fim do duelo e acompanhamos a triste trilha de Ennio Morricone, não há como pensar de outra forma. E Malick prega seu pensamento metafísico de forma genial. Precisamos evoluir.


No fundo, até o Paraíso é uma Terra de Ninguém.

FICHA TÉCNICA:
Cinzas do Paraíso (Days of Heaven, 1978) 94 min.
roteiro: Terrence Malick
fotografia: Nestor Almendros
trilha sonora: Ennio Morricone
direção de arte: Jack Fisk
montagem: Billy Weber
estrelando: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz, Robert Wilke





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