segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Cult: Elefante



A grande diferença entre um grande clássico e um filme cult é simples: Cult é aquele filme que você gosta e não necessariamente é tão bom assim (alguns até são), mas que por algum motivo você adora, se diverte e indica aos amigos. O caso é que na ânsia de encaixar esses filmes em alguma sessão, o Fotograma resolveu criar essa nova sessão, onde aqueles filmes amados e cultuados serão aqui comentados. Sempre de maneira leve e divertida, como pede um filme cult.

Elefante
(Elephant, 2003)

John é um adolescente comum. Algo o aflige, mas não se sabe o que é. Ele está chegando no colégio, dirigindo o carro, pois seu pai não está bem o bastante para conduzir. Elias também é comum, gosta de fotografia e passear no parque. Sua afeição pela arte é grande a ponto de abordar um casal desavisado para uma breve sessão de fotos. Acadia, amiga de John, o consola pelo seu choro contido, mesmo sem saber por quê. Depois, vai para seu seminário sobre opção sexual. Nathan, garoto atlético e jogador de futebol, sai do campo para falar com sua namorada. Ainda que levemente assediado por três amigas populares, ele parece gostar de sua namorada. Percebe o elogio e deixa-o para trás, sem foco. Não teve importância. O que é importante fica em foco.

Já Michele é uma "freak". Ela não está satisfeita com algo, mas também, no fundo, é comum. Insatisfeita com seu modo de vida, um dilema crescente. Porém, ela percebe algo no campo de futebol. O céu está bonito e enigmático hoje. Ele passa normalmente, tranquilo. Está como qualquer outro dia, comum, mas carrega de alguma forma, uma atmosfera.

Parece que alguma coisa importante vai acontecer.



Elefante, o brilhante filme de Gus Van Sant, coloca sua alma nos adolescentes de Portland em um dia normal no High School americano. Angustiados, felizes ou indiferentes, todos ali compartilham da tal atmosfera. Muitos a presenciam, poucos a sentem. O palco é o Colégio, mas o que é um palco além de uma mera alegoria? Comuns ou não, os personagens são o que importa. Eles é que ficam no foco das lentes de Van Sant.

Num ambiente tão vasto quanto o colégio, é difícil manter o controle sobre tudo. O plano fantástico no campo de futebol se foca em um ponto só. De vez em quando, aparece um ou outro jogador, mas o jogo está acontecendo à direita da câmera. Não adianta, pode-se tentar o quanto quiserem, nem tudo fica no enquadramento. Algo pode estar acontecendo por aqui e não se pode nem prever ou imaginar. É aqui que Michele toma o plano, no seu centro. Temos alguém importante o suficiente. Tão importante que o foco vai para ela.

Essa lógica visual de Van Sant com o magistral fotógrafo Harris Savides é precisa. Seus personagens, sempre, estão no plano principal, no foco. Como David Fincher fez em A Rede Social, o fundo é distorcido. Porém, se na obra-prima de 2010 a distorção era para ilustrar que o mundo exterior não importava para o egocentrista Mark Zuckerberg, aqui em Elefante o fundo não é focado porque simplesmente ele não importa.



A narrativa não convencional, que mais observa seus personagens que os analisa, que mais retrata um dia normal do que conta uma história, acaba dando liberdades para Van Sant utilizar da criatividade para montar, dirigir e desenvolver a sua crônica. Armado de uma montagem inventiva, dele próprio, Van Sant vai e volta com frequência no tempo. Dando margem para diversos pontos de vista, o diretor divide a estrutura em capítulos não-numerados com o nome dos personagens-chave. Cada passo que John, Nathan, Elias, as amigas e Michelle dão, é motivo de registro. A foto que Elias tirou de John pode ter sido agora para eles, mas para Michelle, essa foto só é vista perto do final. John pode ter brincado com o cachorro agora, mas só depois que as amigas viram. O longa não tem pressa: conta os momentos de cada personagem dando total atenção, se desviando apenas para ir para outro.

Essa observação é rica e executada de maneira incrível, porém numa tragédia, o motivo é o mais triste. E em Elefante, saber o final da projeção torna a experiência muito mais angustiante. Como o Irreversível do genial Gaspar Noé, o filme utiliza dos sentimentos do público com a tragédia para tornar a experiência, em teoria catártica, em uma tristeza crescente. Como disse Hitchcock uma vez (adaptado) "um susto é momentâneo, mas a expectativa de saber dele dura eternamente." Ambos os filmes utilizam de uma montagem rebuscada para impor sua motivação. Distanciam-se, porém, na abordagem delas; se Noé inverte seu filme para emocionar, Van Sant usa de seu final conhecido para o mesmo. Para quem conhece, não há problema: o diretor encaixa a entrada dos atiradores no colégio pouco antes de introduzi-los na película.

E para criar expectativa, há o apego a imagem. Van Sant e Savides vão seguindo seus personagens com parcimônia, indo á todos os cantos do colégio, porque não querem perder um só detalhe. Não têm para um cineasta algo mais belo que uma imagem. Os planos-sequência são, em sua essência, a demonstração máxima de amor á imagem. O corte seria, interpretando, a morte de um instante. Em Elefante, a urgência é pertinente: a morte não seria só do instante.



A tal atmosfera do dia, estranha, começa a ganhar contornos aos 45 minutos. Já havíamos visto Alex e Eric, mas não os conhecíamos. O primeiro, apenas um estranho no ninho, vítima do bullying, provavelmente novo no colégio. Observador, inteligente, frio. O colégio o incomoda. O segundo é pouco abordado, distante, desligado, pouco inteligente. Ambos gostam de cultura. E de armas.

Porém, quando vamos para a casa de Alex, Van Sant começa uma jogada interessante. Além de desenvolver seu clímax, o diretor e roteirista especulam os motivos daquilo. Alex vê um documentário sobre nazismo passando na TV. Toca seu piano com competência, mas com raiva. Lê livros. Odeia o Bullying. Joga games violentos (Van Sant mostra um trecho do massacre em primeira pessoa, sendo sugestivo brilhantemente). E, principalmente, como dito anteriormente, gosta de armas. Sem ter uma resposta definitiva, Van Sant sugere todas. Mas não é por isso que não tem uma preferida. Após entrar no site de venda de armas, o tempo se fecha. Começa o fim, o tempo de mudança, a melancolia se instala. Começa a Agnus Dei da missa Elefante.

E quando conhecemos o porquê disso tudo, momentos se tornam eternos na mente. O desenvolvimento de personagens em Elefante é tão esplêndido porque ele não precisa de arcos para existir; só precisa de singelos instantes. É John tendo seu último instante inocente no filme, devidamente registrado na precisa câmera lenta do filme. É ver Michelle, sempre enquadrada de perto, num plano aberto na quadra, sabendo que ali é que ganha sua liberdade. É ver Elias revelando suas amadas fotos. Ver as três amigas almoçando, aparentemente de maneira trivial. Ou Nathan conversando com sua namorada. Ou Alex tapando seus ouvidos para evitar o barulho caótico e uníssono do espetáculo "farreliano" das aparências: o refeitório do colégio. E, até mesmo, o instante mais honesto da produção; nunca beijados, Alex e Eric se beijam. Não por serem homossexuais ou por desejo, mas por simples conveniência. A morte é certa, pra que pudores? Há apenas o momento.



No massacre, o caos se instala de verdade. Os planos teóricos se tornam práticos. A falta de ética se torna imoralidade. Por amar cada vítima ali, Van Sant tenta ser frio para não privilegiar ninguém. É nesse clímax que conhecemos a personificação da mensagem do diretor. Benny surge, assim, com uma hora de filme, ajudando Acadia. Ele anda em seu traje amarelo, curioso, para saber o que está acontecendo. Ele acabou de surgir. E se torna, perigosamente, o foco do enquadramento. Triste saber o quão efêmera essa tal de Vida é.

E se há frieza, é porque todos, sem exceção, são vítimas. Alex anda no corredor com seu fuzil de assalto. Ele mira no campo do enquadramento. Ele fica ao fundo, pois o foco é a arma. Se a High School é vítima de Alex, não seria Alex uma vítima da arma?

Assim, Elefante convida seu espectador para sua missa fúnebre. Convida-te para ser o voyeur de um réquiem para um sonho. Van Sant ama seus personagens incondicionalmente, não quer se distanciar deles, mas quando é necessária, a câmera tem que ir embora. Se distanciar, vagarosamente, porque não quer ir, mas precisa. O personagem, dentro de um conveniente freezer, se tornou frio demais para ser visto. O personagem em foco não é mais alguém para se amar ou observar. É alguém que não dá pra compreender, um monstro, um ser que não pode ser explicado porque não tem uma só explicação. É alguém que pode ser diferente a cada visão, que pode ser sentido por um grupo de homens*, mas que não pode ser entendido porque pode haver diversos motivos, mas pode não haver nenhum. Ele tem diversas formas, mas nenhuma é definitiva. Nada além de especulações. Alguém que observamos, mas não enxergamos; que tocamos, mas não entendemos.

Um Elefante. * Obs.: http://migre.me/5KYYN


Um comentário:

  1. Nunca pensei que anos mais tarde veria tragédia parecida no Brasil, como a da escola de Realengo no Rio

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