Shame
(Shame, 2011)
Drama - 101 min.
Direção: Steve McQueen
Roteiro: Abi Morgan, Steve McQueen
Com: Michael Fassbender, Carey Mulligan
Artista plástico conhecido, o londrino Steve McQueen iniciou sua carreira no cinema com o intimista drama Hunger, sobre a greve de fome de um prisioneiro do IRA. Estrelado pelo alemão Michael Fassbender, o filme colocou ambos no caminho do estrelato e, de quebra, ainda proporcionou a demonstração máxima do talento de cada um dos profissionais. Enquanto McQueen conduzia a história com personalidade e investia em takes inteiros (incluindo um de 17 minutos), Fassbender realizava um verdadeiro tour de force físico e mental, exaurindo sua própria persona em prol da atuação.
Logo, o caminho natural de McQueen em seu segundo trabalho era a afirmação de uma identidade para si mesmo na Sétima Arte. Em Shame, uma dramática jornada de um nova-iorquino compulsivo por sexo, McQueen chama Fassbender para recriar o desconfortável ambiente do filme de 2009 e aplicá-lo num drama contemporâneo. E por contemporaneidade não se aplica só pelo período em que a história se passa (Hunger se passava nos anos 80, Shame na atualidade), mas pelos temas com que a mesma trabalha.
E de pós-moderno, Shame tem até os ossos. Arrojado, subversivo e visceral, o registro da caótica rotina de Brandon, o viciado vivido por Fassbender, é um tenaz debate sobre o relacionamento interpessoal no século XXI vestido de estudo sexual de personagem. E se naturalmente acaba-se criando duas camadas para a narrativa, é fascinante perceber como McQueen torna-as complementares sem esforço.
Brandon acorda em seu apartamento. O que acabou de fazer? O cansaço em sua face é visível e seu corpo, um tanto esbelto porém exausto, parece ter sofrido um leve revés. Inquieto após instantes em sua postura congelada, o protagonista abre a persiana (o que gera o imponente surgimento do título) e vai em direção da sala. Nota-se que, asséptico, o ambiente é sustentado por uma arquitetura econômica e moderna, de uma frieza ímpar. Seu telefone toca mas, seja lá quem for, não merece ser atendido. No metrô, provavelmente indo para seu trabalho, Brandon olha uma mulher. Sua expressão encara a moça sem pudores, apenas com desejo. Será que ela quer? Será que poderia satisfazer seu desejo com ela, rapidamente? Aos poucos, ela vai se abrindo. Uma cruzada de pernas serve como ponto de virada. Porém, a expressão da ruiva muda. Um desespero toma conta de seus pensamentos. A frieza de seu olhar talvez tenha a assustado. Quando está saindo, ela deixa escapar uma aliança em seu dedo. Mesmo a procurando, ele não a acha.
Sutil, McQueen começa a sugerir os problemas do personagem logo ao mesmo tempo em que introduz sua rotina. Não é por acaso que todo sexo termina com a abertura da persiana. Também não é o fato dos enquadramentos iniciais serem parecidos: no final, a rotina é conturbada de Brandon é conturbada assim mesmo. Nada de novo (além do sexo) parece acontecer, o que angustia mais as coisas. As cenas constantemente se misturam devido á precisa montagem de Joe Walker. Sua existência é tão estagnada, esquemática, que não sabemos o tempo em que elas se passam. Não é por mera estilística: a rotina se confunde por ser idêntica, mecânica. Não estamos diante de uma incursão desesperada e inconsciente ao inferno do vício; estamos diante da destruição que, contemplada e já estabelecida, será subvertida até o vazio da vida que, em questão de tempo, será descoberto.
Qual seria, então, o gatilho da detecção desse vazio? Mesmo mentalmente refém e emocionalmente distante, o protagonista sobrevive com sua condição da maneira que consegue. Seu aspecto gélido também ajuda, afinal um sujeito sem emoções genuínas pode suportar melhor um vício. Da onde surgiu essa falta de tato, de calor humano? O aspecto estático da estupenda fotografia contemporânea de Sean Bobbitt está estabelecido com clareza quando subitamente, ao ver Brandon entrar em seu apartamento, ele muda. A câmera na mão surge e o aflito protagonista descobre que sua irmã Sissy está, nua, tomando banho em sua casa. E começa a conversar de forma afetiva, calorosa.
É raro ver projetos que apostam em uma abordagem essencialmente visual para si, mas Shame vai além ao ser obsessivamente cuidadoso com suas composições de quadros, aliando-os facilmente a estrutura do roteiro de McQueen e Abi Morgan. Sua irmã está ali. Sua voz parece familiar. Por que a câmera ficou tremida abruptamente? Por que Brandon demonstra tanta aflição? Seria ela a voz do telefone, o desejo incubado, a razão da frieza e, ainda, o gatilho do vazio?
Ao sair com seu chefe para ver a apresentação de Sissy, Brandon parece desconfortável. Não há coisa pior para um viciado, adaptado á sua rotina, ser tirado de sua zona de conforto. Se Sissy já se demonstrou emocional (e ameaçadora ao padrão sisudo do irmão), sair para admirar seu canto pode apenas piorar as coisas. Ela canta "New York, New York" de forma melancólica. Então, registrado em um extenuante contraplano, Brandon, ali, percebe que sua irmã é sofrida justamente por ser um espelho completo á sua personalidade. Mas não demonstra surpresa: será que ela já era assim e, por conta da impessoalidade que seu vício o fez passar, Brandon tinha medo da volta da mulher?
A falta de afeto é o que persegue Sissy; a presença dele, o que aflige Brandon. Após a cantoria, Brandon é obrigado a ouvir o orgasmo de sua irmã com o chefe, dentro de sua casa. O desespero toma conta de sua mente, a câmera treme novamente, os gritos de prazer ficam cada vez mais perturbadores. É péssimo ver sua irmã fazendo sexo com um canalha qualquer, que a usará como diversos homens? Pode até ser, mas não importa: o frenesi mental que é vê-la com outro cara sem ser você é o que explode sua frivolidade. Quando Brandon se distanciou da irmã, não foi porque a odiava; foi, sim, porque além de perigosamente sensorial, ela incitava seu desejo mais primitivo. Sem que ele pudesse ser saciado. E um desejo doentio que fica trancado, com o tempo, só pode desencadear um fato.
O vício.
Obviamente, Shame não concede respostas fáceis ao espectador. Não é apenas por sua irmã que Brandon é assim, mas é o motivo/gatilho que move a narrativa. O sexo então entra em segundo plano. Shame pode até tratar sobre as obsessões de seu protagonista, de estudar e destruir a rotina de controle do vício que o mesmo estabeleceu, mas é um riquíssimo pano de fundo para o debate sobre a visão do mundo contemporâneo através dos relacionamentos, sejam eles afetivos, profissionais, camaradas ou, claro, sexuais.
As amizades no filme são algo escasso. O yuppie só se encontra com seus amigos para beber e se encontrar com mulheres. É algo frio, racional em excesso, que move todos ao redor da rotina estabilizada de Brandon; o trabalho é irrelevante, nem ao menos sabemos a natureza dele. Sabemos apenas que, no computador profissional, Brandon esconde suas maiores perversões pornográficas; o sexo só é bom quando conquistado e executado como rapidez. Essa sujeira emocional não poderia se refletir em outro lugar senão na própria cidade: as caixas de papelão estão jogadas na rua, o semáforo está pendurado e as moradias se passam entre o absoluto asséptico e a simplória arquitetura moderna. A Nova York é, mesmo, aquela da música de Sissy.
Mas tudo faz parte do plano. Era de se esperar que, um dia, as emoções iriam bater á porta. Porém, nessa proporção não. Ao mesmo tempo em que Sissy está presente, Brandon conhece uma mulher no trabalho. O desespero deve ser eclipsado, então nada como tentar voltar á rotina. O jantar começa e, então, ensaia-se em Shame as suas verdadeiras ambições: o maior relacionamento de Brandon durou 4 meses e sua acompanhante discorre sobre o quão bonito é o relacionamento de duas almas. Se para Fassbender o silêncio dos casais quer dizer que eles "simplesmente não tem mais o que dizer, que estão monótonos em sua relação", para sua acompanhante eles não dizem nada por estarem "conectados". No profundo estudo, temos aqui a primeira cena que deixa mais clara a intenção analítica sobre os relacionamentos. Sendo assim, não é por maneirismo estilístico que McQueen cria um take de mais de 5 minutos; algo tão importante merece ser registrado por completo. Se a morte de um instante é o corte, a cena a se eternizar em Shame é justamente essa.
No tão almejado sexo, num irônico apartamento transparente pelos vidros (como se o viciado não tivesse nada a esconder), Brandon então conhece o lado mais afetivo de uma relação. Sensual, a companheira vai crescendo perante o selvagem. Estranheza é o primeiro sintoma do vale inóspito do relacionamento carinhoso e, sem conseguir contorna-lo, Brandon falha. Já no sexo pago, animalesco, instintivo e puramente carnal, o sucesso é obtido. No mundo do protagonista, não existe a metafísica: um homem é um pênis e uma mulher é uma vagina. Dois pedaços de carne a se completarem por mera conveniência. O que nos traz de volta á sensorial Sissy, com seu explosivo imediatismo desesperado, que causa rebuliço na mente do irmão.
A confusão mental, que já havia sido manifestada por McQueen na montagem frenética de Brandon se livrando de sua pornografia, agora é sinalizada pela sonoplastia: nos minutos finais, parece que diversos orgasmos ecoam na tela, na cabeça do protagonista (e na nossa). Perturbador.
O que fazer, então? Insistir e corrigir seu erro ou tentar ignorar a diferença de um homem para um animal? O impulso humano, que inevitavelmente mescla sexo e violência, acaba falando mais alto e rende o estupendo clímax (que, só por não se render ao previsível esgotamento do corpo, já merece aplausos), onde McQueen e a trilha de Harry Escott voltam á uma arrojada montagem similar à do início do filme, mas desta vez mesclando os tempos, o que dá pistas das pequenas tragédias que podem vir a acontecer.
E na completa miséria, serve qualquer tentativa. No clímax, que remete ao prólogo do Irreversível de Gaspar Noé, temos apenas a confirmação de algo devastador: só a reação do protagonista no sexo que importa. Brandon não é hétero ou homossexual; é solitário.
Completamente ciente de sua condição, Brandon nada tem a fazer. O mar é contemplado com um depressivo olhar. No mundo cão contemporâneo de Shame, onde todos estão sozinhos, ninguém liga pra ninguém. Muito menos para Brandon. Enquanto ele chora, a chuva cai. Sua tristeza não importa.
É incrível como Steve McQueen se consagra ao criar uma obra que não soa panfletária, nem com discurso comprado. Apenas a visão de seu protagonista sobre as pessoas infelizes e gélidas ao seu redor. Não é o mundo inteiro, mas os adeptos da maior das estranhezas: os relacionamentos céticos.
E quando o olhar angustiado é trocado por um sorriso convidativo, Brandon finalmente entende. É viciado, mas está certo no final das contas. Pelo visto, a felicidade não durou muito.
Ao redor de Brandon, as emoções do ser humano são uma hipocrisia falida.
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