quarta-feira, 14 de julho de 2010

Il Divo
(Il Divo, 2008)
Drama - 110 min.

Direção: Paolo Sorrentino
Roteiro: Paolo Sorrentino

Com: Toni Servillo, Anna Bonaiuto, Giulio Bosetti, Carlo Buccirosso, Gianfelice Imparato, Massimo Popolizio

Muita gente diz, e tenho de concordar na maioria das vezes, que o Oscar não legitimiza talentos e qualidade cinematográfica, mas, e até mesmo os críticos mais ferrenhos da premiação hão de concordar, que a divulgação que uma obra tem ao adentrar o hall dos indicados é inigualável. Por meio dela que muitos vieram a conhecer o filme criticado abaixo, o italiano Il Divo, indicado na premiação desse ano ao Oscar de melhor maquiagem e vencedor do prêmio do júri no festival de Cannes de 2008.

Sim, caro cinéfilo não é tudo que agente consegue "pescar", e as indicações do que ver, ler e ouvir vem de todos os espaços. Blogs, sites, programas de TV, e por que não premiações.

Feita a ressalva é preciso iniciar o texto dizendo que Il Divo é muito mais do que uma maquiagem espetacular. É uma história complexa sobre um homem igualmente complexo, embalada por apuro técnico impressionante e interpretações preciosas. Em suma, um filme necessário.


A história é simples apesar de sua condução e desenvolvimento não serem. Paolo Sorrentino - o diretor e roteirista - o mesmo de La Conseguenze Dell’amore (que vai aparecer por aqui em breve), aponta sua câmera e "pena" para a figura do ex-primeiro ministro italiano e, hoje, senador vitalício Giulio Andreotti. Em vez de partir para a óbvia cinebiografia que, geralmente, mutila ao transformar o biografado num prato raso e sem gosto para reduzir uma vida inteira em pouco mais de uma hora e meia, Sorrentino mostra o final do último dos três mandatos do político, entre 1989 e 1992.

Nele se fala sobre o fim de uma era a partir da vida de Andreotti. Um homem a beira do abismo político, acusado por uma série de alegações de envolvimento com a máfia, assassinatos planejados, tráfico de influência entre outras coisas. Tudo isso mostrado por Sorrentino e - num momento poético e de certo grau de realismo fantástico - confessado por seu personagem principal. Vale a lembrança de que no mundo real Andreotti foi julgado e inocentado de todas as acusações contra sua pessoa que lhe foram imputadas. Sorrentino nesse momento teorizou ou externou - talvez - seu próprio pensamento. É o caso claro, do realizador dialogando com sua obra, apresentando idéias sobre a realidade e tentando obter alguma espécie de reação dos que veem. Seria verdade? Seria mentira? Sorrentino é dúbio nesse ponto, pois ao mesmo tempo em que apresenta essa bela confissão, que se inicia com sobriedade e termina numa vociferação violenta e agressiva, mostra o personagem como alguém religioso e que num momento de confissão - um dos atos mais importante dentre os dogmas cristãos - nega ao confessor qualquer envolvimento com as tais acusações. Novamente é a pena e a câmera de Sorrentino nos indicando caminhos e nunca respostas. Seria ele inocente afinal? Ou tão baixo, que nem em confissão assume seus erros?


Além da óbvia discussão filosófica sobre o fim de ciclos naturais da humanidade e do personagem em especial, também vemos uma descrição arguta e cínica dos meandros políticos da Itália, mas que podemos pegar emprestado e utilizá-la em qualquer outro contexto ou país. Ou as catacumbas da política nacional são diferentes das vistas no filme? 
Nesse caso o "habitat" do filme apenas serve como ponto de partida para análises mais profundas da política mundial. O que um líder faz para defender seu país? Ou o que faz um líder trair seus conceitos - ou desenvolvê-los - para defender o que ele acredita ser o mais correto para sua pátria? Seria ele capaz de atos escusos para defender o que acredita? Ou no fim sempre foi tudo pelo poder? Existe ato sem repercussão? Mentira sem rastro?
Sorrentino não quer complicar seu entendimento inicial e por isso os personagens (inúmeros só nos primeiros quinze minutos) surgem em quadro como se fossem membros da fauna "Ritchiniana" ou "Tarantinesca" e se formos forçar um pouco mais a memória "Coppoliana", "Scorsesiana", "Felliniana" e afins. Apesar de apresentados de forma realista é impossível desassociar os personagens de certo non-sense claro e deverás eficiente mostrado em tela. São personagens reais, embalsamados pela magia cinematográfica.

Porém, nem tudo são flores no mundo imaginário de Sorrentino. No afã de demonstrar e mostrar tudo e todos, creditando todos os envolvidos, os grafismos usados como guia aos novatos naquele ambiente acabam voltando-se contra o criador quando no segundo ato a história se complica. A história que surge hermeticamente como um estudo sobre o fim torna-se uma investigação policial sobre Andreotti, esse homem complexo e cheio de dubiedade.


Sorrentino não facilita nem te ajuda a compreender os fatos. Ele tenta resolver todos os problemas mostrados transferindo boa parte das respostas para eventos mostrados - alguns de forma exageradamente sucintos - na introdução de sua história. Tal segundo ato inicia-se com um off - numa influência delicadamente escondida do que o franco-argentino Gaspar Noé faz com mais violência gráfica - de um personagem em tela preta que diz: “A partir desse momento, vou dizer apenas a verdade". Interessante como aspecto narrativo, uma quebra de protocolo - inclusive estético - do que estávamos acompanhando anteriormente, mas que se resolve de forma apressada e confusa. Em pouco mais de dez minutos surgem em tela mais de dez novos personagens, que são usados como testemunhas é verdade, não necessitando de maior desenvolvimento emocional mas que causam estranheza e dificuldade de entendimento por quem vê, sobre quem disse o que sobre quem e para quem. Sorrentino tentando ser o mais correto do ponto de vista histórico confunde seu espectador nesse momento. Já dizia John Ford: entre a lenda e a verdade imprima a lenda. Sorrentino optou pela verdade e fez seu filme perder força narrativa.

Essa visão de confusão parte - obviamente - de uma percepção estrangeira sobre aquela realidade. Não sou italiano e talvez o público que mais diretamente consumiu o filme não tenha sofrido essa "confusão mental". Mas para os não iniciados nessa história, falta o impacto global. Sorrentino fez um filme que funciona narrativamente para sua aldeia e não para os vizinhos de fronteira.


Mesmo assim é impossível ignorar, mesmo nos momentos mais complexos dessa narrativa, a bela interpretação de Toni Servillo, um ator muito interessante que esteve em Gomorra e no já citado La Conseguenze Dell’amore. Porém em Il Divo ele transcende, e apresenta um trabalho no mínimo fenomenal. Apresenta o líder da nação italiana como um homem em crise de identidade, perdido entre o presente tedioso e enfadonho, um futuro melancólico e um passado que o assombra e o encanta. Um homem solitário sutilmente transfigurado em homem público. Alguém que tem o domínio total de suas ações perante microfones e câmeras, um domínio das palavras, todas ditas de forma ágil, pequenas punhaladas em direção ao interlocutor enquanto seu olhar passeia pelo ambiente. Um olhar aparentemente vazio que estuda o "adversário" e suas fraquezas. Servillo ainda consegue reproduzir uma automação de movimentos que transforma seu personagem em alguém ainda mais desconhecido até mesmo para seus pares e amigos. Anda com velocidade, mas a passos curtos, movimenta as mãos indicando o que sua mente pensa, e tem a postura de um Quasimodo pós-moderno. Uma composição que vai além da obviedade das caricaturas de biografias, e que aponta possibilidades mais profundas onde gestos e olhares funcionam muito melhor do que as palavras.

Não só de palavras vive Il Divo, aliás as palavras são o que menos importa no filme. O que verdadeiramente faz o filme ser algo mais do que uma biografia é seu apuro técnico, estético e estilístico.


Tomemos como exemplo a abertura do filme. Nela vemos organicamente inseridos grafismos que indicam o mostruário inicial de personagens, soma-se a trilha moderna e popular e um cuidado estético com cada quadro assombroso. Sorrentino apresenta seu filme de forma fulgurante. Os quinze primeiros minutos são quase perfeitos. Ritmo narrativo, imagem, som, iluminação e estilo.

Sorrentino também não foge de eventuais referencias com grandes obras cinematográficas. O Poderoso Chefão é referenciado quando corta - de forma muito bruta - os eventos do mandante de um crime, inserido em um ambiente de prazeres e diversão e o ato violento em si. Intercalando os diálogos e imagens das duas ações tal qual Coppola fez na sua série de máfia. Outra referencia - essa sutil - é ao filme alemão A Queda em que Hitler é apresentado como um ser humano, apesar de suas óbvias falhas de caráter. Andreotti, que pese contra ele todas as acusações, também é visto como alguém capaz de atos de piedade e ajuda ao próximo, numa seqüência que também guarda paralelos com os pedidos ao "padrinho" do filme de Coppola já citado.


Méritos ao trabalho impressionante de Luca Bigazzi, o fotografo do filme, que junto a Sorrentino criou quadros matematicamente pensados, com elementos tão bem posicionados que parecem desenhados em cada frame. Não existem falhas de tom, cor, saturação ou mesmo de posicionamento de câmera, pelo menos nenhuma aparente.Verdadeiramente estupendo. Além das composições, ainda apresenta por diversos momentos movimentos fluidos e inteligentes transformando cada imagem em algo maior do que posicionamento, luz e interpretação. Ele faz poesia com sua câmera. O exemplo mais claro disso é a cena que envolve um julgamento no finalzinho do filme. Acompanhamos um homem caminhar por um corredor branco seguido de perto por guardas e um fotógrafo à frente, entramos na sala de julgamento, onde organicamente passamos a ver o filme de forma subjetiva - obviamente existiu um corte escondido ai - passeamos pela sala e como se tivéssemos nos descolando do corpo do objeto mostrado subjetivamente, novamente somos trazidos a condição de público, saindo da condição de objeto em destaque. A câmera então gira, apresentados os magistrados. Na mesma seqüência, o diretor (e isso deve ter dado um enorme trabalho) muda a iluminação saindo do naturalismo até então mostrado para o quase preto e branco usando de contraste para provocar e ilustrar com muita sensibilidade a apatia de seu personagem. Em tempos tecnológicos é fácil imaginar que essa correção ou mudança de iluminação foi feita em pós-produção é claro, mas o conceito de criar essa imagem e essa seqüência, não foram os computadores que pensaram, mas sim o diretor e o montador, o genial Cristiano Travaglioli.

Sorrentino ainda tem tempo de ser pop nas sua abordagem das imagens, de ter uma direção de arte inspirada (trabalho de Alessandra Mura - cenários, Daniela Cianco - figurinos e Lino Fiorito - designer de produção) e "quebrar" a quarta parede inserindo depoimentos fictícios em direção a câmera que funcionam como uma reportagem de TV, contrapondo as acusações mostradas anteriormente, entrecortadas com imagens de máquinas fotografias sendo preenchidas com filme (coisa antiga) e fitas de vídeo inseridas em filmadoras (mais antiguidade).


A maquiagem, indicada ao Oscar, obviamente é impecável. A numerosa equipe de  conseguiu transformar Servillo no primeiro ministro Andreotti. Se não acreditam procurem imagens do ator, e do ministro real. Uma perfeição notável, que o diretor fez questão de mostrar em algumas oportunidades, onde sua câmera passeia pelo rosto maquiado do personagem, não sendo possível observar nenhum grau de erro ou de infelicidade na criação.

E é impossível encerrar qualquer análise do filme sem citar a magnífica trilha sonora de Teho Teardo, que transforma as imagens em passagens operísticas e ainda insere canções pop no caldeirão. De Vivaldi, Sibelius, Saint-Saens, passando pelo famoso cantor italiano Renato Zero (que ilustra uma poética passagem do filme, em que os diálogos são substituídos pela letra da canção) pela banda Ricchi e Poveri e chegando ao duo de música eletrônica Cassius, tudo é muito bem executado e funciona de forma perfeita.


É raro ver uma cine-biografia tecnicamente perfeita, que não esquece - mesmo que com falhas - de apresentar a narrativa de forma interessante e que ainda consegue ser "cool". Um tremendo trabalho. Divino.


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