Rango
(Rango, 2011)Ação/Aventura - 107 min.
Direção: Gore Verbinski
Roteiro: John Logan
Com as vozes de: Johnny Depp, Isla Fisher, Abigail Breslin, Ned Beatty, Alfred Molina e Bill Nighy
Um dos mais celebrados gêneros do cinema, o faroeste deu a Sétima Arte clássicos obrigatórios como Três Homens em Conflito, Por um Punhado de Dólares, Meu Ódio será tua Herança, Os Brutos também Amam, Era uma Vez no Oeste e vários outros. Os faroestes "spaghetti" chamam atenção por sua estética apurada (mesmo com custos relativamente baixos) e sua mitologia totalmente peculiar, diferenciando-se dos westerns americanos realizados por John Ford, Howard Hawks, Henry Hathaway, Anthony Mann, Sam Peckinpah, William Wellman entre muitos outros. Sergio Leone popularizou e mitificou o faroeste spaghetti em parceria com astros como Clint Eastwood e Lee van Cleef, atingindo seu auge no fim de sua trilogia dos dólares, o já citado Três Homens em Conflito. Após o esquecimento no gênero, que foi caindo em desuso frente ao apelo de filmes como os blockbusters, uma revisão foi realizada e neo-westerns como Tragam-me a Cabeça de Alfredo García e Os Imperdoáveis foram aclamados pela crítica (o primeiro, nem tanto, sendo apreciado apenas hoje em dia). Nos dias atuais, o faroeste só vem para as telas pelas mãos dos Irmãos Coen, que modernizaram a lenda do homem-mito/homem-comum em Onde os Fracos não tem Vez e ressurgiram com o gênero no estado puro, clássico, no recente e espetacular Bravura Indômita.
Ver um gênero ser tão baqueado pelo tempo, demorando anos até ser colocado de novo no mapa do público, é raro. Juntos com o faroeste, os únicos que compartilharam desse amargo momento foram os filmes de animação. Apenas após a revolução de Toy Story, em 95, os desenhos voltaram de vez pras graças do público. Agora, o faroeste está ressurgindo e nada poderia ser melhor que um conjunto deste com a animação, um dos gêneros mais ousados e abertos a possibilidades na indústria.
E é com essa curiosa ideia em mente que o diretor Gore Verbinski nos traz Rango. A história do camaleão com crise de identidade que vai parar numa cidadezinha típica do Velho Oeste americano, é uma ousada homenagem a Sergio Leone e ao cinema de faroeste/violência dos anos 60/70. Não só isso, é uma fábula competente e madura sobre o envelhecimento da região.
O roteiro de John Logan, de filmes distintos como Gladiador e Sweeney Todd, é feliz em criar uma história coesa, cheia de originalidade e que, ainda assim, faz homenagens e referências a todo momento, sem nunca soar fora da narrativa, tudo organicamente acoplado á estrutura. Os closes que Verbinski realiza em seus personagens nas cenas de impacto são puro Leone, enquanto a tresloucada sequência no deserto com a Cavalgada das Valquírias ao fundo já se torna icônica por sua perfeita execução e pelo humor refinado. Ainda nessa sequência, uma referência á Transformers surge de maneira tão impecável que jamais soa forçada ou até mesmo desnecessária. A caracterização dos personagens também segue o estilo spaghetti, com um inspirado Bill Nighy dublando Jake, a cobra idêntica ao gênio Lee van Cleef. O prefeito da cidade também é outra clara homenagem, o que se torna impressionante com o tempo. E Verbinski faz uma questão quase religiosa em demonstrar seu amor e respeito aos clássicos do gênero, filmando duelos com vigor e indo de hiper-closes de Leone á icônica visão do oponente á distância, entre as pernas do pistoleiro. A prova máxima do respeito dos realizadores é o duelo final, filmado com a parcimônia digna de Três Homens em Conflito, incluindo takes nervosos do relógio da igreja, com suas badaladas barulhentas.
Mas diferente da Dreamworks, que atira referências em excesso e a esmo na tela, Rango demonstra personalidade ao criar uma história que independe delas. Nisso, o desenvolvimento da narrativa impressiona por seus minuciosos detalhes. Já devidamente estabelecido quanto ás suas ambições e seus sentimentos nos minutos iniciais, no cenário artificial, Rango vai se tornando um mito desde sua queda do aquário. Inicialmente entendidos como um desnecessário ritmo lento apenas para causar risadas nos infantes na sala de cinema, esses primeiros minutos crescem ao analisar o desenrolar do filme, sendo essenciais para determinar o carisma inocente e a personalidade desfuncional do camaleão, um herói que impressiona por sua complexidade emocional. A história de fato começa após a sequência na estrada, quando Rango anda sem rumo pelo deserto. Ali, é jogado um elemento em tela que auxilia um surpreendente delírio do protagonista e ainda serve no futuro como pista/prova para o desfecho. E além deste elemento de cena, outros são jogados durante o filme antes do espectador ter pleno conhecimento deles, como a enigmática risada coletiva no Saloon e a passagem do último xerife de Dirt, a cidade do filme.
A construção do Mito em Rango, aliás, é parte fundamental da narrativa. Se o camaleão é fadado a lenda desde o princípio, nada mais apropriado que a testemunha ocular dos feitos do mesmo esteja lá no Saloon, afim de estabelecer sua própria verdade. E o que importa o fato de ser o próprio Rango a testemunha dessa lenda, que sabemos ser irreal? A partir da leitura na garrafa de cacto, pouco importa se o homem matou ou não Liberty Valance. Em tempos da falência do homem perante o ambiente, cada um germina seu mito. E se o conceito estabelecido parece forçado dado que o filme é uma animação, isso logo se anula. O clímax do filme, recheado de beleza da natureza, é a genial prova de que o ambiente vence o homem novamente. Mas quando é analisada a inocência e bondade de Rango, percebe-se que não foi o Texas sujo dos anos 80 de Anton Chigurh que venceu. Foi o puro espírito do Velho Oeste, não por acaso personificado e peça-chave da narrativa, dublado por Timothy Olyphant. Quando aquela vastidão natural invade a tela de forma descontrolada, o Mito que desde o início vinha sendo traçado, é finalmente consolidado. O ambiente venceu, mas o Homem se consolidou, provando que há espaço para os dois. E não há prova maior dessa velha máxima que o respeito mútuo dos personagens ao final do filme.
As divertidíssimas corujas fazem parte dessa ideologia. Ainda que passem a narrativa inteira cantando e tocando seus instrumentos para divertir as crianças, seria pobre pensar nelas apenas como alívio cômico. Elas são o Mito, descrito em prosa e poesia musical, contando a história do homem que virou lenda. E é tocante a passagem em que as corujas se abstém de cantar, com tristeza explícita nos olhos. Ali, não foi demonstrado apenas um imenso respeito por Rango (e pelo gênero do faroeste), mas foi colocada em dúvida pela primeira vez a consolidação do Mito. Quando as corujas voltam a falar e cantar felizes, é o espírito do Velho Oeste nela presentes, não apenas um gesto cômico mas sim um fio de esperança na crença.
As sequências de ação grandiloquentes são um fôlego a mais pra narrativa, uma modernização da estrutura do faroeste. Coordenadas com uma direção irretocável e belíssima esteticamente de Gore Verbisnki, as sequências são perfeitas e servem pra divertir, aumentar o ritmo da narrativa e liberar a trilha espetacular de Hans Zimmer para reverenciar 2001, Apocalipse Now e Ennio Morricone. A fotografia de Roger Deakins, conhecido por vários faroestes como Bravura, Onde os Fracos e Assassinato de Jesse James, ajuda ainda mais a ambientação realista (a ILM é tão fantástica que faz parecer live-action em algumas cenas) que Verbinski queria pra seu projeto.
Com uma construção de personagens impecável, especialmente de Rango (que encontrou em Johnny Depp seu perfeito alter-ego live-action), o roteiro ainda nos brinda com um clímax instigante e que aborda um assunto que consegue, ao mesmo tempo, ser atual e metalinguístico com a modernidade versus velho oeste. Contudo, o filme tem um erro que impede-o de alcançar a nota máxima, ainda que chegue muito perto. A necessidade em abordar uma mudança no terceiro ato, ainda que excelente no contexto da narrativa, é abordada de maneira clichê e anteriormente testada. Uma pena, pois se não fosse essa necessidade que o roteiro se impôs pelos próprios caminhos narrativos que resolveu trilhar, seria irretocável. Claro que isso é um detalhe ínfimo perto da qualidade adquirida, mas ainda sim o defeito considerável. O humor, inteligente em grande parcela do filme (a lápide do xerife antigo é genial), é substituído por passagens mais físicas, o que claramente é pra colocar os pequenos nas risadas ou, se pensarmos alto, uma homenagem a Buster Keaton e Charles Chaplin. Não devendo ser vista como um defeito (ou homenagem desnecessária), essa tentativa é perdoável se pensarmos que essa animação de 130 milhões de dólares é, na verdade, um faroeste revisionista que poderia ter sido dirigido pelos Irmãos Coen ou Quentin Tarantino.
Sendo assim, Rango se consolida como uma das animações mais ousadas e arriscadas em muitos anos. Investindo num gênero pesado e envolvendo armas de fogo e fumo com naturalidade bizarra para um filme "infantil", Rango foge do campo de referências e finca seu pé nos autos dos grandes faroestes revisionistas. Se lembrando de onde veio e repaginando o gênero para a animação. Quando o Espírito do Oeste aparece em seu automóvel engraçado, Rango pergunta se o costumavam chamar por "homem sem nome". A referência é clara, mas porque não pensar que isso é plausível e neural a narrativa, já que estamos vendo um "homem sem nome" transformar-se em Mito em tela? Rango não é um nome, é um mantra, uma lenda.
E provando que o Velho Oeste continuará vivo pra sempre no código moral de cada um, é novamente UMA bala que muda tudo. E o respeito incomensurável entre os envolvidos é tão impressionante, tão bem arquitetado, que vemos ali, bem na nossa frente, Clint Eastwood e Lee van Cleef evitando seu confronto em prol do que todos eles respeitam num faroeste: a Lenda. Afinal, a bala constrói um Mito, mas nunca O mata.
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