sábado, 21 de agosto de 2010


O Filmes para ver antes de Morrer nunca tentou - e nem vai tentar - criticar ou analisar uma obra que por motivos óbvios está no panteão das maiores (na opinião da equipe) já produzidas pela sétima arte, por isso o espaço aqui é para relembrarmos, homenagearmos e apresentarmos a quem não viu, grandes filmes da história do cinema.

Traffic
(Traffic, 2000)


Porque ninguém sai limpo.


O diretor Steven Soderbergh também começou de baixo, como diretor independente. Um dos mais influentes diretores do circuito americano, fez em 89 um filme chamado Sexo, Mentiras e Videotape. A arrebatadora estreia rendou fama para o diretor e ainda rendeu uma Palma de Ouro em Cannes. Porém, o diretor perdeu um pouco de seu prestígio com o passar dos anos e só conseguiu uma certa visão depois em 1998, quando lançou o mediano filme de romance e roubo Irresistível Paixão, com George Clooney (hoje seu sócio na Section Eight, sua produtora) e Jennifer Lopez, uma adaptação do romance de Elmord Leonard. Voltando finalmente á superfície do mundo do cinema, Soderbergh resolveu dirigir, depois do elogiado The Limey, dois filmes no ano 2000: Traffic e Erin Brockovich.

A sua iniciativa deu resultado, afinal, os dois filmes foram indicados ao Oscar, Soderbergh concorreu contra si mesmo na disputa de melhor diretor, feito raro. E, definitivamente, a volta triunfal do diretor valeu a pena. E até mesmo nesse ano ficou evidente a opção do diretor em alternar produtos comerciais (A trilogia dos homens e os segredos) e independentes (Bubble). Logo, Erin e Traffic são filmes bem diferentes; o primeiro é um filme mais comercial, mais de personagem, quase feito pra Julia Roberts ganhar o Oscar.

Já Traffic é outra história. É um panorama impressionante sobre as drogas, envolvendo a fronteira Estados Unidos-México de forma interessantíssima. Seus personagens também são envolventes e extremamente críveis, interpretado por um time de profissionais competentes que devem ter esquecido de certos privilégios pra atuar nessa estupenda e ousada película. Definitvamente, Soderbergh venceu seu Oscar com louros merecidos.


A trama, que se desenvolve paralelamente por vários núcleos, segue os 3 protagonistas do filme: Javier Rodriguez (Benicio del Toro), Robert Wakefield (Michael Douglas) e Helena Ayala (Catherine Zeta-Jones). Javier é um policial incorruptível que, junto com seu parceiro Sanchez (Jacob Vargas), são chamados pra trabalhar numa força tarefa do General Arturo Salazar (Tomás Milián), o grande chefe anti-drogas do país. Robert é um juíz que é chamado pra ser o Czar das Drogas americano, o posto de Salazar no México, e Helena é a mulher de Carlos Ayala (Steven Bauer), o maior distribuidor de drogas do Cartel Obregón nos Estados Unidos. Mas tudo dá errado quando problemas atingem os 3: Javier não sabe mais qual é o verdadeiro propósito de sua missão, Robert tem problemas pessoais com sua mulher e a filha problemática e Helena se vê entrando num mundo desconhecido apenas para descobrir o ramo que seu marido trabalhava quando ele é preso. Porém, as histórias nunca se cruzam diretamente, sendo ligada apenas por coadjuvantes como os agentes do FBI, Gordon (Don Cheadle) e Castro (Luís Guzmán), que investigam Ayala; o matador dos Obregón, Francisco Flores (Clifton Collins Jr.) e o próprio General Salazar.


A história parece extremamente difícil de acompanhar, porém é fácil detectar as pequenas peças que colam todo o grande panorama que é Traffic. Complexa sim, pois é intricada a ponto de uma ação á milhares de quilômetros influenciar um juíz de Ohio, mas não difícil. Até porque Stephen Gaghan, o habilidoso roteirista, tem cuidado em colocar o público no meio do mundo do tráfico, apresentando informações, que os personagens citam, que até parecem irrelevantes mas são fundamentais na hora de entender o panorama que o escritor idealizou. Fora isso, o roteirista parece entender os problemas dos envolvidos no tráfico muito bem, criando situações de risco críveis e que a todo momento testam o caráter dos personagens. Um claro exemplo é a saída encontrada por Helena ao descobrir que ele é um traficante dos pesados. Sem dúvida, sua decisão entra na história como uma das mais corajosas vistas no cinema recente. Mas além dela, Rodriguez e Wakefield também são testados de forma angustiante e que faz eles repensarem seu caráter e até mesmo se há espaço pra hipocrisia nesse mundo (coisa que se potencializa com o final do arco do Juiz).

Além da realidade das ações dos protagonistas, ainda temos um time de coadjuvantes sensacional. As melhores cenas ficam entre os agentes do FBI, que se vêem num mundo que a cada dia que passa fica mais desconhecido pra eles. Destaque para seus debates sobre como eles fracassam tanto contra esses traficantes, o que gera um sentimento até maior de respeito a esses agentes. No núcleo deles, ainda temos o matador Flores, que aparece pouco, mas marca presença com estilo. Porém, se o roteiro poderia soar um tanto limitado em se aprofundar tanto em personagens e esquecer de ligar as tramas (o que poderia implodir fatalmente um filme de panorama), Gaghan ainda cria passagens antológicas, como a conversa de Helena com o traficante ou a conversa de Robert com o amigo de sua filha, interpretado por Topher Grace. Mais que isso, ele cria um universo riquíssimo em detalhes, escrevendo passagens de tempo e espaço com uma fluidez pouco vista. E tudo isso em 146 minutos, o que soa quase irreal até, tamanha a quantidade de informações embasadas ali colocadas. Se algumas decisões de roteiro, como o rápido aprendizado de Helena sobre drogas ou a sorte como fator decisivo em uma cena de tiroteio seguido por bomba num carro, soam um tanto forçadas, elas são eclipsadas pela verdadeira aula de tráfico e roteiro que Traffic representa. E ainda tem um fator brilhante: Os mexicanos de Traffic falam espanhol o filme todo! Sim, um filme americano falado em espanhol em 25% da película.

Tecnicamente, Traffic tinha uma responsabilidade enorme, ao transcrever o maravilhoso e quase-perfeito roteiro de Gaghan. Porém, tudo é suprido. A direção de Soderbergh é a melhor de sua carreira, talvez até melhor que a direção soberba de Solaris. Seus takes conseguem enquadrar com maestria, filmar de forma crua e ainda impor um tom documental em certos pontos do filme. Direção criativa ao extremo, com a devida coroação. Auxiliando ainda a narrativa, temos uma fotografia de Peter Andrews (é o Soderbergh, disfarçado, com pseudônimo), primorosa desde o primeiro frame. Ao pontuar de forma clara cada parte da trama, a fotografia entra no filme como uma inteligente solução visual para representar o que é cada núcleo. No México, temos um ambiente feio, quente, árido, com um filtro de câmera amarelado que privilegia o deserto. Nos Estados Unidos, com Robert, temos um filtro azul, que retrata um ambiente comum e gélido, onde as aparências importam mais. Já no núcleo Ayala, temos uma fotografia pesada, contrastada, que esquenta a cada minuto. Fantástica e genial, a fotografia oscarizada mereceu o prêmio. Poucas vezes se viu uma fotografia participar tanto de um filme como aqui.

Ainda em quesitos Oscarizados, temos um fator esquisito e curioso. A edição de Stephen Mirrione é muito boa, sim, dá ritmo ao filme muito bem. Porém, fica explícita a predileção da Academia por edições de cortes abruptos, que beiram a falha de continuidade. Já é a segunda vez que um editor (a primeira foi com Thelma Schoomaker, dos filmes do Scorsese) que corta rápido demais ganha o Oscar. Por isso, se você leitor quiser virar editor, corte a mesma cena duas vezes pra dar ideia de que houve edição. O Oscar virá. A trilha sonora de Cliff Martinez é a cereja do bolo. Colaborador antigo de Soderbergh (fez esse, Sexo Mentiras, Schizopolis, Kafka e mais outros, mas parou em Solaris) o compositor independente se firmou ainda mais como um compositor diferenciado. Com notas minimalistas, simples, com sons que vão do leve e calmo ao leve e extremamente tenso, a trilha impõe muito bem o tom do filme, a cada momento. Fora o sensacional Leitmotif do filme, que é uma graça aos ouvidos.

As atuações de Traffic são, também, bem acima da média. Michael Douglas, em muitas oportunidades um cara caricato e em outras um ás da atuação, faz um papel da segunda opção aqui. Robert Wakefield é um personagem difícil mas que é encarnado com a devida competência de um inspirado Douglas. Robert é tridimensional e isso é o maior elogio que posso falar para Douglas. Benicio del Toro, que ganhou o Oscar de coadjuvante aqui, faz jus a sua estatueta. Falando espanhol o filme todo, com uma atuação monstruosa e hipnótica, Del Toro faz todos os olhares de Rodriguez parecerem reais. Um pouco abaixo dos dois primeiros temos Zeta-Jones, que atua muito bem (de forma genial, considerando seu nível como atriz) e convence. Nos coadjuvantes, temos destaque pra Don Cheadle, que pode até encarnar um personagem que parece arquetípico, mas tem densidade dramática suficiente pra carregar suas cenas. E destaque pra Erika Christensen, numa atuação embasbacante como a filha de Robert. Suas cenas como drogada são algumas das melhores do filme.

Traffic é uma película arrasadora. Igualmente ambicioso e competente, o filme não só é um exemplo como narrativa como é um deleite aos olhos, sendo tecnicamente impecável. Aqui, temos Soderbergh em sua melhor fase, que infelizmente começou a cair, mudando até mesmo seu estilo de direção. Um dos grandes vencedores do Oscar 2001 é, sem dúvida arrebatador. E se Gaghan escorrega em alguns pequenos elementos que dependem da suspensão de crença, problema controlado. Afinal, não é todo dia que podemos ver um tecelão com pleno controle de sua costura, que pode até ter um ou dois pontos mal bordados, mas que é lindíssimo como um todo. Uma pena Soderbergh ter mudado seu estilo. Apesar de continuar realizando bons filmes como O Desinformante, ele poderia estar realizando algumas contemporâneas obras-primas.

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