segunda-feira, 30 de agosto de 2010


O Filmes para ver antes de Morrer nunca tentou - e nem vai tentar - criticar ou analisar uma obra que por motivos óbvios está no panteão das maiores (na opinião da equipe) já produzidas pela sétima arte, por isso o espaço aqui é para relembrarmos, homenagearmos e apresentarmos a quem não viu, grandes filmes da história do cinema.

Doutor Fantástico
(Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964)


Dr. Fantástico é um clássico. É uma das obras mais geniais de todos os tempos e um dos filmes mais amados pelos cinéfilos mundo afora. E é um ponto interessante a se notar que é o gênio Stanley Kubrick testando o terreno da comédia, algo totalmente diferente de seus filmes anteriores (e até mesmo dos posteriores). Mas Kubrick não criou esse divino filme sozinho. Ele teve visão em enxergar um ótimo material para roteiro no livro de Peter George. E ainda inovou em tirar sarro do espírito de thriller do livro. Além disso, Kubrick teve ajuda do magnifíco Peter Sellers, comediante consagrado que faz aqui três papéis (!!!) e dá sua contribuição pra história.Vale dizer também que Dr. Fantástico não é nem um pouco datado. É um filme bem inteligente sobre o contexto da Guerra Fria e retrata o quão incrível (e idiota) um homem pode ser com muito poder em mãos. Kubrick debocha disso e faz um humor negro bem ácido.

A trama, costurada com o esmero habitual do diretor, aborda vários personagens. Ela começa com pilotos em um avião cheio de bombas atômicas. Esse avião é acionado pelo General Jack D. Ripper (Sterling Hayden) para bombardear a Univão Soviética. Jack, no ápice de sua loucura e ultra-patriotismo, diz todos os seus planos e pensamentos para seu companheiro, Capitão Lionel Mandrake (Peter Sellers). Do Pentágono, vários homens reunidos tentam planejar como vão tirar os aviões do ar e impedir um holocausto nuclear. Nesse verdadeiro caos, o presidente Merkin Muffley (Peter Sellers) precisa bolar uma estratégia com o General Buck Turgidson (George C. Scott) para comunicar aos russos que os aviões estão indo ao seu território. A partir daí, começa uma tensão que envolve até mesmo o físico nuclear Dr. Strangelove (Peter Sellers, de novo).

Mas, apesar da intrincada trama, tudo é tratado com um humor refinado e negro. Não se espante se você rir ao saber que soldados foram mortos ou se ver um homem preso a uma bomba nuclear. É exatamente o que Kubrick quer, nos tratando como público inteligente.

Tecnicamente, Dr. Fantástico é belo e muito bem cuidado. A direção de Stanley Kubrick é certeira, racional e gélida, como sempre. Aqui, sua assinatura é facilmente reconhecida o que o torna um dos cineastas com mais identidade na indústria. Segura e perfeita, a direção é um ponto altíssimo do filme. A fotografia do filme, realizada por Gilbert Taylor, é precisa. Um preto-e-branco bonito, com poucos contrastes. A fotografia é bonita e elegante, muito parecida com a de Acossado. Competente, Gilbert faz um bom trabalho e dá o tom certo pra ironia de Kubrick. A edição de Anthony Harvey é muito boa também, acertando o ritmo cômico do filme. As cenas dentro do Pentágono, por exemplo, são de uma perfeita harmonia direção-edição, o que é tocante diante de tal esmero. Agora, talvez o fator determinante para que classifiquemos o filme como comédia (além do roteiro) é a trilha sonora. Laurie Johnson faz um trabalho bem curioso. Quando surge as cenas no avião, sobe a música militar, que por si só causa risadas.

As atuações de Dr. Fantástico são um primor, outro fator principal do filme. As atuações são todas ótimas, mas três atores merecem ser exaltados. Peter Sellers demonstra um perfeito domínio de atuação e criação de personagens. Incrível como Peter consegue ser 3 pessoas diferentes em apenas 94 minutos. Quando ele atua como Mandrake, ele demonstra um humor inocente, sendo um adorável medroso. Quando é Merkin, ele é seguro e faz feições engraçadas. Aqui, ele opta por um humor de vergonha alheia. Merkin sofre com os arroubos megalomaníacos de todos seus subordinados e mantém sua cara de "o que está acontecendo?". Quando é Dr. Strangelove, ele é engraçado na sua psicopatia transloucada, entregando sua melhor atuação no filme. Sellers faz aqui seu trabalho definitivo, o que realmente provou o gênio que ele é. George C. Scott também impressiona por sua atuação sem limites e delirante. Seu Coronel Buck é um ser paranóico por natureza, um típico espécime que enlouqueceu com seu poder. C. Scott também acrescenta elementos interessantes ao personagem, como sua fala rápida. E Sterling Hayden, como o Coronel Jack. Estranho e cruelmente engraçado, Sterling cria um personagem interessante, mas facilmente eclipsado por George e Peter.

No roteiro, Stanley Kubrick, Terry Southern e Peter George (o escritor do livro) criam um universo descontrolado e muito engraçado. Quando o roteiro estrutural aponta situações totalmente surreais, os diálogos fazem questão de ajudar o caos, deixando tudo ilimitado, inconsequente. E isso é um grande acerto para o filme. Deixar o non-sense prevalecer em alguns momentos é bem interessante e talvez o filme fosse bem inferior se não deixasse isso acontecer. E é interessante notar também que Kubrick, mesmo em uma comédia, mantem-se um cineasta visionário e corajoso. Suas soluções de casos no roteiro, suas piadas e até mesmo seu final são de uma irrealidade estranhamente bonita. Irrealidade, não por serem situações que exigem suspensão de crença mas porque são de humor negro demais para serem retratadas por um grande cineasta, no circuito aberto. Um exemplo: Você não iria rir com um suicídio. Mas Kubrick coloca a situação tão perto do limite que é quase impossível não rir com a situação. Definitivamente, o roteiro é o ponto alto do filme, o que determina toda a sua acidez e prova que Kubrick é um gênio, talvez o maior cineasta de todos.

No final, Dr. Fantástico pode causar um gosto amargo na boca. Piadas, situações fora de controle e até mesmo um alucinado final causam isso num público mainstream. Mas agora eu entendo porque Dr. Fantástico é tão elogiado. Seu deboche e senso crítico é preciso e intenso, um verdadeiro sonho de comédia, algo que deveria aparecer nos cinemas a todo momento. É uma película despida de pudores, algo corajoso demais para ter fácil digestão perante todos. E mais complicado ainda é pensar que esse filme foi lançado no meio da Guerra Fria, para um grande circuito. Sinceramente, se eu soubesse que o filme foi banido em algumas nações eu entenderia perfeitamente.

Ofensivo e deliciosamente malicioso, Dr. Fantástico não é o melhor filme de Stanley Kubrick. Mas é, com certeza, um dos melhores que o espectador pode ver na vida.

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