Inverno de Sangue em Veneza (Dont Look Now, 1973)
De: Nicolas Roeg
Com: Donald Sutherland e Julie Christie
Tudo isso é verdade, e basta o espectador assistir a qualquer boa produção da época para imediatamente associar os conceitos acima com o filme assistido. E isso não se aplica somente aos filmes americanos. Inverno de Sangue em Veneza, por exemplo, é uma produção inglesa e italiana, e muito se assemelha em “espírito” as obras do giallo italiano, do suspense psicológico americano (tal como Bebê de Rosemary) e do cinema de vanguarda europeu.
O filme de Nicolas Roeg é um produto de uma época, que felizmente não envelheceu, talvez por que seus temas são atemporais. A perda de alguém querido, que se transforma num choque, misturado a crença que acabamos tendo em de uma forma ou de outra estarmos próximos a pessoa que nos faz falta, é ainda hoje, forte e bastante eficaz. E talvez funcione eternamente.
Misture a isso a excelente (mesmo) dupla de protagonistas (Donald Sutherland e Julie Christie), a uma edição muito inspirada, uma fotografia deslumbrante e um timing narrativo irretocável para termos uma obra prima do suspense psicológico.
Comecemos do plot: casal relativamente jovem, perde a filha em condições bizarras (a menina morre afogada no lago que fica na própria casa). O homem, (John Baxter-Donald Sutherland) aceita um emprego como restaurador de uma igreja na bela, e retratada de forma muito sombria, Veneza. Sua mulher (Laura-Julie Christie) recupera-se do choque e vem (como é normal acontecer nesses casos) tentando encontrar novamente o “chão”. Durante um almoço eles encontram, por coincidência, duas mulheres. Uma delas é cega e alega ter poderes mediúnicos e diz a personagem de Christie que sua filha estava bem e feliz em outro “plano”.
A personagem de Christie tem uma súbita mudança de humor e Sutherland, apesar de não acreditar na história mediúnica, não vê problema da mulher tentar consultar o além, em busca de um contato direto com a filha. A partir desse segundo contato é que a história de desenrola.
Realmente um trabalho monumental.
Sutherland se vê preso a imagens de um vulto de capa vermelha (a mesma com que sua filha é encontrada afogada) e rodeado de "sombras", desconfianças e mistérios. Tais sombras são reais, ou fruto da imaginação de John? Isso é o que interessa em Roeg discutir. O jogo psicológico é muito eficiente, e durante toda a projeção você fica se perguntando o quanto daquilo é verdadeiro. Ou terá John simplesmente visto demais? Ou terá ele entrado num complô macabro?
Mais do que um filme “textual”, Inverno é um filme que toca nas raízes do cinema como arte. É um filme de imagens, de momentos, de sensações e de estilo.
As cenas de abertura do filme são impressionantes. Retratando o caminhar da pequena Christine em sua vistosa capa de chuva vermelha perto do lago. Cheio de simbolismo, ao mostrar uma mancha vermelha sobre um slide em que John examinava, apenas para lhe dar o estalo (ou será algo mais?) e ir desesperado atrás de sua filha. Brilhante trabalho.
O filme não para por ai. A montagem dá um banho de competência ao mostrar um cena de sexo do casal, bizarramente entrecortada, com o mesmo casal se vestindo para um jantar. Coisa de louco e de gênio. As fofocas dizem que a cena foi tão “boa” que o casal engatou um romance. A cena realmente parece real, apesar das convenções de como deve se mostrar sexo, ainda sim ela transpira realismo.
Porém, a montagem guarda para o final seu maior trunfo. Roeg aqui elevou seu filme da condição de produção excelente para um filme eterno. A forma como ele filma, entrecortado pela montagem de vários personagens envolvidos de alguma forma com a perseguição de John pelo vulto vermelho são assombrosas. E o final ... a revelação é muito, mais muito boa. No melhor estilo giallo (gênero que adoro).
Graeme Clifford é o mago. O mesmo que fez o Cult- clássico Rocky Horror Picture Show, O Homem que Caiu na Terra (Roeg again) e FIST (um dos primeiros filmes de Sly Stallone).
Roeg o diretor tinha feito Performance (um filme Cult com Mick Jagger), e Walkabout (sobre uma viagem existencial no sertão da Austrália) e viria a fazer depois outro Cult, O Homem que Caiu na Terra com David Bowie. Em todos esses o apuro visual é seu forte, porém em Inverno (seu melhor filme) ele consegue misturar isso com uma excelente direção de atores e com uma cumplicidade total com seu fotógrafo Anthony Richmond, um veterano que fez desde Symphaty for the Devil, passando por O Homem que Caiu na Terra (com Roeg de novo), Candyman, Homens de Honra, Legalmente Loira, The Greek Tycoon e a Luta pela Esperança entre outros. Mas nunca alcançou o nível de perfeição que conseguiu em Inverno.
A trilha, outro ponto muito forte em Inverno, foi a primeira da longa carreira do veneziano Pino Donaggio. Muito funcional, em especial nas cenas em que tenta ilustrar o desespero e desamparo de Sutherland. Donaggio depois faria: Carrie, Vestida para Matar, Grito de Horror, Blow Out, Dublê de Corpo, Trauma (do grande Dario Argento) além de ter sido o compositor original da canção (regravada em inglês) “You Don’t Have to Say You Love Me”, que vendeu demais.
Inverno é consistente no que propõe. Amparado por um desbunde técnico, ainda consegue manter o espectador ansioso por seu retumbante, mesmo depois de mais de 30 anos de seu lançamento.
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