segunda-feira, 5 de abril de 2010



O cinema americano é pródigo em reciclar os gêneros cinematográficos das mais inusitadas formas. Peguemos como exemplo, os dois gêneros que mais sintetizam o cinema desse país: o western e o filme noir. O western é visto e revisto das mais variadas formas, com as mais variadas leituras e re-imaginações. Desde o western clássico, dos bons homens brancos contra os terríveis e violentos índios, passando pelo confronto entre os bons índios e os insensatos homens brancos, chegando a disputa entre dois homens em campo aberto por qualquer forma de vantagem comercial, filosófica ou emocional.

Já o noir, ainda mantém algumas de suas características primordiais mais claras e imutáveis. Ainda vemos o detetive investigador atrás da solução de algum crime, na busca pela verdade sempre se envolvendo numa trama muito maior do que sua proópria competência e resultando numa sucessão de eventos trágicos e que modificam sua forma de ver o mundo e suas relações com ele. Porém esse “homem da lei” pode ser mais corruptível do que os corruptos que ele caça. O gênero se moldou ao tempo, e o que outrora era noir, hoje é policial. Vide Vicio Frenético (as duas versões). Se fossem feitos nos anos 50, provavelmente seriam noir. A banda toca, a caravana passa e só fica pra trás que já morreu.





O que nos leva a peça de análise em questão:

Blade Runner é um misto de western com filme noir embrulhado como ficção científica pós-moderna. Estão lá: o detetive complexo, anti-heroi e perdedor que se envolve numa trama muito maior do que poderia imaginar encontrando no meio do caminho um amor, uma revelação e uma forma nova de ver o mundo ao seu redor. Estão lá também, defendendo a classe dos westerns, o homem que chega a cidade, desconhecido em busca de vingança contra aquele que o feriu de forma indelével. Os tiroteios pela cidade, os conflitos entre duas etnias completamente opostas e o confronto final ao por do sol (no caso ao nascer do sol).

Deckard e Batty encarnam dois estereótipos maniqueístas de maneira muito eficaz. Se por um lado o “mocinho” é o detetive sombrio, não temos como negar que o “vingantismo” de Batty é filosoficamente mais correto. Deckard cumpre, a principio, ordens. Batty quer apenas um pouco mais de tempo vivo, pois não consegue compreender como tudo aquilo que viveu, viu e experimentou pode ser simplesmente apagado, como (citando o próprio filme) “lágrimas na chuva”.





Mas o que faz Blade Runner definitivamente entrar para a história do cinema moderno mundial, é a capacidade de inserir tantos contextos e sub-textos numa mesma obra e ainda apresentar novidades. Batty não é humano, ele é uma prova viva de que o homem realmente inventou Deus, pois conseguiu reproduzir e melhorar a tal “obra do criador”. Porém, o homem é invejoso e cruel, e ao perceber que eventualmente a criatura suplantaria o criador, o amaldiçoou com uma praga que causa toda a revolta do grupo de autômatos (chamado replicantes, pela inigualável capacidade de replicar, ou seja, imitar com perfeição o humano).

Não é surpresa então que o espectador tenda ao fim do filme a enobrecer os robôs. É a construção maravilhosa do personagem de Rutger Hauer que causa isso, pois tal qual HAL 9000, apresenta os comportamentos mais humanos de todo o filme. Ele ama, odeia, sente medo, sente solidão e ternura. Deckard ao principio do filme, é mais autômato do que o próprio andróide, como se soubesse que no fundo sua existência não passava de um nevoeiro denso, com esparsos momentos de luminosidade.





Ridley Scott aqui, muito mais do que cinema, fez história. A influencia do filme em toda uma geração que “comeu” sua linguagem, estética e conceitos é inegável. Sua enorme capacidade de misturar elementos num filme difícil, de andamento lento e embalado por uma das maiores trilhas sonoras da história do cinema, é um feito gigantesco.
Nas mãos de outro cineasta menos competente ou menos meticuloso, Blade Runner poderia se transformar num policial b, com cara de modernoso.

Ao apostar nos bueiros vaporosos, nos guarda-chuvas com cabos luminosos, nas capas de chuva marrons, nas corujas, no esperanto, na umidade e na quantidade brutal de chuva, Scott conseguiu criar uma estufa apertada, cinematograficamente claustrofóbica e metaforicamente ressonante.





Quantos ao fim da projeção perguntaram-se, será Deckard um replicante? Essa pergunta que hora é respondida de forma afirmativa, hora não, reforça o poder que a obra ainda apresenta mais de 20 anos depois de seu lançamento. Fomentar discussão e uma variedade de interpretações sobre uma obra áudio-visual, literária, radiofônica, musical ou afins, não é obviamente um guia para a sedimentação da mesma como fundamental, mas reforça o interesse do público, pois as gerações se renovam e ainda hoje se impressionam com tais obras.

Scott ainda consegue criar algumas das imagens mais iconográficas da década de oitenta e por conseqüência mais algumas da historia do cinema. É impossível não se impressionar com a sequencia inicial quando vemos Los Angeles como uma selva luminosa, onde pipocam aqui e ali uma fauna de “vulcões” em erupção. Então vemos o reflexo no olho de alguém (uma imagem ainda hoje muito bonita), e a panorâmica de uma enorme instalação onde a cada pequeno ponto de luz, entendemos funcionar um escritório, casa ou empresa.





O filme é todo recheado de imagens assim, graças a fotografia única de Jordan Cronenweth, a mais importante da ficção científica da década de oitenta. O mesmo pode ser dito da direção de arte ( Lawrence G.Paull, David L. Snyder e Linda DeScenna) que amplia o escopo de futuro sujo que já havia sido criada por Lucas com os Star Wars, ampliada pelo mesmo Scott em Alien e alcança aqui a sua “visão final”. Tudo o que veio depois e que aborda mega-cidades futuristas, deve o dinheiro da produção para Blade Runner. Estão lá todos os objetos de cena tão copiados mundo afora: miscigenação étnica e por conseqüência uma incrível cacofonia de sons, condições de saúde publica inexistentes, ambiente opressivo, publicidade em todos os espaços possíveis, a chuva ininterrupta que dá a sensação de isolamento nas pessoas, já que as mesmas se refugiam por baixo de seus guarda-chuvas e neons enormes que “ornam” com a ausência de luz e o estado de sombras constante.

A iluminação do filme, que combinada com a fotografia, é a cereja no bolo do filme. Não existem planos onde a luz naturalista não esteja (quando é usada) combinada com algum outro fundamento de iluminação diferente. Quando Deckard, por exemplo, analisa as imagens de suspeitos na telade uma espécie de TV em sua casa, a sala se enche de azul, porém ao fundo os carros de policia “atiram” fachos de luz branca para dentro da casa, causando uma metamorfose de sombras na mesma cena. Uma coisa complicada de fazer, e que quando bem feito resulta sempre em imagens de muita força.





Scott, infelizmente, alcançou seu ápica criativo muito cedo, e sua carreira a partir desse monstro chamado Blade Runner, só seguiu ladeira abaixo, com alguns poucos momentos de inspiração. Uma pena, pois nesse filme e em Alien, Scott parecia ser um gênio.

Andróides em Fotogramas














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