A Ressureição de Adam
(Adam Resurrected, 2008)Drama - 106 min.
Direção: Paul Schrader
Roteiro: Noah Stollman
Com: Jeff Goldblum, Willem Dafoe, Derek Jacobi, Ayelet Zurer
Muitos acreditam que o palhaço esconde uma profunda e incontrolável tristeza por trás da alegria, das caras pintadas, dos sorrisos e das risadas. Que por trás dos gestos exagerados, das roupas extravagantes, da maquiagem branca e da infinidade de piadas está um ser atormentado, que por uma razão ou outra usa do riso como válvula de escape para suas frustrações, medos, fobias, culpas e tormentos.
Paul Schrader parece crer cegamente nisso, e a partir da história do palhaço Adam Stein, molda uma das mais bem feitas alegorias sobre a insanidade e o reflexo psíquico das vítimas traumatizadas pela guerra. Como poucos, consegue compreender o verdadeiro estado de alteração mental a que passam aqueles que de uma forma ou de outra entram em contato com os terrores da guerra. Como poucos, reflete na tela sem pudores e de forma hermética e lírica tais problemas.
Muito do mérito dessa pérola, que se os deuses do cinema abençoarem, em breve deve se tornar um dos filmes da década, reside na combinação quase simbiótica entre a excepcional direção de Schrader e a atuação estupenda de Jeff Goldblum.
O diretor é um dos remanescentes da “Nova Hollywood” e um dos poucos que ainda consegue operar “abaixo do radar”. Depois dos roteiros premiados de Taxi Driver e de um dos meus favoritos de De Palma (Trágica Obsessão), Schrader seguiu sua carreira sempre ousando seja nos temas, na linguagem visual, no “cast” ou nas fórmulas apresentadas. Schrader é sem dúvida um dos diretores mais subestimados do cinema. E é um nome a ser conhecido e visto com mais freqüência.
O outro elo do simbionte é Goldblum. O ator americano é uma figurinha carimbada conhecida por quase todos os amantes de cinema, por seus papéis em filmes de grande sucesso como Jurassic Park e Independence Day e alguns filmes Cult, como a Mosca, Aventuras de Buckaroo Banzai e O Reencontro. Em todos eles Goldblum de maneira mais intensa ou de forma mais discreta fez uso de maneirismos que muitas vezes fizeram suas atuações serem desmerecidas. Por isso, é muito prazeroso escrever que em Adam Resurrected, Goldblum tem sua melhor interpretação. É muito bom poder ser uma das testemunhas do momento em que o ator consegue resvalar os dedos nos domínios da perfeição. Tudo em seu personagem é sublime. Desde os momentos de total insanidade, as situações perturbadoras a que ele é submetido em flashbacks de guerra (onde somos premiados com o prazer da companhia do grande Williem Dafoe), seus atos como uma espécie de palhaço do caos, sua relação doente com a enfermeira e a eterna instabilidade com que se relaciona com um garoto com os mesmos problemas que ele enfrentou.
Schrader ainda tem tempo (e garanto que consegue com extrema destreza) para nos questionar se a tal insanidade pregoada pelos psiquiatras e afins não seria no fundo, apenas o estado “natural do homem”, sem as amarras, e que uma vida de excessos é muito mais proveitosa do que uma vida de marasmos sensoriais. Uma discussão deverás interessante.
Schrader sempre foi um brilhante roteirista, e é sempre bom vê-lo dirigindo textos dos outros, pois por conhecer realmente o trabalho, a complexidade e os desejos do roteiro, consegue tratar dele com a reverência necessária. Sem excessos literários, mas sem a libertinagem que muitos transformam seus referidos roteiros.
Tecnicamente Schrader consegue mesclar a tecnologia atual no uso da iluminação e nas cenas em p&b, um recurso bastante funcional para retratar a guerra. Para o diretor, entendo eu, a guerra não deve ter cor, nem brilho. É tudo um eterno e moroso cinza. Sem vida e sem luz e que deve ser tratado como foi, ou seja, sem gracejos. A câmera continua a mesma inquietante dos anos 70 (o que é bom). Apesar de tratarmos de um drama, a câmera ainda balança, ainda foca de forma assimétrica, ainda é abelhuda e ainda é inteligente. Mostra o que precisa ser visto, e as vezes até um pouco mais. Foca-se nos atores, foca-se em Goldblum e ajuda ainda mais o seu impressionante desempenho.
Ao fim da projeção, me inquietei com o fato de uma preciosidade como essa ainda não ter tido chances por aqui. Reflexo do poder resgatado pelos estúdios, em muito graças aos cineastas da mesma geração de Schrader. Adam Resurrected, em teoria, jamais poderia atrair o público sedendo por comédias sacaróticas, excesso de testoterona de mentira (e não como Peckinpah, por exemplo fazia) e fanática por séries, remakes e vampiros vegetarianos.
Vivemos numa era insana e perturbada, tão absurda que nem a loucura é mais apreciada.
Façam um favor a si mesmos, e assistam a esse filme.
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