A Dangerous Method
(A Dangerous Method, 2011)
Drama/Thriller - 99 min.
Direção: David Cronenberg
Roteiro: Christopher Hampton
Com: Michael Fassbender, Viggo Mortensen e Keira Knightley
Sempre um mestre em adentrar a psique do ser humano de forma visceral, o canadense retratou por anos a mente do homem de forma criativa, ao nunca dar um senso total de realidade ao espectador. Assumindo o ponto de vista da vítima, o desconforto causado era enorme. Assim, Cronenberg encontrou uma forma de liberar o gore que tanto gosta de forma orgânica à narrativa. No início de Um Método Perigoso, quando Sabina Spielrein é levada até o psiquiatra Carl Jung, um breve flerte com o cinema físico do diretor é visto. A histriônica Knightley, atriz limitada que consegue demonstrar segurança quando bem dirigida (o que é o caso aqui), curva seu maxilar pra frente, grita desesperada, como se algo estivesse dentro dela, subindo a espinha. É como acompanhar Existenz ou Scanners, só que sem algo sair do corpo.
Esse traço da antiga personalidade do diretor se apaga ali mesmo. Sabina continua com seus problemas psicológicos, mas a eloquência da retórica de Jung do cada vez melhor Michael Fassbender acaba suprimindo a quase caricata Knightley. Ali, começa a se ensaiar uma análise ao modelo de Senhores do Crime, o que nos leva a pensar que a expectativa da observação visceral do comportamento dos personagens seria realizada.
Porém, a expectativa se mostra infundada com o passar do tempo, já que o rico subtexto, as ações dos personagens e a análise deles mesmos tomam conta da projeção. Cronenberg demonstra coragem ao dirigir seus personagens de um modo que os próprios vejam suas ações. Demonstrando maturidade ao não entrar como personagem-diretor (o que é uma constante em sua filmografia cheia de identidade), Cronenberg acredita que seus personagens, mesmo com suas perfeições e imperfeições, são instruídos o suficiente para realizar a análise sozinho. Resta ao diretor, então, registrar o debate apenas com o poder astuto de sua observação.
O que nos leva a brilhante lógica visual adotada pelo diretor. Utilizando uma lente angular que aproxima ao máximo o primeiro plano e deixa o segundo plano como uma "sombra", Cronenberg consolida sua iniciativa de deixar os próprios personagens se analisarem. Sabina fica em primeiro plano, com suas facetas desequilibradas, enquanto o corajoso Jung fica ao fundo, apenas elaborando as perguntas certas. O suíço, na realização do teste, se posiciona próximo a câmera, pois o que o diretor quer ver é a reação dele perante as respostas da mulher, o que não deixa de ser uma bela exceção a regra imposta. E se estabelecer e exceder a regra não são suficiente, Cronenberg ainda faz questão de subvertê-la, da maneira mais orgânica possível. Jung é um aprendiz e admirador convicto de Freud. Não por acaso, na primeira conversa dos dois, sobre o sonho de Jung, quem fica em segundo plano é Freud, o analista supremo. Para ficar na termologia do austríaco, o diretor atravessa o Id e o ego para atingir o superego, a subversão da própria regra, a demonstração de pleno domínio sobre a mesma.
Logo, se visualmente a análise já se esquematiza de forma interessante, se inicia a forma de aprofundá-la, com o belo roteiro escrito por Christopher Hampton. Os pais da psicanálise começam a se conhecer melhor - e as diferenças, obviamente, começam a aparecer. Freud, vivido com leveza e enorme competência por Viggo Mortensen, é pragmático em sua teoria. Já que a sua ciência, a mais subjetiva delas, é tão difícil de ser aceita pela sociedade, por que ir além do estudo das neuroses sexuais? Jung, por sua vez, se demonstra ousado como qualquer aprendiz. Não satisfeito em apenas estudar mais a fundo a mente humana, ainda sugere certa sobrenaturalidade da mesma (como prova a passagem da madeira).
Particularmente, as diferenças ficam mais explícitas. O que move Freud com sua teoria, afinal, é a sorte. Ao analisar o caso de Sabina, a russa que geme de prazer com a agressão de uma bengala em um sobretudo, o analista primordial se demonstra certo, ainda que seja um golpe do acaso. Otto, o personagem de Vincent Cassel, serve na narrativa para introduz Jung no conflito teoria X prática, que permeia o filme desde a gênese do conflito dos dois protagonistas. A Liberdade entra em embate com o Reprimido, o Sagrado bate com o Instinto. Ao se deixar envolver com Sabina, Jung cria a luta da Ternura contra o Carnal. Com a esposa, há o amor. Mas com Sabina, a paixão é pela carne - e pelo próprio ato de investigar a mente do ser humano. Após isso, é fácil ver que Jung é, após Otto, um psiquiatra claramente prático, enquanto Freud se limita á teoria.
Mas indo para o cruzeiro nos Estados Unidos, é fácil finalizar a discussão. Quando a Estátua da Liberdade entra na tela, ela se posiciona entre Freud e Jung. No final das contas, a resposta só chegará com o equilíbrio dos dois. Os dois estão certos - porque ambos estão errados. A liberdade da mente, fractal ao filme, só será alcançada com a união dos pensamentos de ambos. O resultado se vê hoje em dia.
Como filme histórico, obviamente, Um Método Perigoso carregaria na narrativa um evento marcante como consequência. Porém, o evento se torna algo muito maior, já que o Holocausto é mais estrutural e psicológico que físico aqui. Não é um maneirismo gratuito, afinal o filme perigava nem existir sem ele. O ariano Jung, enriquecido por seu casamento com a rica Emma, é invejado pelo judeu Freud, já que detém inúmeras posses. A judia Sabina, debate com Jung sobre a admiração por Wagner, um dos idealizadores da base do Nazismo. "Os anjos falam alemão", diz Jung. Não é difícil ver ali, naquele alívio cômico aparentemente superficial, uma tendência arrogante de se proclamar raça superior. Freud, por sua vez, diz para Sabina que "os judeus tem que ficar unidos", o que também não deixa de ser arrogante da mesma forma. Nesse conflito interessante das raças, deixando as ações erradas de ambos falarem por si só, o filme ultrapassa a difícil barreira de período histórico ao encaixar o conflito perfeitamente na narrativa, passada ás portas da Primeira Guerra Mundial.
Obviamente, Cronenberg ainda não tem a habilidade que tinha nos suspenses mentais-físicos e psicológicos nessa nova iniciativa, mas continua um mestre na narrativa. As elipses espaçadas, que permeiam perigosamente o gênero do filme histórico, aqui são quase perfeitas. O diretor trata com naturalidade a ida de Jung para o serviço militar, o que rende uma elipse que mal se nota (e não há elogio maior para uma passagem brusca de tempo). O esquema prossegue, nas tensas cartas trocadas em dias por Jung e Freud, mas se perde um pouco na elipse final, que sacramenta a rivalidade dos dois e dá o destino final aos personagens. Um erro menor, porém.
E o que finaliza com perfeição as três vertentes psicológicas do filme é perceber quem foi melhor aceito. Não por méritos, já que todos são brilhantes. Mas por mera circunstância. A antes problemática Sabina torna-se digna de analisar o antes racional Jung. O idealismo consumiu o suíço.
Por isso Um Método Perigoso é tão importante na filmografia de Cronenberg. Antes o diretor analisava de dentro da vítima, pois não sabia observar como um analista. Após ganhar certa experiência, o diretor começava a observar como contador de histórias, já que havia aprendido algo para construir seus personagens. Agora, Cronenberg ganha experiência suficiente para deixar seus personagens, construídos ao longo de uma filmografia, se analisarem sozinhos, por si só. Não por acaso, são três psiquiatras. O primeiro passo do diretor em sua terceira etapa.
Videodrome, Marcas da Violência e Um Método Perigoso. ID, Ego e Superego.
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