terça-feira, 11 de outubro de 2011



A Outra Terra
(Another Earth, 2011)
Drama - 92 min.


Direção: Mike Cahill
Roteiro: Brit Marling e Mike Cahill


Com: Brit Marling, William Mapother e Matthew Lee-Erlbach


A dança é enérgica. A estudante do MIT Rhoda Williams dança com certa insegurança. Deve estar um pouco bêbada, talvez. A estupenda trilha experimental do filme já se ouve ao fundo. Surge, então, o título do filme. Nesse começo, que lembra o empolgante recorte de imagens de Pi, somos introduzidos a um mundo todo particular, onde a melancolia se faz na presente atmosfera. Após sair da festa, Rhoda ouve no rádio sobre um planeta. Esse tal planeta desconhecido está se aproximando, é um pontinho azul brilhante. Para a protagonista, é um fascínio, uma linda descoberta, um corpo celeste estranhamente magnético que ela simplesmente não consegue tirar os olhos. Mas para John, sua família é o mais fascinante dos corpos. Só que Rhoda não está prestando atenção na estrada.

Assim começa o terror emocional da protagonista de Another Earth, uma excelente ficção-científica utilizada para auxiliar a resolver os dramas tipicamente humanos. Como no já citado Pi, filme de estréia de Darren Aronofsky, o filme usa os elementos complexos de um sci-fi para resolver o difícil drama de um homem (no caso, uma mulher e um homem). Mike Cahill, diretor e roteirista de primeira viagem, têm um talento particular para desenvolver as etapas de uma jornada de aceitação. Pode não ter um talento propriamente dito como diretor, ao abusar de zooms desnecessários e uma câmera na mão que dá uma urgência desnecessária ao filme, mas tem habilidade no desenvolvimento de personagens - o que em um filme como Another Earth é o primordial.

A paixão pela ficção é reconhecida em diversos momentos. Cahill filma o livro de Asimov que Rhoda tem, implanta discussões bem interessantes sobre o outro planeta (a melhor delas fica perto do final, quando a Alegoria da Caverna de Platão é citada) e ainda demonstra um apreço pelo absurdo ao nos deixar perplexos com o primeiro encontro de uma mulher com sua contraparte na Terra-2. Uma cena que é brilhante apenas por ser tão curiosa e ser apresentada com tanta paixão pelo roteirista/diretor.




Rhoda, vivida com intensidade ímpar pela espetacular Brit Marling, fica desolada após o acidente (que é registrado com inventividade por Cahill). Sua jornada após sair da prisão é triste, sem chão. A loira se sente solitária - e com razão. Sua família tenta encarar com naturalidade sua volta, mas Rhoda simplesmente não consegue esquecer o corpo daquele menino no chão, após a batida. Para uma estudante de física, nada mais plausível que o suicídio, despido de roupas, numa climática neve.

As etapas da quase-depressão de Rhoda são registradas (essas sim) com competência por Cahill. Ao usar ângulos desfocados, registrar a protagonista apenas de relance, no canto do quadro, representa bem a sutileza que a alma dela se tornou. Cahill filma com cuidado porque, com qualquer movimento brusco, ela desmoronaria. O minimalismo presente aí se revela também nas ótimas passagens em câmera lenta, que Rhoda anda, se questionando, com o belo planeta azul ao fundo. As questões científicas se restringem a essas passagens, que Rhoda tem dúvidas sobre o que achar da descoberta. No final das contas, Another Earth é um drama sobre superação e perdão que usa o sci-fi como pano de fundo. O que importa, em síntese, não é a viagem e sim a jornada até lá. Usando um paralelo recente, Melancolia de Von Trier é assim também. O processo da depressão era o principal, o fim do mundo era apenas a concretização desse processo. Em Another Earth, não é diferente: a jornada de Rhoda é por perdão, o planeta serve como ferramenta para esse perdão.

E nesse processo do perdão, que não é inédito mas tampouco é clichê (tudo depende de como há o desenvolvimento), Rhoda é testada em diversos pontos. A dor que a protagonista mostra ao ver a foto de John e seu filho é de cortar o coração. O fato dela se tornar uma servente após sair da prisão pode até soar exagerado, se isso não fosse crível num país como os EUA. Fora que lá, apesar de ser uma coincidência (que serve até como metáfora para o destino, o que fecha o último take com brilhantismo), ela conhece o servente cego que leva a medidas extremas su
a condição.



Another Earth pode até ser uma ficção competente, como na espetacular já citada cena do contato, mas é como drama intimista que se sobressai. O drama é grande, sim, mas é porque a culpa de Rhoda também é. Como em Sleeping Beauty, temos um filme como a sua protagonista. E a pergunta continua: o que seria da principal personagem num filme que se propõe intimista, mas que de nada tem sua personalidade? É interessante acompanhar as discussões argumentadas sobre o que pode ser o outro planeta, como será que nos chamam lá, como que são as coisas lá. Mas é tão interessante ver também naquela Terra-2 uma segunda chance, uma tentativa de mudar o passado. Um necessário enfrentamento ao medo, bater de frente com as consequências de seu passado. E é maravilhoso quando vemos um filme tão simples ser tão bem desenvolvido.

E quando percebemos que a última cena é mais um ato altruísta de pagar o favor, é como se ouvíssemos um "obrigado" em off. A jornada valeu à pena, mesmo que não tenha sido concretizada.



Michael
(Michael)
Drama - 96 min.

Direção: Markus Schleinzer
Roteiro: Markus Schleinzer

Com: Michael Fuith, David Rauchenberger e Christine Kain

Enquadramentos duros registram o homem. Michael, o tal homem em foco, tem uma vida normal. Ele aparenta ser corretor, está prestes a ser promovido, tem uma casa confortável, um carro relativamente bom. E tem seu prazer saciado com outra coisa "normal": violentar constantemente um menino de 10 anos. É isso que Markus Schleinzer, diretor e roteirista do filme, parece querer dizer. É estupendamente corajoso humanizar um pedófilo, mas quanto maior o pulo, maior a queda. Ou você humaniza e testa ou você estuda.

E Michael não quer nenhuma das duas coisas.

O brilhante início do filme representa bem a rotina de Michael. Nisso, há momentos crus como a limpeza que o protagonista dá em seu pênis. Sugestivo, sem ser explícito, muito mais tenso que gráfico. Na ambientação, tudo é formidável. Após a rotina de Michael (e o surgimento imponente do título e ridículo do diretor), somos apresentados á rotina de Wolfgang, o menino molestado. A criança, curiosamente astuta e esperta, acaba aceitando sua condição por não ter tanta força quanto o molestador, não por ser passiva. Em ligeiras explosões de raiva, ocorrem as tentativas de agressão, mas como disse o monstro Michael, "Você acha que tem a mínima chance?".



Nesses pequenos momentos, se nota a competência de Schleinzer como realizador visual. Tudo no filme depende de uma análise empenhada do quadro, para nos encontrarmos na narrativa. Sabemos que Wolfgang está acostumado com a situação pois quando a luz apaga, a lanterna tem um suporte. Sabemos que Michael não deixa pistas sobre sua condição pois Wolfgang só sai de casa coberto, para só se situar quando estiver bem longe. Podemos não ver porque o menino tosse, engasgado no parque, mas dá para sacar. O colchão nunca é explicado, mas que ele isola o barulho, isso isola. O diretor nunca nos diz quem foi promovido, mas não é por nada que Michael começa a ir de terno para o trabalho. E nesse jogo de cena, a tensão entra em um colapso quando vemos que aquele beliche não foi comprado á toa.

Se é mestre em contar apenas por imagens sua narrativa, Schleinzer não tem a mesma habilidade como roteirista. Para ficar apenas nas comparações do visual, é interessante medir o trabalho de Schleinzer com o de Pedro Almodóvar em A Pele que Habito. Enquanto o austríaco cobre sua nula narrativa com uma linguagem visual fascinante, o espanhol enriquece seu exímio roteiro com uma direção primorosa (que inclui um cross-fade fascinante, que revela o grande segredo do filme). Narrativa não-convencional é um trunfo, afinal o primeiro passo para a glorificação é à saída da zona de conforto. Quando não se tem o que contar linearmente, se conta estudando os personagens e as situações. E como discípulo de Michael Haneke (Schleinzer era assistente dele), o diretor deveria saber que quando se toca em um tema delicado, não basta coragem; tem que haver desenvolvimento. E o máximo que sabemos sobre Michael se dá nas melhores passagens do filme: ele é infantil (a guerra de neve), se afeiçoa á violência ("O que quer que enfie em você?") e não tem habilidade com as mulheres (na irônica, simbólica e soberba cena com a mulher na cabana de madeira). Se o protagonista é vazio, cabe ao roteiro testar ou estudar esse vazio. Michael apenas segue até acabar, o que periga gravemente sua unidade.



E fugindo de um Sleeping Beauty, onde nada acontece fisicamente mas tudo acontece no sub-texto, Michael abraça a catarse pela catarse, ao mostrar um pedófilo monstruoso apenas... por ele ser um pedófilo monstruoso. Em certo ponto, um personagem diz: "Dizer tchau para Michael significa..." e corta a cena. Se nem o roteiro parece saber, pelo menos há honestidade e coerência nessa falta de unidade. Não é necessário respostas, mas perguntas, essas sim, são essenciais.

A ponte que separa o bom Michael de algo memorável não é a ambição ou o talento do diretor. É saber diferenciar quando nada acontece e quando só parece nada acontecer.


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