segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Moinho e a Cruz
(The Mill and the Cross, 2011)
Drama - 92 min.

Direção: Lech Majewski
Roteiro: Lech Majewski e Michael Francis Gibson

Com: Rutger Hauer, Michael York e Charlotte Rampling

O início estático faz sentido. Ali no quadro, as cores estão bem vivas, ainda que carreguem certa opressão típica de uma tela do século XVI. Porém, as pessoas ali pintadas começam a se movimentar pelo cenário, ainda que o mesmo esteja congelado. O pintor as observa como se fossem sua criação. Mas quem seria o criador das pessoas? O que importa, no momento, é que essa atividade exige cuidado. Nada pode dar errado, tem que se esboçar o máximo para, só depois, concluir a obra. E não se preocupe muito com todo esse difícil processo de criação.

No final, o quadro será seu.

O primeiro filme de projeção internacional do diretor polonês Lech Majewski, este O Moinho e a Cruz, segue a tendência de filmes como o premiado Vocês, os Vivos! e a recente obra-prima As Quatro Voltas, ao adotar uma abordagem especialmente visual para uma trama que é tão forte em seu subtexto que não precisa de uma estrutura aparente para sobreviver.




Quando acompanhamos a delicada rotina de um grupo de pessoas no que aparenta ser a Idade Média, logo um paralelo se estabelece com o excelente épico de Nicolas Winding Refn, Valhalla Rising. Os dois filmes dividem as paisagens vastas, com campos abertos e verdes, aliados a uma fotografia esfumaçada que dá um toque contemplativo (ainda que rígido) ao projeto. Dividem-se, porém, em sua abordagem completamente distinta dos personagens. Se ambos contêm essa narrativa visual, Valhalla prefere desenvolver seus personagens pelas suas ações, já que o que está acontecendo é algo muito maior que eles mesmos. Já Moinho vai na contramão, ao passo que o objetivo do filme, justamente, é mostrar os costumes das pessoas que testemunham um grande evento, mas que não têm noção da magnitude do mesmo. Ninguém é capaz de contemplar as sutilezas.

Algumas pessoas estão dentro de um aparente casebre. O tom amarelado, envelhecido da direção de arte, sugere uma época antiga. Os sapatos de ferro também dão a noção certa da época que estamos. Todos ali dentro parecem trabalhar para que a estrutura de engrenagens seja bem-sucedida em sua tarefa. O Moinho deve funcionar. Mas o que é esse Moinho?

Várias pessoas caminham dispersas pelos campos gigantes do local. Elas parecem sem rumo algum, mas têm tarefas a serem feitas. A mulher ocupada, que mesmo assim dança com o pintor e o neto, tem que entregar algo, na cesta, para alguém. As crianças brincam na casa, fazendo bagunça com qualquer coisa. Seja na cama desarrumada ou na simples mesa de refeições. O mais enérgico de todos, o que acordou todas para brincar, ainda é o bisbilhoteiro.




Um homem, fugindo para algum lugar, cometeu um crime. Quando é pego, ele conhece a fúria da justiça implacável e é encaminhado para sua prisão, a roda que se apóia no tronco. Alguém chora por ele. Com o tempo, o urubu devora todas suas lembranças e esperanças, vislumbres de um futuro que poderia ter sido diferente. Uma mãe chora, ao olhar para o horizonte. Um choro tímido, sutil, imaculado. Amorosa, a doce senhora vivida pela impecável Charlotte Rampling parece se perguntar em diversos momentos, sozinha, sobre várias coisas. Se sua vida foi calma, cheia de emoções religiosas, por que ela está sendo retribuída assim? Por que aquele Deus, que tanto prometeu para ela, não parece ouvir as preces agora? Mas principalmente, ela se pergunta, mentalmente.

Por que meu filho está junto daqueles ladrões naquelas três cruzes?

O Moinho e a Cruz é a representação máxima de como um evento de grandes proporções é só uma mera folha no mar de árvores da população de um lugar. O Calvário do quadro de Bruegel só é importante com o passar dos anos. Assim como o artista, que pouco elogiado e que vive maltrapilho. A contemplação daquele mero esboço só poderá ser feito muito depois, em um moderno museu. Bruegel sabe que não tem capacidade de contemplar, assim como as outras pessoas. Por isso, usa de sua alma de artista o máximo que pode. Se não se nota uma coisa, congele o tempo. Quem sabe, acharemos algo que perdemos. E congelando, o Moinho se torna a Cruz. Observa como um verdadeiro deus solitário, que só tem a companhia de quem o pergunta sobre a obra. Admira cada belo detalhe, seja o belo corpo nu feminino ou os três homens, que parecem magos, numa alquimia melancólica. E quando aquele homem está no chão, sendo perseguido no final, a população mal percebe, nem liga. Não há como não perguntar: seria ele, outro escolhido de Deus?




Na opressiva ausência de Deus, Bruegel tem o Moinho. Maria pergunta, mas não tem respostas. Pelo menos, tem a quem olhar. Ironicamente, sua janela dá diretamente para o Moinho. Em todas as casas, mesmo na das crianças bagunceiras, temos o Moinho, mesmo que lá no fundo. Mesmo que Deus não nos veja, o Moinho vê. E quando o homem está na Cruz, não poderia ser mais preciso. Ele está longe, não consegue ver quem queria. Onde está seu Moinho agora?

O filme é o processo de criação de um artista. Como uma aranha, que tece sua teia e deixa-a para o resto do mundo. A melhor das artistas, a que vive de sua paixão e a fornece para o belíssimo mundo em que vive. E isso sem cobrar nada. Porque como dito anteriormente, a Vida é uma arte. E naquela cidadela, aprendemos mais sobre cada uma das singelas pessoas ali presentes. Existe algo, afinal, sob a camada de óleo e verniz.

Porque Deus é o Moinho, Jesus é qualquer um, e o Moinho é a Cruz. Já o quadro, esse é seu.




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