Sleeping Beauty
(Sleeping Beauty, 2011)
Drama - 102 min.
Direção: Julia Leigh
Roteiro: Julia Leigh
Com: Emily Browning, Rachel Blake e Ewen Leslie
Lucy está indo a um laboratório. Ela está ali para fazer testes, para ganhar um dinheiro. Depois, ela vai para uma loja de fotocópias, com o mesmo objetivo. Trabalha num restaurante, visando lucro. Com tantos caminhos para o mesmo fim, não chega a ser estranho quando ela visita a casa de Clara.
Sleeping Beauty, primeiro filme da escritora australiana Julia Leigh, entra na cabeça da protagonista no primeiro momento e só sai no último. Uma jornada que transita entre o onírico e o absurdo, um estudo de personagem que se torna mais complexo pela maneira como é abordado. Ao adotar a forma fria de ver as coisas que a personagem principal tem, o filme abraça a frieza emocional e a narrativa majoritariamente visual para contar sua história.
O cuidado visual se instala desde o primeiro frame. A fotografia estupenda de Geoffrey Simpson opta pelos tons esbranquiçados e azuis, o que torna o filme moderno (ainda que livre, isso é uma releitura de um clássico, afinal) e elegante. Não apenas visual, a solução criada funciona maravilhosamente na narrativa, já que traz constante opressão. Essa atmosfera opressiva, funciona tanto para o roteiro quanto para a protagonista: em um mundo onde as aparências são as que mais contam, uma abordagem opaca vinda da protagonista não é de se espantar. Como na cena da entrevista, os serviços são inumanos de tão frios - e isso torna um mérito da narrativa à frieza.
O desinteresse constante de Lucy, interpretada segura e impecavelmente por Emily Browning, é o que modera o filme. Ao demonstrar ser uma pessoa vazia e sem esperanças, sem prazer ou emoção genuína, Lucy se torna uma protagonista perfeita para um filme que tenderia a total denúncia. Subvertendo a denúncia, aposta no desenvolvimento de personagens. E ao criar uma personagem que tem problemas crônicos de personalidade, fica difícil desenvolver de forma textual alguém assim. Porém, indo totalmente contra a lógica, a romancista Julia Leigh aposta numa abordagem visual e de atitudes, algo que não se faz presente nas trabalhadas palavras de um escritor. Se não bastasse o cuidado narrativo, Julia ainda demonstra ser uma segura diretora de elenco e uma habilidosa esteta, ao compor quadros milimetricamente planejados, lembrando os de Sofia Coppola em Somewhere e, se formos mais longe, os de Kubrick. O erro fica apenas no último take, que não tem muita função narrativa. Não foge da lógica, mas se fosse cortado, teríamos um produto mais redondo.
Estando na cabeça de Lucy, não é tão estranho questionar a veracidade de algumas situações. Seja a decoração de mulheres nuas ou a tela de uma garota em movimento, o onírico é flertado justamente pela falta de significados verossímeis naquilo que a protagonista está fazendo. Aliás, Sleeping Beauty é pesado, mas só seria um tour de force se Lucy desse a mínima atenção para o que está fazendo. A nossa Bela Adormecida é jovem e pura (ótima sacada a de Lucy portar um esfregão), mas é só uma casca. No fundo, ela é tão livre de emoções que não vê porque não declarar sua vontade de fazer sexo oral num homem que conheceu há um minuto. Apesar de ser a única de branco em um mundo de mulheres de preto, nada tem de pura a tal Bela.
Não há porque haver choque numa mulher tão desprovida de amarras as convenções emocionais. Ser abusada enquanto dorme não machuca tanto quanto ser abusada conscientemente. Decidir no cara e coroa o destino de seu "templo" (termo que gera uma risada da menina) é bem mais que ser uma marionete por uma ou duas horas. Ser livre desse jeito tem dessas coisas, nada impressiona, tudo é normal. E se tudo é normal, tudo tende a ser comum, sem unidade.
Mas a liberdade tem seu preço. Enquanto Lucy está indo ver seu amigo Birdmann, podemos conhecer um pouco mais de seu lado emocional. Não por acaso, a câmera de Leigh vai se aproximando lentamente (duas vezes, num brilhante plano gêmeo) de Emily, como se adentrasse a alma da personagem. Ali, ela vê uma segurança firme. Se for pra casar, Birdmann está ali. Porém, quando a segurança vai embora, o chão vai embora. O choro de Lucy é enigmático: estaria ela nutrindo o primeiro sentimento verdadeiro (de tristeza) ou estaria apenas sendo ainda mais egoísta ao temer sua provável vulnerabilidade futura? Sem a segurança, há apenas o desajeito social, a falta de tato humano. Quando tinha quem ouvisse um "casa comigo" bem, era fácil. Uma falsa ilusão de segurança. Mas não seria isso o necessário para alguém feito apenas de casca?
Como estudar a Bela é difícil verbalmente, opta-se pelo visual, como dito. Mas não por isso, Julia Leigh se esquece de falas romantizadas. Criativamente, Julia cita uma passagem de um conto sueco na boca de um dos clientes de Clara (Rachael Blake). Nela, o cliente fala de um homem cuja vida é triste pois não há mudanças. No final das contas, o homem fala do conto, mas fala de si mesmo e, sobretudo, de Lucy. E mesmo com mudanças abruptas, com o tempo nada muda. No final, há o choque de realidade, que serve para potencializar a virada na vida, tornando tudo mais bonito. O porém é que a Bela deveria ter aprendido que na vida, se você não se tocar, a queda é apenas uma queda, não o incentivo para a virada. Se nada aflige a oca Lucy, nada mais extremo que a morte.
E nada é pior que um choque de realidade.
Lucy sabia que era pelos fundos, o que acontecia. A menina saiu por lá. Os serviços são, em teoria, iguais. Mas quanto mais grave fica a situação, mais Julia nos mostra. Se antes o fade out corta nos primeiros segundos do serviço, no final temos acesso a tudo.
Assim, Sleeping Beauty se fecha perfeitamente, ao tornar complexas suas regras e executar exatamente o que se propôs. Julia Leigh tira leite de pedra e consegue responder as perguntas que fez de maneira criativa e brilhante. Se o estudo soa vazio, frio e anti-emocional, não é de todo errado. Mas o que seria de uma protagonista fria se ela estivesse num filme quente?
Podemos não saber do que Lucy é feita, mas pelo menos agora sabemos seu limite.
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