segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Abismo Prateado
(O Abismo Prateado, 2011)
Drama - 84 min.

Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz e Beatriz Bracher

Com: Alessandra Negrini, Thiago Martins, Gabi Pereira, Otto Júnior e Camila Amado

Quando vemos o mar revolto logo nos primeiros frames, percebemos que há algo de errado. Surge então o título, em meio aquela beleza plástica. O fenômeno natural não está ali á toa (isso seria subestimar Ainöuz). Obviamente, como todo filme de análise, Abismo Prateado não é didático com o significado de alguma coisa, muito menos dos créditos iniciais. Está claro, porém, que a tempestade está ali para significar a mudança que está por vir na vida de Violeta, vivida com brilhantismo por Alessandra Negrini (linda como nunca).

O bom de um Festival é isso: você vendo uma série de filmes em sequência, acaba percebendo certos tiques. Pensando rápido, é possível se lembrar de Brighton Rock e Terraferma. Ambos os filmes também utilizam o mar como símbolo de mudança. Em Elefante, outro elemento natural é utilizado, o céu. O Abismo Prateado utiliza os dois, já que uma tempestade parece estar vindo. Porém, se nos projetos citados o tal "tique" funcionou perfeitamente, aqui soa apenas deslocado. Seria inofensivo se esses créditos iniciais não fossem uma perfeita metonímia do que o filme é.

O estudo de personagens e situações gera diversos pensamentos. Provoca, investiga, analisa sem pudores. No novo filme de Karim Ainöuz, o estudo parece existir apenas pelo próprio prazer em estudar. Uma visão delicada, realista até, mas um tanto desnecessária para o pensamento de uma mulher sobre o fim de um relacionamento duradouro. Para uma obra baseada numa música que exalta a independência feminista perante o homem, Abismo Prateado é até passivo demais.




Algumas sacadas de direção são logo notadas. A câmera na mão, próxima sempre dos rostos dos personagens, se tornou tendência nos estudos de personagem indies após a investida da estética pelos Irmãos Dardenne em Rosetta, vencedor de Cannes em 1999. É uma tentativa (válida, até) de tornar o espectador próximo do personagem (o melhor analista vê o analisado de mais perto). Aqui, Aïnouz segue a cartilha á risca, desde as caminhadas de Violeta pela cidade até o vigor quase animalesco na cena de sexo. Os poucos momentos onde a câmera se afasta é para demonstrar a relação da solitária protagonista com outro personagem (ou sozinha, como na floresta, onde Violeta fica no canto do quadro).

Porém, o roteiro tem dificuldade em se desenvolver. O Abismo Prateado parece aquele típico filme onde a ideia surgiu e os realizadores pensaram ser possível realizar um filme só a partir dela. É muito bonito fazer um longa baseado em uma canção, ainda mais de Chico Buarque, mas ter um material de base de 4 minutos é perigoso. Ou se inspira pelas ideias ou expande o material. O problema do filme é não realizar com sucesso nenhum dos dois, já que Aïnouz parece não ter tido um roteiro em mãos para executar sua ideia; parece ter dirigido com base em um argumento.

Não por acaso, os melhores (e únicos) momentos bons do filme são essencialmente sugestivos. Seja um olhar perdido de Violeta, um movimento curto para ligar o ar condicionado (estaria ela aflita?), passar pelos telefones públicos (resistiria ela á tentação de ligar?), uma ferida física curada (que não é só física) ou até mesmo a mera ingestão de um sorvete. No início do longa, no consultório da dentista Violeta, a paciente está com dor de dente. A protagonista aconselha a mesma a tomar sorvete para aliviar a dor. E quando Violeta aparece no quiosque e toma um sorvete, o simbolismo se consolida de forma interessante. Assim como no telefone, que após ouvir a mensagem abrupta que o marido deixou, surge à mensagem gravada, oferecendo um número para fornecer "mais informações". A irônica passagem funciona e dá um tom mais fresco á engessada narrativa.




Mas é pouco. Ao adotar uma linguagem visual pobre, Aïnouz ainda cria um terceiro ato lamentável para a protagonista, que envolvem os personagens de Thiago Martins e sua filha. Há pouco esmero visual, onde apenas a dança na profusão de luzes na boate se torna atraente. Ao passar o tempo restante para o voo apenas conversando de forma inexpressiva com os unidimensionais pais e filha, Violeta não ganha experiência nenhuma a partir daquilo (o que torna esse "walk movie" completamente evasivo). Além disso, Aïnouz torna algumas passagens forçadas, o que é difícil de reverter em um drama intimista que busca abraçar a verossimilhança. A taxista, falando sobre uma situação desconfortável semelhante á da protagonista, é uma coincidência tremenda - e ridícula. Parecendo ir em busca apenas do breve gag, Aïnouz decepciona na condução do estudo que, ainda que sensível, é insípido. Acidentalmente (e ironicamente), o que o filme tem de mais verossímil é a sua falta de significado. Ao andar pelas ruas do Rio de Janeiro, Violeta parece não saber o que fazer. Exatamente como a falta de "glamour" que uma situação realista teria.

Mas, novamente, uma ou outra boa sacada visual não salva o longa da completa obviedade. Não há o sentimento de superação que deveria haver nessa quieta e meticulosa meditação pós-fim da relação. O que vemos é uma Alessandra Negrini, com talento ímpar, presa a um par de situações manjadas pelo centro do Rio. Ela olha para a aliança, pensa. Tem seus olhos registrados, quase sem vida, olhando para o mar. O que fazer agora?

Olhos nos Olhos. Quero ver o que você faz. Sinceramente, sem ele, a protagonista não parece passar bem demais. A julgar pela análise do que fez, Violeta não surpreende ninguém. Porque quando ele quiser te reencontrar, refeita não vai estar.



Anderson Silva – Como Água
(Like Water, 2011)
Documentário - 75 min.

Direção: Pablo Croce
Roteiro: Ramon Lemos, Lyoto Machida, Damaso Pereira e Ed Soares


Anderson Silva, um dos maiores lutadores de MMA do mundo, detentor do cinturão de peso médio do Ultimate Fighter Championship (o agora popular UFC), é um atleta invejável. Feroz nos ringues, zombando de seus adversários, o brasileiro é dono de um estilo único, que baseado no muay thai, é mesclado com os golpes de karatê e os ensinamentos de Bruce Lee.


O ícone das artes marciais, inclusive, é quem toma o minuto inicial de assalto. A arte marcial é uma ferramenta do homem que se adapta. Como a água. Se a água entra na garrafa, então ela se torna a garrafa. Se ela passa pelo chão, ela se torna o chão. Se Anderson entra na luta, ele se torna a luta.


Com uma estrutura eficaz, ainda que esquemática e previsível, o documentário ganha diversos pontos ao não tentar endeusar erroneamente o lutador, ao apresentá-lo com dificuldades e falhas. A escolha por contar a trajetória de Anderson até a luta mais difícil de sua carreira, contra o americano Chael Sonnen, é vitoriosa. Se aproveitando da quantidade suficiente de imagens televisionadas, o diretor Pablo Croce ganha uma bela oportunidade de acompanhar a rotina de um lutador, os preparativos para uma luta e adentrar os bastidores do UFC. Aos poucos, é interessante notar que Como Água se revela como um Quando Éramos Reis descompromissado, se focando apenas na atmosfera da luta, sem o sub-texto ideológico racial.



O carismático lutador vai sendo construído aos poucos. São pequenas ações, bem humoradas até ("Eu estaria trabalhando no McDonald's se não fosse a luta") que aproximam Anderson do espectador. Exímio praticante das artes marciais, respeitoso com seus mestres (a amizade com Minotauro é bonita), o brasileiro vai se preparando para o embate com um equilíbrio emocional que lembra, inclusive, o de seu mestre supremo, que tem a voz no início do documentário. Com seu estilo todo próprio, headfones gigantes, bonés estilizados e até uma camisa rosa (que vira uma boa provocação a Dana White, chefão do UFC), a simpatia do Spider vai ganhando o público das lutas (e do cinema), ainda que os ferrenhos e revanchistas americanos volta e meia tomem a tela para dizer que Chael Sonnen vai massacrar Anderson no Octógono.


As cartas são bem marcadas. O documentário consegue fugir de qualquer mensagem maniqueísta ao deixar apenas os atos de seus protagonistas falarem por si só. Aqui e ali, há um excesso de zelo com Anderson que soa ensaiado (como a reza solitária ou o diálogo com o lutador Lyoto Machida no início), mas nunca é algo exacerbado, já que a personalidade bondosa e despojada do brasileiro se contrapõe à frieza, arrogância e estupidez do americano Sonnen. Não foi Croce que criou um antagonista unidimensional; foi o próprio lutador.


Aqui e ali, há certos reducionismos. A tentativa simplória e boba de fazer um distanciamento entre Sonnen e Anderson até mesmo em seus centros de treinamento é ineficaz. Enquanto Anderson está cercado de amigos, num ginásio com cores quentes e fotografia mais amarelada, Sonnen treina sozinho no luxuoso QG da Nike, em sua terra natal, com uma fotografia azulada que remete imediatamente á frieza. A honestidade nas caracterizações já estavam muito bem estabelecidas. Apostar numa abordagem visual como essa é tão desnecessária como perigoso, ao colocar em perigo a veracidade de alguns fatos (o que é quase fatal em um documentário).




Quando Dana White toma a tela, fala que não quer criticar Anderson no documentário dele, mas não é necessário, pois não há argumentos. A figura do político, que quer apenas o circo pegar fogo para vender ingressos, é claramente anti-desportiva (o que o executivo parece não perceber). São momentos de pura provocação que Anderson tem que aguentar, como as ofensas constantes de Sonnen, que vão de pessoais ("Ele se veste como um gângster") até ao país do lutador ("No Brasil, se você fizer reverência, roubam sua carteira!"), que trazem brilhantismo ás respostas afiadas do brasileiro. Quando perguntam se ele está nervoso com a luta, se ele levou a sério as provocações e tudo relacionado a isso, tudo é respondido com um despreocupado “Não". E a melhor de todas é quando seu agente pergunta o que ele fez para se preparar melhor. "Eu comecei a treinar com o Steven Seagal". Engraçada e divertidíssima, a passagem só se torna mais eficiente ao final, quando vemos a interessante e respeitosa reverência que Anderson faz ao astro do rabo de cavalo (que é mestre em aikido).

Humanizar o ícone é uma boa decisão, mas se restringe a pequenas passagens. Ao ser atingido por diversos golpes no treinamento, Anderson demonstra uma expressão de aflição, de dor. O diretor Croce então é feliz ao tremer a câmera a cada golpe desferido no lutador-protagonista. Esses preparativos, que ganham contornos de embate psicológico a cada nova provocação de Sonnen, são o que o documentário tem de melhor para oferecê-lo. Fica difícil criticar um documentário tão simples e que se propõe a fazer exatamente o que consegue. Nunca 75 minutos passaram tão rápido.

É tudo tão simples e bem delineado que fica até difícil errar. Até a trilha sonora genérica de Alec Puro acaba funcionando. O clímax, apesar de não ser tão extenso e visceral quanto os de Quando Éramos Reis ou (vejam só!) de O Vencedor, é bastante eficaz ao trazer o espectador ao delírio. Erra ao esquematizar em algumas partes, mas o saldo é bem positivo. Ao mostrar as autoridades do esporte como políticos apenas, que visam o lucro que o espetáculo do esporte pode gerar, o documentário ainda eleva (intencionalmente ou não) a condição de esportista nato de Anderson Silva. Demonstrando um senso competitivo (e um caráter) imenso, o brasileiro se ajoelha ao final da luta, nos pés de Sonnen.

São singelas e poderosas passagens como essa que tornam Como Água um documentário interessante. Muito divertido, sim, mas tremendamente emocionante em diversas partes. Não há elogio maior.

The Hunter
(The Hunter, 2011)
Drama - 

Direção: Daniel Nettheim
Roteiro: Alice Addison 

Com: Willem Dafoe, Sam Neill e Sullivan Stapleton

As histórias dos homens com miras perfeitas e personalidades imperfeitas sempre renderam bons filmes. Recentemente, houve certo abandono das tramas clássicas de assassino, já que o niilismo não costuma se dar bem com arquétipos. Porém, filmes como Um Homem Misterioso, de Anton Corbjin, e Atração Perigosa, de Ben Affleck, têm provado que dá, sim, para fazer um filme competente ao desenvolver o arquétipo. A chave está no desenvolvimento de personagem. O que diferencia Atração e Homem Misterioso é justamente isso: enquanto Affleck organiza um filme de roubo digno porém esquemático, Corbjin toma o subgênero de assassino de assalto para estudar a fundo a personalidade do americano protagonista.


O que nos leva a The Hunter, filme de Daniel Netthein. Ao se assumir desde o princípio como um filme de assassino, o projeto se torna interessante por introduzir a trama do matador solitário em um filme de caça, sem segundas intenções. A trama não serve para estudar seu personagem, ela apenas existe porque o trabalho tem que ser feito (e isso basta). Numa analogia, é como se o filme fosse Um Homem Misterioso com a abordagem de Atração Perigosa.


Martin (Willem Dafoe) recebe as instruções de seu trabalho. Registrado por enquadramentos estáticos, duros, que reforçam a natureza elegante (e, ao mesmo tempo, entediante) do seu trabalho, o protagonista vai se relacionando com os empregadores de maneira fria e distante, para obter logo suas informações e partir para a floresta, onde terá que caçar o tal animal raro australiano.



Na floresta, aliás, é onde o filme revela seu ritmo. Calmo, paciente, observador, mas nunca analítico (como já dito anteriormente, não estamos falando de um estudo). Há os flertes com os arquétipos do subgênero, como o envolvimento emocional com os locais ou a tensão com os criminosos, mas tudo não se aprofunda muito justamente para não haver uma perda de foco. O conflito que interessa ao diretor é o do Predador versus a Presa.


E nessa tensão do conflito do homem e do animal, Martin vai investigando as árvores e campos abertos da natureza do território australiano, o que rende as melhores cenas do filme. Investigando o solo, plantando armadilhas e tendo um olhar clínico sobre suas presas, o caçador vai aos poucos entendendo a situação em que se encontra e se ambientando na atmosférica floresta. Certas passagens, as melhores que The Hunter tem a oferecer, são de pura pegada visual. A queda na caverna, as silenciosas jornadas do caçador pelas belíssimas locações ou a descoberta do laser que dispara fotos. Quando tudo se restringe á sugestão, o filme cresce consideravelmente.

Como um roteiro baseado em livro (da escritora Julia Leigh, diretora do semelhante em ritmo Sleeping Beauty), se esperava maiores passagens dialogadas, o que nos levaria para o núcleo da família australiana. Isso deixaria o filme numa situação anteriormente testada, o que perigaria consideravelmente sua unidade. Porém, ao fugir desses maneirismos típicos do padrão de um filme sobre matador (nesse caso, caçador), The Hunter ganha consideravelmente. Ainda que a atuação segura de Willem Dafoe cresça as cenas em que este está com a família local, o desenvolvimento delas não chega a nenhum lugar, já que a personalidade do protagonista não é algo que está em pauta de análise. Basicamente, a família só está ali porque o Caçador tem que ficar em algum lugar durante sua jornada.


Os conflitos com os locais, motivados principalmente pelas questões ambientais do local, também servem para pouca coisa. Martin não é querido no local (o que rende a tensa cena no bar) e tem em Jarrah, personagem que nunca aparece, um paralelo devido ao estrangeirismo. Porém, é apenas uma ambientação realista para inserir o espectador na projeção, afinal o que importa mesmo é se Martin chegará ao seu objetivo ou não.

Por essa simplicidade, The Hunter ganha contornos de cinema "de arte" em sua fotografia barroca e direção cadenciada. São nos pequenos simbolismos e na trama bem realizada que o filme se baseia para terminar coerente. Sacadas interessantes (como o Caçador ter nome, o que o humaniza sem precisar estudá-lo) se destacam na narrativa sem surpresas.

Interessante, bem realizado e com um final bonito e coerente, The Hunter funciona dentro de suas modestas pretensões, já que adota uma postura observadora diante do comercial subgênero que aborda.

E é no grande final que o filme se encontra, já que a relação de respeito entre ambas as partes só precisa ser entendida com um fulminante e breve olhar. É em relações visuais como essas que The Hunter termina digno, apesar dos problemas.







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