quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Red State
(Red State, 2011)
Terror/Thriller - 88 min.

Direção: Kevin Smith
Roteiro: Kevin Smith

Com: Michael Parks, John Goodman e Melissa Leo

Falar sobre fanatismo religioso e condená-lo é mais fácil do que empurrar bêbado da ladeira. Quando misturado a uma pretensa denúncia e ancorado pelo dublê de diretor Kevin Smith, Red State se transforma em uma espiral sem fim de constrangimentos, momentos desnecessários e uma seriedade que faz frente ao melhor que os trolls da internet conseguem fazer.

Amparado em uma narrativa pobre e que atira para todos os lados, Smith começa Red State, indicando que irá falar sobre adolescentes tarados que se dão mal ao serem enganados pelos tais fanáticos religiosos. Ao mesmo tempo, insere o personagem do xerife, que passa o tempo chorando com vergonha/medo de assumir que é homossexual, mas que acaba servindo para essa ideia de historia ao personagem de John Goodman, um investigador que é enviado para acabar com a organização/igreja.

Pois bem, tentando dar alguma profundidade aos fanáticos, durante o filme Smith ainda faz surgir a loirinha angelical que tenta salvar as crianças inocentes, enquanto Goodman precisa enfrentar ordens extremas de seus superiores. Smith aqui tenta subverter as expectativas do publico, incluindo além da critica aos crentes doentes, outra aos governantes intrusivos e corruptos. Muitas boas intenções em temas dolorosos e complexos, que são tratados de maneira infantil e sem profundidade.



O texto de Smith (como em quase todos os seus filmes, o roteiro é seu) não consegue ser reflexivo, não consegue criar tensão e sua câmera não sabe o que mostrar, nem como o fazer. O espectador também é obrigado a aguentar dois monólogos muito mais longos do que o bom senso aguenta, nas vozes de Michael Parks (que lidera a tal seita religiosa) e de John Goodman.

Apesar de servir para apresentar claramente ao espectador toda a insanidade de Parks, o discurso pode até ter ficado bom no papel, mas é profundamente cansativo e enfadonho na tela, já que Smith não sabe muito bem o que fazer com a câmera. Ele não sabe como cortar e estica a conversa além do necessário para sua pretensa proposta, além de não servir a nada, já que ele se dirige aos convertidos, que imagino, já devam conhecer aquela ladainha decorada. E o discurso de Goodman, apesar de criativo na ideia (vejam bem na ideia) substitui o clímax do filme, também, de forma insatisfatória, já que tudo aquilo que é dito seria mais interessante se fosse visto. Talvez Smith tenha percebido que não teria capacidade para encerrar seu filme visualmente, e tenha apelado para a conversinha fiada.

Soma-se a isso uma quantidade grande de diálogos fracos (em especial vindos de Melissa Leo que falaremos a seguir) e na falta de compreensão do gênero que pretende mostrar já que Smith não sabe como apresentar as cenas de ação. Notório diretor de pseudo-dramas e comedias flatulentas e com muita cultura pop, quando precisa mostrar um garoto levando um tiro dos policias - por exemplo - não consegue criar uma imagem que: a) identifique de onde vem o disparo e b) onde está o corpo. Noções de campo visual, que continuam sendo estupradas quando um tiroteio eclode no filme. São muitas balas voando sem nenhum objetivo ou sem nenhum escopo. Quando Smith mostra o grupo de policiais na entrada da casa da igreja, notamos que existem cerca de vinte pessoas por ali. Quando o tiroteio começa essa noção de quantidade é subvertida e a impressão é que existem mais de cinqüenta policiais por ali, tamanho é o desperdício de cartuchos na sequencia.



Ora, se Smith aumentou o numero de oficiais da lei (chegaram reforços, por exemplo) em momento algum existe referencia a isso. Smith prefere mostrar Melissa Leo no seu "Oscar Mode" atirando desesperada, e quando prepara a invasão pela policia, aquele tiroteio absurdo é apresentado como fruto da troca de tiros com meia dúzia de "tiras", incluindo um John Goodman profundamente fora de forma, mal conseguindo andar de forma mais rápida. Não dá para comprar essa ideia.

Quando tenta ser profundo e discutir a sociedade problemática que infla os desejos revoltosos de uma minoria doente, falha clamorosamente. A análise é vazia quanto às motivações dos personagens. Os crentes são insanos porque seguem um homem "louco"? Por quê? Leu demais a bíblia? Interpretou errado? Ou, como possivelmente Smith deve pensar: "está subentendido". Não está. Abin (Parks) é apenas um maluco perturbado como tantos seriais killers do cinema. Não tem frescor algum, charme, ou mesmo se destaca por ser mais sádico que os outros. A questão religiosa é só um chamariz modernoso. O mesmo vale para as questões de "limpeza" do governo americano. São pinceladas, não aprofundadas e depois justificadas de maneira, como é comum a Smith, infantilóide, recheada de palavrões e comentários digno do pior dos livros de auto-ajuda (a analogia do cachorro é impagável).

Completam o pacote, atuações previsíveis e assustadoramente ruins. O trio de jovens tarados (definamo-los assim) é fraco, e serve apenas como desculpa para a história funcionar. Quem é triste de ver é a oscarizada e insuportável, Melissa Leo, quebrando os recordes da concepção de overacting. Surgindo desleixada e suja, apresenta-se como uma fanática lunática que grita demais e convence de menos. Nem quando um personagem importante para a personagem morre, é possível sentir-se convencido pela atriz.



Smith aqui demonstra ser mais uma vez o que todos com bom senso sempre desconfiaram: um engodo. Mas pelo menos, ele tenta sair do trinômio: maconha-nerdismos-sexo, o que é um avanço. Pena que quis agarrar muito mais do que suas mãos gorduchas e sem talento conseguem segurar.




O Guarda
(The Guard, 2011)
Comédia/Thriller - 96 min.

Direção: John Michael McDonaugh
Roteiro: John Michael McDonaugh

Com: Brendan Gleeson, Don Cheadle, Liam Cunningham e Mark Strong

Fazer rir é uma das coisas mais difíceis que um ser humano pode fazer, tão difícil quanto aprender búlgaro, andar na corda bamba, convencer uma mula empacada a se mexer e a tentar convencer fãs de Crepúsculo que vampiros não brilham.

Fazer rir e ainda ser politicamente incorreto é ainda mais difícil, vide a onda de "humoristas" brasileiros que fazem (mesmo?) rir à custa de ofensas gratuitas e da exaltação do palavrão. Ou seja, o humor desse pessoal não vem da observação da sociedade, ou de uma sátira a esses costumes, mas da "trollagem" pura e objetiva. Dane-se se faz algum sentido, o importante é agredir. É dizer que quero transar com a grávida ou que o político é um bandido, só por "chocar". Falta essa perspicácia e inteligência (por que não?) para fazer do humor uma forma de crítica ao que acontece ao seu redor.

Esse talvez seja o maior mérito da comédia The Guard, dirigida pelo estreante John Michael McDonaugh, que a partir da figura exótica e quase surreal do sargento Gerry Boyle, cria uma brilhante sátira da cidade pequena ao mesmo tempo em que nos faz gostar de um policial aparentemente bronco, azedo e racista. Saber caminhar na tênue linha entre o ofensivo e a comédia é a grande sacada de McDonaugh (que também assina o roteiro), que faz das ofensas racistas de Boyle tão absurdas (apesar de não duvidar que muita gente concorda com o personagem) que não conseguimos realmente encará-las como ofensas, mas sim como observações sobre a cultura local. E mesmo assim, as tais observações - tão utilizadas no trailer do filme - não são tão comuns quanto pareciam ser.



A história é mais uma mistura de comedia de parceiros com observações típicas da comedia britânica. O protagonista (um grande trabalho de Gleeson, cada vez melhor) é um policial de uma cidade pequena irlandesa, rabugento e impaciente que começa a investigar um bizarro assassinato, ao mesmo tempo em que um oficial do FBI (Don Cheadle) chega à minúscula cidade para investigar um cartel de drogas. Logo, o assassinato bizarro e a investigação sobre drogas se unem e ambos precisam trabalhar juntos, embora sejam tão compatíveis quanto água e óleo.

McDonaugh não tenta transformar Boyle em um herói, mas transformá-lo em um sujeito muito eficiente, capaz de resistir a subornos, enganar os bandidos e ainda ficar com a mulherada. Um Shaft ruivo e irlandês. Talvez inspirado pelo irmão Martin McDonaugh que dirigiu Gleeson em Na Mira do Chefe, outra ótima comédia de humor negro, lançada em 2008, faz do policial um sujeito potencialmente estúpido, mas que (minha visão) é um camarada profundamente inteligente e que talvez usasse do racismo apenas para "provocar" o oficial americano.

Os vilões são outra grande sacada de The Guard. Os diálogos envolvendo o trio Sheehy (Liam Cunningham de Fúria de Titãs, Harry Brown entre outros), O'Leary (David Wilmot) e Cornell (Mark Strong, o inglês favorito de Hollywood), são recheados de humor negro na melhor tradição da comédia britânica e de referências a cultura pop e literária (onde mais você veria um bando de traficantes dentro de um carro fazendo citações de Nietzsche e conversando sobre poetas ingleses).



The Guard ainda tem uma ótima trilha sonora que remete claramente aos westerns spaghetti e uma fotografia contrastante que faz da pequena cidade de Connemara ainda mais bucólica. A produção não esquece também de - sempre que possível - cutucar os vizinhos ingleses, referindo-se aos súditos mais próximos da rainha com expressões que não cabem nesse espaço (mas que o espectador vai se divertir lendo/ouvindo).

Uma estréia divertida de McDonaugh como diretor, que apesar de não subverter o gênero ou ter grande originalidade (mais uma historia sobre policiais que não se entendem unidos para enfrentar uma ameaça comum) faz o que se espera de uma boa comédia: diverte e ainda consegue criticar e satirizar a sociedade.

As Quatro Voltas
(Le Quattro Volte, 2010)
Drama - 88 min.

Direção: Michelangelo Frammartino
Roteiro: Michelangelo Frammartino

Com: Giuseppe Fuda, Bruno Timpano e Nazareno Timpano


Um cachorro tira a pedra que prendia a roda do carro. Uma cabra olha, serena, o seu ambiente. Uma árvore simplesmente contempla o tempo mudar, junto com as estações. A fumaça branca viaja pelo ar enquanto o círculo negro é preparado. Um homem mexe na panela de comida, na sua casa. A mesa de madeira está ali, dando suporte para a panela. Mal sabe ela que, em breve, ela servirá de suporte para uma... outra cabra.


As Quatro Voltas, filme do italiano Michelangelo Frammartino, um dos melhores trabalhos do Festival do Rio, é uma contemplação da vida no estado mais bruto, natural. Lento, paciente, tranquilo, inocente, o filme trata com sensibilidade os processos do ciclo da existência. É com beleza, lágrimas nos olhos até, que acompanhamos o nascimento de uma cabra, a breve vida de um homem, a reestruturação de uma árvore ou uma mera fumaça saindo da chaminé. A proposta do italiano demora a ser percebida, mas quando se capta a projeção dos fatos, o filme se estabelece como uma experiência sensorial como pouquíssimas.

A falta de estrutura torna a jornada mais instigante. Superficialmente, As Quatro Voltas é uma comédia de situação. Uma comicidade que se deve a passagens que divertem pelo absurdo, como a conclusão da cena extensa, em plano único, do cachorro encrenqueiro. Ainda eficaz ao aliar essa graça com a estrutura do longa (essa mesma cena proporciona a abertura do ato mais interessante do filme), o roteiro de Frammartino encanta por esses pequenos toques de inteligência, mas principalmente por não temer ao ter uma incursão numa viagem visual.


Mas se não há uma trama ou narrativa propriamente dita, há um tom de território inexplorado em As Quatro Voltas. Frammartino nos apresenta a vida daqueles seres vivos como algo trivial, mas tudo se desdobra com um minimalismo estranhamente épico que tudo ali parece novidadeiro. Quando vemos a pequena cabra caindo no chão, é como se ali estivesse à gênese da Vida como conceito. Por isso, o nascimento da árvore não é necessário de ser visto, nem o do homem. O conceito já foi estabelecido.

Os elementos cênicos da vida filmada, vivos ou não, parecem ter um brilho próprio. O cachorro parece gritar "Vão!" ao libertar as cabras. A árvore parece pacífica, mesmo na mudança contrastante do tempo. Os olhos tristes e solitários da pequena cabra parecem observar algo a mais. A cabra medita tranquilamente para o aparente nada, contemplando o céu. A vila está em movimento contínuo, mesmo estando estática. Nada para - porque nada nunca para na vida. O flerte com o absurdo se dá por isso. O caixão do homem sai de forma abrupta. Não há nada mais inesperado que a vida ou a morte. Apenas o ciclo, a Volta.

Sutil, As Quatro Voltas ainda consegue ser vitorioso ao ter o poder de, apenas pelas suas imagens contemplativas, se sustentar. O desbunde visual e emocional é tamanho, que provoca um impacto certo em quem se liberta das amarras do Cinema convencional. O incrível do filme, porém, é que mesmo tendo um pleno domínio sobre o visual, o estrutural é privilegiado, criando um filme poderoso no subtexto brilhante que trabalha.


Nome apropriado, o desse magnífico ensaio. Obviamente, o projeto fala de ciclos, círculos e transições. A árvore auxilia o funcionamento de uma oca gigante, um círculo negro que assusta pela sua imponência. As estações mudam sem serem notadas. As quatro. As cabras mais velhas saem quando o pastor as chama, e são as mais novas que entram. Uma mudança necessária e vital, afinal. O supracitado cão volta, após perseguir a passeata. A fumaça, claro, era água. E vai virar chuva. Vai voltar.

E como maestro dessa linda orquestra visual, Frammartino é preciso. O que eram duas cruzes, viram três em apenas um take. A coordenação da misé-en-scene é calculada, fantástica. Os atores parecem participar de algo maior que esse simples plano físico, estão diante de algo mais. Como em A Árvore da Vida, por exemplo. As elipses também são privilegiadas. São ciclos, mesmo que não-filmados, no final das contas. E a preciosidade da vida é o que melhor se enfoca em As Quatro Voltas. Quando a árvore cai, os pedaços do tronco são o foco mesmo no ambiente mais inóspito. E numa análise, nada deve ser desperdiçado. A cabra está no canto mais obscuro da tela, mas nunca a perdemos de foco.

A brilhante metáfora para a vida, do planeta e do ser mais desconhecido e inusitado possível, é registrada com amor. Com carinho incomensurável. E quando uma quarta volta se torna inesperada ou oculta, não há o que se pensar. Nunca o sentido da obra interpretativa foi elevado a um nível tão alto. A celebração de uma força incompreensível no poder, seja Deus (o catolicismo é recorrente na religiosa vila) ou quem for, é mágica. E seja numa trilha aberta ou num rebanho perdido, você pode até estar sozinho, mas isso faz parte do espetáculo que é estar aqui.

E por espetáculo e carinho, se entende um abraço. E sou eternamente grato por receber um tão forte de As Quatro Voltas.





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