sexta-feira, 28 de outubro de 2011


O Filmes para ver antes de Morrer nunca tentou - e nem vai tentar - criticar ou analisar uma obra que por motivos óbvios está no panteão das maiores (na opinião da equipe) já produzidas pela sétima arte, por isso o espaço aqui é para relembrarmos, homenagearmos e apresentarmos a quem não viu, grandes filmes da história do cinema.


O Anjo Exterminador
(El Angél Exterminador, 1962)


Cineasta surrealista, Luis Buñuel é adepto de obras mais complexas e que explicam muito pouco de sua estrutura narrativa, preferindo rechear suas entrelinhas de mensagens interpretativas. E até mesmo essas mensagens não fazem um sentido completo. Como o próprio cineasta disse, "A melhor explicação para esse filme é que, do ponto de vista puramente racional, não tem explicação alguma". Por isso, seria inútil discutir todos os mínimos detalhes de O Anjo Exterminador. Desde Um Cão Andaluz, primeiro filme do diretor (no qual teve como parceiro ninguém menos que Salvador Dalí), o delírio surrealista, desconexo até, tomou conta do centro de suas produções. E os subtextos com que trabalha, quase sempre envolvendo as classes mais altas e as instituições religiosas, são refinados de uma forma espetacular na obra-prima que é O Anjo Exterminador. E Buñuel conduz a projeção com uma acidez tão peculiar que não é difícil se divertir com a desmistificação dos etiquetados senhores e senhoras presentes naquela sala.


Carros elegantes e caros chegam numa mansão igualmente imponente. Não é complexo imaginar os torsos grã-finos saindo, com todo o cuidado e refino, dos carros. Os empregados organizam a festa com movimentos robóticos (não tão exagerados quanto os de Metropolis), diferenciando-se desde já dos leves movimentos da classe rica que está preenchendo a mansão. Obviamente, a anfitriã entra na cozinha para pressionar seus empregados, como boa burguesa escrava das etiquetas. Porém, os empregados começam a sair, com motivos que não ficam claros ao certo. Mesmo com o protesto da glamorosa senhora, os empregados vão embora. Mas tudo bem, o que importa é que nada pode dar errado nessa noite. E se for pra dar errado, que dê com algum dos empregados que ficaram. Não tem problema se o reles mordomo cair com a comida no chão. Podemos até rir dele, se quisermos. O que não pode acontecer, de maneira alguma, é algo errado com os convidados.


Até que o diretor, não por acaso também roteirista do filme, parece ouvir os pensamentos dos anfitriões. E aí, algo tranca, com uma parede invisível e intransponível, a sala. Quem fez isso? Não importa. Por que os convidados simplesmente não vão embora se nada os impede? Essa é a questão.


Construindo a atmosfera de forma impecável, Buñuel não tem pressa ao introduzir a estranha situação que conduz a trama do filme. Os excelentes diálogos, bem íntimos (não estranhe caso não entenda algum deles; é conversa pessoal), vão levando a película até o evento principal se revelar. O jogo que Buñuel faz com a percepção do espectador também é notável. Certo ponto no começo do filme, um dos anfitriões fala para o mordomo arrumar os quartos para que possa acomodar todos os presentes dormindo no recinto. Porém, com o passar do tempo, vemos que os convidados começam a se acomodar na própria sala, tirando seus blazers sem a menor cerimônia, o que gera um protesto de uma senhora: "Eles não tem modos não?". Sutilmente, Buñuel estabelece a condição de presos dos convidados.


E é interessante perceber que os personagens vão apenas ficando na sala, sem se tocar de que nada os impede de sair. Mas é só chegarem perto do fim da sala que eles não conseguem dar o passo para fora. O gatilho é justamente a conversa de três dos distintos homens de fraque, que observam três senhoras que, antes com o objetivo de ir até o banheiro, acabam parando no meio do caminho. Com isso, se dá início à jornada de desespero dos refinados convidados. E os conflitos se intensificam pois Buñuel recheia sua narrativa com conflitos pessoais, como um relacionamento de dois personagens. O belo desenvolvimento de personagens se dá a partir da tensão que se instala com meia hora de filme. As características reais dos burgueses vão aparecendo pouco a pouco. Em certo ponto, o doutor é abordado para tentar resolver um caso; o bom humor do roteiro aparece fácil, ao mostrar um personagem chamando o doutor de Sherlock Holmes. Mas não só como síntese do humor um tanto sádico de Buñuel, essa cena serve bem para dar os primeiros sinais do desentendimento constante entre os hóspedes.


Esse choque entre as diferenças de personalidade dos presentes é fundamental para a acidez da crítica escancarada que o espanhol faz. Aquelas belíssimas regras de etiqueta, o bom comportamento, galante e superficial, se torna visceral a ponto de gerar sérios confrontos verbais. E essas cenas apresentam o melhor de O Anjo Exterminador. Buñuel não esconde o apreço pela desgraça dos distintos senhores, e analisar a desconstrução da instituição de aparências da Alta Roda é a alma do humor satírico do filme. O desespero por água, a hilária tentativa de manter as aparências em meio ao caos ("Primeiro as damas!" ou o alisamento de cabelo da senhora), a dupla dos irmãos entediados e ácidos; tudo faz parte dessa graça que Buñuel provoca no espectador, que é a contraparte perfeita para o flerte surrealista que o filme realiza.


Nesse flerte, em algumas sequências, o diretor impõe o seu estilo com tendências ao onírico, ao fora do comum, que ditaram sua carreira desde o revolucionário Um Cão Andaluz. As cenas de delírio dos personagens são totalmente descontroladas e têm um visual chamativo como poucos. Por isso, é até ótimo que Buñuel não apele para explicações descritivas e plausíveis: a beleza está no desconhecido. A bizarra presença de uma mão ambulante sem corpo é fantástica e estabelece bem o verdadeiro exercício de estilo de Buñuel. A trama experimental, a chuva de referências, transição constante de gêneros, críticas a vários segmentos da sociedade: Tudo tende a essa pura e simples demonstração de repertório de um Mestre. Mesmo que muitas vezes gratuito (como nas críticas ao Catolicismo), esse estilo só define bem o que O Anjo Exterminador representa na filmografia de Buñuel: A síntese de seus pensamentos. A Obra-Prima.


A direção firme, imponente, esbanja elegância e tem takes de puro brilhantismo, como os de aproximação rápida nos personagens e os quadros belos em que o diretor abre o campo de visão ao chegar a câmera para trás. Isso mostra o pleno domínio do diretor em sua arte. O interessante é notar que, provavelmente, Scorsese se inspirou ferrenhamente em Buñuel para construir seus travellings acelerados, dado que o espanhol demonstra autoridade e arrojo imensos nesses planos. Inspirar mestres não é para muitos.


A noção de Buñuel sobre a mise-en-scène é espantosa. Em filmes como esse, de pouco espaço, muita filosofia e debate constante, a valorização dos atores e a imposição de um bom ritmo são essenciais. Anjo Exterminador, então, seria um predecessor de filmes como Ensaio sobre a Cegueira, que utilizam das más condições do ser humano para estudá-lo da maneira mais crua. Não por acaso, ambos os filmes dividem o ensemble cast, em que o todo é mais importante que o individual. E como um diretor conseguiria arrancar atuações homogeneamente soberbas de um elenco que, dentro do contexto, não importa individualmente? Compondo as cenas com segurança, o diretor organiza os atores com destreza ao passear a câmera de seu filme, brilhantemente fotografado por Gabriel Figueroa, pelo salão. Ao registrar o trivial e rir da desmistificação alheia, Buñuel dita esse bom ritmo de maneira impecável a ponto de 86 minutos parecerem 30.


Após se divertir bastante, tanto na técnica quanto no roteiro, Buñuel ainda finaliza a sua narrativa dentro da mansão de maneira anticlimática, guardando a carta na manga em seu desfecho, esplêndida como poucos. Ao utilizar um dos referenciais burgueses (que, "curiosamente", é ligado á religião católica), o diretor esquematiza o palco para seu apoteótico final. Dando ainda em seu último take o seu sermão à Igreja, Buñuel o faz de maneira divertidíssima, ainda que propositalmente forçada. Esse brilhantismo sádico é o que torturou os "heróis" desde o princípio e não os poupa em momento algum.


Talvez a maior diversão dessa obra-prima, é analisar a fusão dos dois critérios a serem criticados e a maneira que o diretor faz para rirmos deles. Quando o pobre cordeiro de Deus entra no salão, o destino não poderia ser outro. Aqueles cidadãos são jogados aos leões sem a menor compaixão, mas não há como não se esbaldar de rir com a fina camada da sociedade que, julgando-se civilizada, acaba se ofendendo gratuitamente apenas para se sentir melhor.


Ainda querendo saber por que aqueles homens e mulheres estão ali presos? Não é necessário buscar essa resposta já que, como o manso e adorável Urso da mansão, esse é um mistério que encanta justamente por sua falta de resposta coerente. Mas se insiste em saber, tudo bem. O homem que os prendeu se chama Luis Buñuel. Mas não o culpe.


A culpa é dos hóspedes. Ser católico e burguês dá nisso.


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