sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Eu Receberia As Piores Notícias dos seus Lindos Lábios
(Eu Receberia As Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, 2011)
Drama - 100 min.

Direção: Beto Brant e Renato Ciasca
Roteiro: Marçal Aquino

Com: Camila Pitanga, Gustavo Machado, Zecarlos Machado e Gero Camilo

Dono de uma filmografia tão competente quanto vasta, o diretor paulista Beto Brant ultimamente tem entrado numa fase onde investiga as variações do amor. Saindo do campo dos vigorosos policiais dramáticos, como Os Matadores e O Invasor, Brant testou novos horizontes com Crime Delicado, em 2005. Mas o estudo do amor só entrou de vez em sua carreira em 2007, com a estréia de Cão sem Dono. Aqui em Eu Receberia as Piores Notícias de seus Lindos Lábios, o seu sétimo longa (terceiro co-dirigido por Renato Ciasca), Brant se aprofunda no delicado triângulo amoroso que surge no interior do país. E o estudo se sai admiravelmente bem por diversos fatores mas, principalmente, porque Brant prefere se reinventar a se acomodar.

Lavínia, vivida com uma mistura de ternura e explosão emocional por Camila Pitanga, entra na casa de Cauby como se não tivesse passado - e não quisesse futuro. Já quando entrou na casa do futuro marido e pastor Ernani, Lavínia só se preocupada em consertar seu passado - e ter um bom futuro. É esse interessante jogo ideológico, que adentra a alma da protagonista, que enriquece a leitura de diversas cenas. Quando perguntada, Lavínia diz que transar com Ernani é diferente de Cauby. É uma verdade que se consuma nos mínimos detalhes. No sexo com Cauby, quem dá o prazer é ela. Com Ernani, quem fornece é ele. Nessas pequenas sacadas, como usar o sexo oral como ferramenta máxima do prazer, que Eu Receberia se transforma em um filme maior do que aparenta ser.

O caminho seguido pelos personagens é difícil (e Brant não facilita a vida deles). Numa terra que se revela cada vez mais inóspita, Cauby vai prosseguindo lá por um amor muito grande a Lavínia (ou por pura inocência de que algo fosse dar certo). Em certa passagem, emblemática, o policial diz que Cauby deveria ter fugido enquanto é tempo. Não é questão de estar do lado certo da lei ou ter uma falsa impressão de amor proibido; a questão é ser um "estrangeiro", um habitante novo, um Invasor. Essa culpa generalizada em torno da terra é nova para Brant, mas é fundamental na escrita do policialesco Marçal Aquino, escritor do livro que inspirou o filme. Textos como o que inspirou Cabeça á Prêmio, policiais, falam muito da terra como um ambiente vivo na história. A Amazônia faz esse papel aqui, mesmo sendo uma história sobre relações. Não é mera coincidência a atmosfera de que as coisas tendem a não acabar bem; os policiais ambientados no interior tendem a isso.




Essa colaboração com Aquino, por sinal, cria personagens tipicamente egresso do policial, como Viktor Lawrence, vivido por Gero Camilo. Um poeta do caos, mediador lírico da história, o personagem apresenta um dos argumentos mais instigantes do filme. O amor de Lavínia e Cauby é forte, carnal. Já o amor dela para com Ernani é um carinho, uma amizade forte, uma gratidão maior que tudo. O que torna Lavínia feliz é a união dos dois. Não por acaso, Lavínia resgata características do passado com Cauby, o que a torna instável. O interesse pela fotografia é a grande sacada: ao estar com o fotógrafo Cauby, nossa protagonista divide uma paixão, já que ambos são semelhantes. Enquanto com Ernani, Lavínia não divide nada além da ternura. É o prazer e amor de um e o carinho e altruísmo do outro. Aos poucos, vemos que o triângulo é mais complexo do que se imaginava. É olhando para o passado que se entende a gravidade da situação. Mas o amor, esse não deveria ser proibido. Se ele é sagrado e a traição é pecado, Sagrado é o pecado, então.

A pertinente crítica a um fator da sociedade permanece, claro. Não é novidade que Brant usa suas tramas para investigar problemas sociais. Porém, dessa vez, o problema remetente a perda de terra dos índios do local, pouco tem a ver com a trama. O registro é feito com amor, mas soa um tanto deslocado. Nada que prejudique a fluidez do projeto, que tem um ritmo muito bom. E é normal analisar a denúncia de maneira isolada; estamos falando de amor, então por que não abordar o amor dos realizadores pela região?

A edição de imagens do filme também peca pelo excesso de fade-outs. É como se uma solenidade se ensaiasse ali, como se cada cena merecesse um fim climático. Ainda que funcionem em diversas passagens (como nas brigas catárticas entre Cauby e Lavínia), os fade-outs são desnecessários em outras. Eu Receberia... Já tem força o suficiente em seu contexto, não precisa de um rebuscamento desmedido na linguagem visual. Mesmo com os erros esporádicos da edição (apenas as transições, a edição, já que a montagem é impecável), o filme é vigoroso tecnicamente. A fotografia forte, com cores abundantes, transmite uma vivacidade imensa, o que só aumenta o contraste com a urgência da relação amorosa dos três. A trilha sonora, com uma identidade local toda particular, se mescla entre melodias tipicamente naturais e os acordes mais românticos.




Diferente dos estudos sociológicos que marcaram o início da carreira de Brant, Eu Receberia é um filme que se aproxima dos últimos dois filmes do diretor. É bonito, consistente, desafiador. Brinca com diversos elementos, debate sobre diversos tópicos e opiniões. Teoriza o amor como algo ideológico, mental, psicológico. Para Brant, o amor é um misto complicado de paixão, dor, ternura e tragédia.

E não poderia ser mais verdade. Mesmo assim, não existe coisa mais linda que chamar pelo nome da amada e ela olhar para você.

Terraferma
(Terraferma, 2011)
Drama - 88 min.

Direção: Emanuele Crialese
Roteiro: Vittorio Moroni e Emanuele Crialese

Com: Filippo Pucillo, Donatella Finocchiaro e Beppe Fiorello


O suave plano inicial do italiano Terraferma dá o tom perfeito para a narrativa. É lento, contemplativo, bonito. Um respeito enorme pelo mar, é o que temos. É um conforto nesse mar, nesses peixes, nesse passado, que tornam o primeiro quadro tão bonito e atraente.

O diretor Emanuele Crialese disse, no palco do Festival do Rio após a sessão, que o filme representa uma visão particular do povo italiano e que a mensagem contida em seu longa era claramente baseada em fatos reais. Sinceramente, não era necessário dizer: desde o primeiro minuto dá pra constatar a visão perfeita que se tem do humilde povo daquela ilha. Fora que, desde o primeiro contato, dá para ver que a imigração é debatida com um vigor que cheira a muita inocência.

Mas primeiro, à narrativa. O filme representante italiano no Oscar já inicia simplificando as coisas. O velho pescador e seu neto fanfarrão dividem a tragédia em comum, como a oração inicial faz questão de ser didática. Filippo, o neto vivido pelo ridículo ator Filippo Pucillo, leva sua vida com humor, com canastrice, com inocência. O avô, ainda que sábio e castigado pelas tragédias da vida, tem um ar sereno característico de um povo sofrido, mas que leva sua vida com alegria. Mesmo que a pesca - sua atividade desde sempre - esteja obsoleta aos olhos de todos, o avô insiste. "Para que prosseguir? O barco vale mais demolido que em pé!", diz a mãe de Filippo em certo ponto. Realmente, para quê? É por um senso de justiça á moda antiga, que adota a coletividade, que espécimes como o avô sobrevivem. Essa sensação de coletivo, devidamente registrada e adorada por Crialese, é filmada como uma expansão dos horizontes culturais. Quando o homem fala, o plano vai se abrindo até mostrar todos reunidos ali, contemplando-os. Um coletivo que toma as decisões, o que é o melhor a se fazer. O roteiro prefere ser professoral sobre isso ("Nós costumávamos resolver tudo em grupo!"), mas tudo bem.

Esse código dos idosos italianos é respeitado com amor pelo filme. O mar é a terra firme deles, a do título. Mas ao forçar o drama (de forma, novamente, inocente), não surte muito efeito. Filippo ganha uma moto, mas uma mini-gangue aparece para quebrar o brinquedo do pobre (e indefeso, claro) rapaz. Os imigrantes já são bonzinhos e sofridos, mas os que morrem afogados ainda deixam terços no mar. A sorte de Terraferma é que o discurso é pronto e ganho, porque trabalhar de forma tão maniqueísta com algum fato menos demarcado pelo senso comum é quase certo um suicídio artístico.


As falhas no roteiro aparecem (e bem), já que Terraferma flerta até com o filme-denúncia, mas tudo é em prol da mensagem. O povo, que se sustenta bem, que vive em tempo de crise mas mesmo assim encontra um tempo para se abraçar, é quente e feliz, o total oposto da triste e opressiva autoridade. Em tempos de Berlusconi e xenofobia, Terraferma pode até trazer um sub-texto pertinente, mas como cinema é tão datado que soa como um longa romântico, que leva até o limite da paciência o senso racional do espectador. É inegavelmente cheio de boas intenções, mas ao desenvolver TUDO em prol da tal mensagem (até o diretor afirma que o filme foi inspirado nisso, quem sou eu para negar?), Terraferma se enfraquece. A todo o momento, temos a impressão de estar assistindo um teatro fake. A retórica é exacerbada e tudo parece uma declamação. E bater na mesma tecla cansa.

No final, há poucas sacadas, visuais ou narrativas, inspiradas. Quando Filippo empurra seu tio de volta, perto do final, um ensinamento do início é concretizado só na sugestão. O abraço comovente de Giulietta e a imigrante etíope também é bonito e com um desenvolvimento interessante, já que a relação das duas é marcante pelo laço que as une: o da maternidade. Mas convenhamos: a imigrante precisava mesmo dar o nome da italiana para sua filha? O esmero visual que Crialese tem na composição de quadros, como o das pessoas na água ou dos turistas, pulando em câmera lenta do barco, acaba se diluindo na narrativa pouco explorada.

Interessante perceber como um filme tão certinho, tão bonito, que exalta a natureza como algo belo a se contemplar, seja tão pretensioso. Julgar-se um micro-cosmo da Itália não é a melhor das atitudes nesses tempos realistas. E, novamente, forçar no drama também não ajuda: poxa, essa parte que representa a Itália tão bem nem tem lugar no mapa. Que triste, não?


Nisso, o tal código do mar até funciona perfeitamente dentro da lógica interna. O plano contra-plongée, debaixo d'água, vê todos os turistas nadando por sombras. Visualmente, todos parecem iguais. E não é a igualdade dos seres que o humanista filme prega?

O problema é que com tanta ingenuidade, os erros não tardam a vir. Para um filme que procura não julgar ninguém, Terraferma julga até demais. Os turistas estão errados em não querer os imigrantes, mas os imigrantes podem invadir o país tranquilamente. Se a terra é de todos, era para ser dos turistas também. Errôneo da parte dos responsáveis, já que teoricamente colocaria a unidade do filme em risco. Mas veja como são as coisas: a mesma inocência que cegou o senso de julgamento dos envolvidos é a mesma que os salva. Os turistas são tão unidimensionais, sem ambição alguma além de "explorar" a terra firme italiana, que acabam sendo difíceis de defender. O amor ao país e ao povo, reduzindo as questões a meras alegorias, acaba funcionando como manifesto, mas não como filme. Ao estourar qualquer limite do verossímil ao abraçar o caricato, mesmo que sem intenção, Terraferma sobrevive.

E esse abraço ao caricato nos remete a Filippo. É bobo a um nível estratosférico, mas tem um bom coração. É ingênuo demais, coitado, mas é tão bondoso...

Exatamente como esse Terraferma. Forte concorrente ao Oscar de estrangeiro.





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